“Carteiro... Telegrama!”
Toc-toc-toc! Toc-toc!
Era assim, como código Morse, o modo do agora saudoso Amigo José Batista de
Pontes se anunciar: três batidas rápidas, e duas devagar... Em seguida, com voz
empostada: “Carteiro... Telegrama!” Já sabíamos que se tratava do fraternal Seu
Pontes. Por décadas, essa foi a sua “senha” para adentrar à casa/escritório do amigo,
colega, conhecido ou cliente (depois que passou a ser corretor de imóveis).
Quando,
por acaso, Seu Pontes encontrava alguém por quem tivesse algum apreço vindo a
pé, e ele, geralmente de carro, perguntava qual era o valor da passagem (de
ônibus) ou da corrida do táxi, aí, brincando, fazia uma “contraproposta”: “levo
pela metade do preço, aceita?...”
Foi
numa dessas gentilezas inusitadas que uma viatura do Corpo de Bombeiros, em
ação de salvamento, colidiu na traseira de seu carro novo (e deu perda total),
em 2001, quando Seu Pontes voltava de uma atividade da V Conferência Municipal
(e I Conferência Regional) dos Direitos da Criança e do Adolescente de Corumbá,
sediada no antigo anfiteatro do Campus do Pantanal da UFMS. Ele manobrava seu
carro em frente do antigo terminal de ônibus, na rua Antônio Maria, para o
desembarque de uma de suas colegas de Conselho, a Professora Margarida Garrido
Duarte, então auxiliar do Padre Ernesto Sassida. Além do susto com o violento
impacto da colisão, só o estrondoso prejuízo causado ao Amigo, que nem o também
saudoso Doutor Márcio Baruki, com toda a sua capacidade e experiência,
conseguiu mitigar nos tribunais.
Essa
generosidade que caracterizara o comportamento de Seu Pontes em sua maturidade
era fruto de seu passado de dificuldades, de sua infância pobre. Costumava
contar, com ar pesaroso, que as lembranças de seu dia-a-dia na caatinga, em
Pernambuco, impediam que ingerisse alimentos como leite e ovos, pois, a fartura
em sua infância desprovida era traduzida por esses alimentos. Diferente da
maioria de seus contemporâneos, que tinham o hábito de dizer que “não se deve
dar esmolas a desocupados”, ele, discretamente, ajudava algumas famílias por ter
experimentado a pobreza.
Não
por acaso, foi um dos voluntários da Ação da Cidadania contra a Fome e Pela
Vida em todas as suas campanhas, desde o tempo das parcerias com o Sino da
Caridade, da Cidade Dom Bosco, entre 1993 e 1999, além de ter coordenado a
campanha Natal sem Fome/2004. Até porque a Professora Camila, sua Companheira
de Vida, foi das primeiras voluntárias do Padre Ernesto, ainda quando a sede
era a casa de Dona Catarina, onde iniciou o quase septuagenário projeto de
inclusão social. O Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania foi
coordenado pelo saudoso Dom José Alves da Costa, então Bispo da Diocese de
Corumbá, até 1999, tendo sido sucedido pelo coordenador-adjunto, o querido
Padre Pasquale Forin, e esteve em plenas atividades até 2005, quando passou a
fomentar políticas públicas de combate à fome e de efetivação do controle
social, pois naquele período foram criadas e implementadas políticas públicas
nacionais de enfrentamento a esse vergonhoso flagelo social, que agora volta a
passos largos, por conta da política monetarista vigente desde 2016.
Se,
em seu início de voluntariado, Seu Pontes era relativamente tímido, contido,
até porque ainda era militar da ativa (mas já próximo de passar para a reserva
remunerada), com a prática e o aprendizado, muitas vezes penoso – passando
noites em claro a estudar a legislação e longos textos elaborados por
sociólogos e outros estudiosos –, ganhou uma desenvoltura impressionante, a
ponto de incomodar os doutos que faziam consultorias chapa-branca, isto é, na
perspectiva dos interesses do gestor. Tanto assim, ganhou certa feita o nada
agradável título de “persona non grata” de um “lua preta” de Campo Grande, que
publicamente dissera que ele “não tinha perfil para ser conselheiro”, ao que
ele, em alto estilo e surpreendente presença de espírito, respondeu a queima-roupa:
“Perfil, vírgula, doutor! Depende da ótica: eu não sirvo nem servirei aos
senhores...”
No
tempo em que fomos voluntários de movimentos sociais, em Corumbá, ele sempre
tinha algo para “aliviar” o estresse de todos, até porque – quem diria! – vivemos
no olho do furacão, no fio da navalha, sobretudo quando o governador Zeca do PT
chamou o Delcídio e seus, digamos, aliados... Seu Pontes, durante aquele
período de acusações levianas contra a cidadania, com farta quantidade do
melhor pão doce ou bolo de laranja, refrigerante e café, era o incansável
patrocinador do “coffee break”
popular, numa bem humorada chacota à extravagância com que o poder público
despende com lanches e salamaleques, enquanto teima em economizar na
infraestrutura necessária para o funcionamento eficiente dos conselhos, comitês
e comissões de controle social e participação pública.
Lamentavelmente,
o chamado “fogo amigo” é o pior quando estamos em pleno embate. Seu Pontes, até
por sua experiência militar (dominava como ninguém o sentido dessa expressão),
entendia de estratégia e sabia ceder quando era hora. Mas a vaidade e a falta
de percepção de novos membros de conselhos, ávidos por galgar cargos e ganhar
visibilidade perante os mandarins de plantão e toda a comunidade (alguns declaradamente
interessados em fazer carreira política), criaram tantas falsas questões e,
obviamente, retrocessos, que, já com a idade e a saúde dando sinais de
exaustão, preferiu humildemente bater em retirada, mas sem ser percebido, pois
a idéia foi sempre insistir em uma unidade nem sempre possível, ante as
investidas draconianas do gestor da vez.
Até
desafetos declarados reconhecem as importantes contribuições de Seu Pontes,
cuja atuação era rigorosa, crítica, mas, sobretudo, colaborativa: ainda que
muitas vezes no papel de simples membro suplente, sua percepção e vontade de
construir – porque acreditava como ninguém no valor do controle social – faziam
a diferença e engrandeciam o colegiado de que era membro. Da mesma forma nas
entidades de que participava, não sem motivo acabava saindo de muitas delas...
Não
pudemos, por razões de sobrevivência, sair de Corumbá nos últimos anos, mas a
Professora Camila, Companheira de Seu Pontes, conversou com minha Companheira e
lhe revelou que estava feliz e bem disposto nos últimos anos, inclusive no
período imediatamente anterior à sua derradeira partida. Como bom retirante,
foi um incansável guerreiro, de modo que os mais rudes desafios ele encarava
com disposição e desassombro. Eternizou-se do mesmo jeito com que viveu:
vencendo os obstáculos sem temor nem hesitação...
Até
Sempre, Seu Pontes, incansável Companheiro e Amigo de tantas jornadas
memoráveis e únicas – “mesmo que o tempo e a distância digam não, mesmo
esquecendo a canção” (Milton Nascimento e Fernando Brant, “Canção da América”).
Ahmad Schabib Hany
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