quarta-feira, 26 de julho de 2023

CADÊ LÍVIA?

Cadê Lívia?

Esta é a pergunta que não quer calar, treze anos depois de seu desaparecimento. Em boa hora a Escola Superior do Ministério Público de MS promoveu palestras sobre o tráfico de pessoas. Foi o momento de reencontrar referências nacionais, estaduais e locais da campanha de enfrentamento, como Estela Scandola, Tania Comerlato, Andréa Cavararo, Suzete dos Santos e Renata Papa.

Lívia Gonçalves Alves, menina ávida de Vida, como toda criança movida pela inocência e pela curiosidade. Desapareceu num domingo, 13 de junho de 2010, Dia da Retomada de Corumbá, a poucas quadras de sua casa, no bairro Cristo Redentor, e nunca mais foi vista, e com o tempo sequer lembrada, como que nunca tivesse existido. Por isso, desde então, a consigna no Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD), e a partir de 2013 Observatório da Cidadania Dom José Alves da Costa, é Cadê Lívia?

Diferente de hoje, o Brasil vivia tempo de esperança e prosperidade, que esperamos volte, a despeito das hordas que teimam em infelicitar o porvir deste grande país-continente. Tão logo a notícia do desaparecimento da menina Lívia se espalhou (então as milícias digitais, que espalham em fração de segundos milhões de fakenews, não existiam), toda a rede de proteção jurídico-social existente à época, e sensível a esse clamor popular o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Corumbá, passou a dar a sua efetiva contribuição para a elucidação do caso.

Não sei por quê, mas quem é pai/mãe tem intuitivamente uma inquietude incessante que nos dá uma estranha sensação de que, assim como Lívia, Larissa e outras crianças cujo desaparecimento não foi devidamente elucidado por quem de direito (e dever) nesta Corumbá de todos os encantos, a inocência e o porvir de nossa infância, adolescência e juventude não estão assegurados, a despeito de o Brasil, graças à luta da sociedade civil por décadas a fio, ser vanguarda não só na Constituição Cidadã e no Estatuto da Criança e do Adolescente (no SUS, no SUAS, na legislação ambiental etc), mas no conjunto de políticas públicas paulatinamente construídas entre 1992 e 2016.

Decorridos treze anos, a consigna do Observatório da Cidadania veio à tona por ocasião da atividade promovida pela Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso do Sul em Corumbá. Durante as palestras da Assistente Social Estela Scandola e da Psicóloga Tania Comerlato, o questionamento foi levantado: Onde está a menina Lívia? E a menina Larissa? Depois de mais de uma década, por que os órgãos responsáveis sequer as lembram durante atividades voltadas para o enfrentamento do tráfico de pessoas? Presente à atividade, a Cientista Política Andréa Cavararo, superintendente de Política de Direitos Humanos de Mato Grosso do Sul, associou-se à preocupação das palestrantes e propôs somar-se a atividades pelo esclarecimento do caso.

Como em toda atividade humana, é preciso que a memória seja preservada, sobretudo em respeito à Vida e à dignidade humana das vítimas, pois a invisibilidade a que foram submetidas essas crianças é de pasmar até os mais experientes ativistas de direitos humanos. Felizmente, o esforço sobre-humano do presidente destituído do CMDCA na época, o incansável Anísio Guilherme da Fonseca, querido e leal Companheiro de memoráveis lutas da sociedade civil, permitiu que os anais desse lócus registrassem as idas e vindas do processo inconcluso. Além disso, a Jornalista Ivanise Hilbig de Andrade, então mestranda na UFMS e atualmente doutora na UFBA, fez inestimável trabalho de pesquisa sobre esses e outros casos similares na região, bem como Jornalistas locais que se debruçaram sobre o episódio.

Indiscutivelmente, o evento permitiu o reencontro com referências históricas nessa luta e que nos últimos anos, tempos sombrios, não havia como serem realizadas atividades com essa perspectiva, de enfrentamento do tráfico de pessoas, da exploração sexual infanto-juvenil, da exploração do trabalho infantil, do trabalho análogo ao escravo etc. Com Cidadãs incansáveis como Estela Scandola, Tania Comerlato, Andréa Cavararo, Suzete dos Santos e Renata Papa, essa árdua e muitas vezes incompreendida pugna será retomada de modo efetivo e consistente, sem alardes nem pirotecnia, mas com a discrição e respeito à dignidade que a temática requer.

Reverência oportuna

Neste Dia Internacional da Mulher Negra e Dia Nacional do Escritor, 25 de julho, sinto-me no dever de incluir em meu modesto texto uma reverência aos grandes seres humanos que, nos sábios versos de Milton Nascimento e Fernando Brant (Maria Maria), são “... uma certa magia, / uma força que nos alerta / ... / Quem traz na pele essa marca / possui a estranha mania de ter fé na vida”. Eis que nasceram com o dom de refletir por meio de atitudes e também das letras, sem perder a candura, o foco e, sobretudo, a humanidade.

Grandes e queridas Companheiras de luta e de causas maiores, a que adicionamos o nome de Gregória Oliveira na fundação do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais (FORUMCORLAD), há 30 anos; a Professora Maria de Paula, Rose de Paula, Irmã Zenaide Brito e as então pós-adolescentes Cristiane Sant’Anna de Oliveira e Edenir de Paulo, desde o começo da Ação da Cidadania, do Pacto Pela Cidadania e depois no FORUMCORLAD; as então estudantes Hélia e Márcia Costa, incansáveis guerreiras da Educação e Cidadania, e que tenho a honra de acompanhar há mais de 25 anos; a Assistente Social Dulce Regina Amorim cuja determinação foi um aprendizado no período em que convivi no Fórum de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de MS (FEDCA/MS), e a querida Professora Verônica Braga, não só Educadora, mas cidadã focada.

Obviamente, a saudação continua com os das letras, em especial os mais longevos, como o querido Amigo e Menestrel da Cidadania Balbino G. de Oliveira, que ao lado do saudoso Poeta Walter Rien fundou a gloriosa APEC (Associação de Poetas e Escritores de Corumbá), há exatos 20 anos -- e permita-me o compreensivo leitor manifestar nesta oportunidade minha tristeza pelo fechamento da emblemática Casa de Tintas N. Sra. de Aparecida, que com a Farmácia Santo Antônio do saudoso Senhor Eldo Delvizio e da Casa Katurchi do igualmente saudoso Senhor Jorge José Katurchi representam a tríade da (re)existência de imigrantes chegados de Cuiabá (caso de Seu Balbino) ou de além-mar (caso das Famílias Delvizio e Katurchi) para perenizar a Corumbá de todos os povos, culturas, sonhos e lutas (emprestando do querido Amigo Professor Valmir Batista Corrêa, autor de ‘Corumbá, terra de lutas e sonhos’, que com os Amigos Professores Lúcia Salsa Corrêa e Gilberto Luiz Alves lança neste dia 27, na Estação Cultural Teatro do Mundo, em Campo Grande, livros seus e de importantes parceiros, como Carla Centeno, Simone Mamede, Maristela Benites e Douglas Diegues, além da mostra de artes plásticas de Darwin e A. Mirassol).

Além dos e das escritoras referidas, temos a saudar Luiz Taques, Edson Moraes, Marlene Mourão, Denise Campos Diniz, Tereza Exner, Nelson Urt, Armando Arruda Lacerda, Matilde Mônaco, Roberto Maciel, Marilene Rodrigues, Rubén Darío Román Áñez, Rosildo Barcellos, Acelino Chumbo Grosso, Êneo Nóbrega, Benedito C. G. Lima, Rosa Xavier, Luiz Carlos Rocha, Sagramor Farias, Mara Leslie do Amaral, Dunia Schabib Hany e Luana Schabib (Sobrinhas que se decidiram pelas letras bem cedo, com livros publicados). É claro que, a menos de dois meses de sua eternização, não poderia deixar de saudar o saudoso Amigo Augusto César Proença, autor alado de uma bela biobibliografia que atravessou fronteiras, junto aos igualmente saudosos Poeta Manoel de Barros (que tive a honra de conhecer pessoalmente por meio do Amigo Luiz Taques), Fausto Matto Grosso, Ricardo Brandão, Júlio G. Atlas, Said Abjujder, Victorio José Menéndez, Adolpho Emydio Cunha, Dilermando Luiz Ferra, Rubens de Castro, Lécio Gomes de Souza, ‘Tia Fifina’ (C. P. Pereira) e J. L. de Macêdo, a grande maioria Amigos herdados de meu saudoso Pai em minha juventude.

Em mensagem enviada à Amiga Estela Scandola, com quem tive a honra de trabalhar em fins da década de 1990, anexei uma emblemática interpretação da única e querida Elis Regina, como é de seu costume (da Estela), de ‘Los Hermanos’, do eterno compositor Atahualpa Yupanqui, pelo que representa este momento de novo recomeço: “Eu tenho tantos irmãos, / que não os posso contar, / no vale, na montanha, nos pampas e no mar. / Cada qual com seus trabalhos, / Com seus sonhos cada qual, / com a esperança adiante, / com a memória por trás. / ... / Gente de mãos quentes, / e por isso da amizade, / com uma reza pra rezar, / com um choro pra chorar. / Com um horizonte aberto, / que sempre está mais além, / e com essa força pra buscá-lo / com tesão e vontade. / Quando parece mais perto / é quando se distancia mais. / ... / E assim seguimos andando / curtidos de solidão, / nos perdemos pelo mundo, / e voltamos a nos encontrar. / E assim nos reconhecemos / pelo distante olhar, / pelas trovas que mordemos, / sementes de imensidão. / E assim seguimos andando / curtidos de solidão, / e em nós os nossos mortos / pra que ninguém fique atrás. / Eu tenho tantos irmãos, / que não os posso contar, / e uma irmã bem formosa / que se chama Liberdade.”

Ahmad Schabib Hany

quarta-feira, 19 de julho de 2023

CONFIANÇA E VIGILÂNCIA

Confiança e vigilância

O retorno do Brasil à civilidade tem exigido, ao mesmo tempo, confiança e vigilância, sobretudo pela insistência de hienas travestidas de gente, dominadas por desejo insano de predar o digno processo de emancipação social do povo brasileiro.

Confiança e vigilância, esse é o binômio da contemporaneidade.

Em pouco mais de seis meses a sociedade civil e o Estado Democrático de Direito retomam o nível civilista (e civilizado, no sentido mais amplo e destituído do ranço etnocêntrico) anterior ao período obscurantista imposto entre 2016 e 2022.

A confiança, de um lado, é decorrência natural do protagonismo cidadão construído desde antes da Constituinte de 1987-88, forjado nas jornadas democráticas do penoso e longo período de trevas a que o país esteve submetido por conta da aventura golpista de 1964.

Essa confiança vem da maturidade alcançada pela cidadã e cidadão brasileiro, que não só soube dar consistência e vida ao conjunto de artigos, alíneas e parágrafos constantes da Carta Constitucional e leis complementares e ordinárias que fizeram do Brasil vanguarda no concerto das nações entre a última década do século XX e as primeiras décadas deste.

A despeito do complexo de vira-latas de inexpressivas mas barulhentas hordas bizarras que se deixaram contaminar pelo ódio disseminado ao longo da última década, o Brasil, ou melhor, o Povo Brasileiro (com maiúsculas) tem dado provas inequívocas da altivez e galhardia com que protagoniza verdadeiras transformações exemplares mundo afora: uma sabedoria invejável, uma capacidade de resiliência surpreendente e, sobretudo, um senso extraordinário de renascer das cinzas.

Afinal, quem não se lembra dos desmandos, tramas e tramoias, além da descontinuidade e do desmonte das políticas públicas em todas as áreas durante o período obscurantista em que o golpista e o inominável se mancomunaram para o retrocesso do Brasil em seu histórico processo conquistas dignificantes? Esse cenário de guerra de terra arrasada que traumatizou, sobretudo, as novas gerações durante a pandemia de covid-19 precisa ser reparado com vigor, competência e total eficiência.

Não se trata apenas nas áreas da Saúde, Educação, Cultura, Desportos, Assistência Social, Habitação, Meio Ambiente, Direitos Humanos, Ações Propositivas, Inclusão LGBTQIA+, Igualdade Racial e de Gênero, Desenvolvimento Local e Ciência, Tecnologia e Inovações. Mais que nunca é preciso reparar os danos causados pela acintosa prevaricação ocorrida desde 2016, início dos desmandos e do desmonte do Estado Democrático de Direito. Além da inadiável punição exemplar de todos os responsáveis diretos e seus comparsas nessa conspiração fascista, de triste memória.

Por outro lado, a vigilância é fundamental neste processo de retomada do Brasil como nação que não desiste de continuar a empreender sua emancipação plena.

Não se trata de promover ‘caça às bruxas’, próprio dos regimes fascistas e congêneres. À luz do Estado de Direito, é fundamental que seja exercida a vigilância social, que, aliás, está consignada na Constituição Cidadã de 1988 no título da Ordem Social, em diversos artigos, sob o nome de Controle Social.

A Constituinte de 1987-88, ciente da sevícia, desídia e sedição características da hordas da ultradireita, fez constar de todas as políticas sociais uma estrutura institucional, ou melhor, um lócus, que depois passou a ser denominado de conselho paritário ou tripartite (conforme a conformação proposta pela lei complementar de cada política pública em questão). Embora a melhor conformação seja a da Saúde, tripartite (50% representantes do segmento dos usuários, 25% representantes do segmento dos trabalhadores em saúde e 25% dos prestadores de serviços e gestor), os conselhos paritários também têm excelente resolutividade.

Obviamente, esses espaços de vigilância, durante o período obscurantista, perderam sua efetividade, tendo-se tornado mera instância burocrática em todas as esferas (federal, estaduais e municipais). O artifício para burlar a vigência desse instituto constitucional se resume no controle pelo gestor do processo de preenchimento das vagas correspondentes à sociedade civil (ou segmentos não governamentais) pelo próprio conselho ou por fóruns ‘pelegos’, criados por figuras ligadas à administração pública sem qualquer autonomia. É pauta inadiável a reconquista da autonomia desses processos de eleição efetiva, longe de qualquer interferência pelo gestor setorial, para que a sociedade exerça uma vigilância eficiente, segura e resolutiva.

Em síntese, a confiança no Estado Democrático de Direito só encontra efetividade sempre e quando a vigilância (entendida por controle público, social ou popular) for conquistada pela cidadania. Só assim as hordas fascistas não encontrarão eco em sua mal-intencionada atuação de desacreditar as conquistas democráticas por meio de factoides mirabolantes destituídos de qualquer base real.

Nas décadas de 1980, 1990 e 2000 Corumbá e Ladário foram exemplo não só para Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, mas para todo o Brasil e, inclusive, algumas instituições financeiras multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), quando das discussões para a configuração do monitoramento de megaprojetos como o Programa BID-Pantanal.

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 13 de julho de 2023

FOME, DE COMIDA E DE PODER

Fome, de comida e de poder

O relatório bienal da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) constata o retrocesso do Brasil sob o desgoverno dos ‘patrioteiros’: mais de 21 milhões de brasileiros passavam fome entre 2022 e 2023, isto é, mais de 5 milhões que no período anterior (2020 a 2021).

Uma vergonha para o país que é dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo.

De um lado, fome de comida: mais de 21 milhões de brasileiros, como revelou o mais recente relatório da Organização das Nações unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Do outro, fome de poder: as elites saudosas do tempo da casa grande e da senzala, do tempo em que resolviam tudo por suas leis, sem a existência de direitos individuais, sociais, coletivos, trabalhistas e difusos (as diferentes gerações, ou dimensões, dos direitos humanos, consignados de modo didático na Constituição de 1988), e que para se locupletar em 2016 recorreram a toda sorte de ‘aliados’, por sinal, muito parecidos: milícias, grileiros, garimpeiros, madeireiros, sonegadores, contrabandistas, traficantes, quadrilheiros, falsos religiosos (atrás do ‘oro, oro, oro’) e políticos corruptos de toda estirpe.

Depois de ter saído do mapa da fome em 2008, o Brasil voltou a registrar mais de dois por cento da população abaixo da linha da pobreza a partir de 2016, quando os golpistas caem de paraquedas, sob a batuta do ‘brimo’ Temer, Romero Jucá, Aéreo Never e Eduardo Cunha, e com a maior cara deslavada desmontam todas as conquistas sociais e econômicas implantadas a partir da implementação da Constituição Federal de 1988, mais exatamente nos governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Ninguém precisa morrer de amores por Dilma, Lula, Fernando Henrique e Itamar, mas é inegável que sua -- de todo(a)s ele(a)s -- formação democrática, forjada na luta contra o regime de 1964, foi determinante para ir construindo o Estado Democrático de Direito com todas as políticas sanitárias, socioassistenciais, educacionais, culturais, habitacionais e econômicas paulatinamente implantadas desde 1993 e até abril de 2016.

Porque com o ‘brimo’ Temer e o inominável (agora inelegível) tudo isso foi desmontado, num retrocesso nunca antes visto em qualquer democracia. Antes de 2018 os sinistros de Temer já se empenhavam em ‘flexibilizar’ as políticas de Educação, Saúde, Assistência Social, Cultura, Habitação, Saneamento e Soberania Nacional, Energética e Tecnológica.

Ao lado de Henrique Meirelles (que com Lula tinha sido um grande presidente do Banco Central, mas que capitulou perante o desavergonhado ‘batrício’, da terra-natal de meus saudosos Pai e Avô materno, o Líbano), do presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República Sérgio Etchegoyen e do comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, além do general da reserva Augusto Heleno, em nome de um patriotismo do tempo de Sylvio Frota, o ministro do Exército demitido sumariamente pelo presidente Ernesto Geisel por atentar contra o processo de redemocratização articulado pelo general Golbery do Couto e Silva em seu governo.

Foi esse patriotismo exacerbado e nada racional que levou o inominável açambarcar os destinos de uma população com mais de 200 milhões de habitantes deste país-continente, e deu no que deu: no lugar de políticas sociais e sanitárias, promoveu a flexibilização da venda de armas e munições, inclusive de uso restrito das forças de segurança; ao invés de valorizar a equipe técnica do IBAMA, ICMBio e INPE, desmontou o sistema de vigilância e controle ambiental que potencializou a ação de organizações criminosas em todos os biomas existentes no país, sobretudo na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado; em vez de fortalecer o SUS (Saúde), o SUAS (Assistência Social), o SUSP (Segurança Pública) e a rede de proteção infanto-juvenil, feminina, das populações em situação de vulnerabilidade social, disseminou o ódio contra indígenas, afrodescendentes, quilombolas, ribeirinhos, as mulheres, casais homoafetivos, populações lgbtqia+ e nordestinos.

Sabe aquele adágio popular, de que “vergonha é roubar e não conseguir carregar”?

Foi o que esses arremedos de ‘democretinos’ fizeram: forjaram factoides por meio da ‘Leva Jeito’ da dupla Marreco (de Maringá) e Urinol e as famiglias (que se fingem de éticas agora que a máscara da quadrilha caiu) da meia dúzia de oligopólios midiáticos que sugam as verbas públicas e desinformam as pessoas de boa-fé. E aí, zap!, a corja de ‘patrioteiros’ fascistas não perdeu tempo e usurpou bem ao seu estilo, mancomunada aos milicianos, grileiros, madeireiros, garimpeiros, sonegadores, traficantes, contrabandistas, jagunços, falsos religiosos, falsos patriotas e falsos democratas, que na calada da noite saem por aí delinquir, prevaricar, procrastinar, conspurcar, fornicar e ‘otras cositas más’...

Mas por quê? Ele(a)s, afinal, não são ‘patriotas’? Não são, como se declaram, ‘cristãos’?

É que há diversas formas de serem patriotas, diversas formas de serem cristãos...

No caso dos fascistas, partem de princípio bem narcisista, de que só o(a)s ‘capazes’, como ele(a)s, são merecedore(a)s do bem-estar proporcionado por aquilo que ele(a)s entendem ser um ‘mérito’, uma ‘conquista’. Dessa forma, a fome, a miséria e as vulnerabilidades são decorrência de sua ‘incapacidade’, ou da ‘fatalidade’, da ‘sorte’, de ‘seres inferiores’.

Da mesma forma com os plutocratas (com ‘l’, por favor!). Fazem questão de não conceber que o Estado de Direito seja democrático e seja provedor dos mínimos sociais, coisa que a Europa e os Estados Unidos (cuja sociedade é modelo para si) resolveram isso no início do século XX, logo depois do crash de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, quando o economista John Maynard Keynes desenvolveu a política do Estado de bem-estar social para atender às populações desamparadas decorrentes desse processo propriamente capitalista, a volatilidade do mercado.

Em poucas palavras, pois os fatos falam por si: o descalabro em que nos encontramos não é fruto do acaso ou da própria incompetência do ‘brimo’ Temer e do inominável (e agora inelegível). É resultado da forma como compreendem a administração pública, a gestão do Estado, na ótica do ‘Estado mínimo’, como Ronald Reagan, o ator canastrão que depois de ser dedo-duro no macarthismo (foi ele que fez com que Charles Chaplin fosse expulso para a Inglaterra, acusado de comunista durante a guerra fria) virou presidente dos Estados Unidos, e a ‘dama de ferro’ Margareth Thatcher, primeira-ministra da Inglaterra, em fins da década de 1980, decidiram como seria a ‘globalização’, naquilo em que eles definiram como a doutrina do Consenso de Washington.

Por trás, obviamente, Jeffrey Sachs (não confundir com Ignacy Sachs, grande pensador, junto com o longevo e lúcido Noam Chomsky; Jeffrey é um economista do ‘Chicago boi’s’ que ganhou fama ao formular a transição do socialismo para o capitalismo na Polônia de Lech Walesa e que terminou numa crise econômica popular sem precedentes na história), um dos mestres do ‘posto Ipiranga’ do inominável, Paulo Guedes. Estiveram também no Chile do ditador sanguinário Augusto Pinochet, na Bolívia claudicante de Gonzalo Sánchez de Lozada (antes da Guerra da Água, que fez com que renunciassem, paulatinamente, Gony e Carlos Mesa, levando Evo Morales e depois Luis Arce e o MAS ao governo) e na Argentina paupérrima de outro ‘brimo’, Carlos Saúl Menem, de tristes memórias.

Essa é a fome, de comida e de poder, a mesma que inspirou grandes transformações ao longo da história. No momento em que o Estadista brasileiro do século XXI promove a volta das políticas públicas ao encontro de toda a população, a fome é objeto a ser erradicado, como já o foi há precisos 20 anos. Aliás, em menos de seis meses, 18 milhões de brasileiros já saíram da linha da pobreza tão logo as políticas públicas nessa área foram implantadas. Diferentemente dos ‘patrioteiros’, obcecados pelo poder e pela manutenção de suas benesses, o Brasil se reencontra com a História e a volta ao Estado Democrático de Direito se consolida de forma efetiva, consistente e plena.

Ahmad Schabib Hany

FOME, DE COMIDA E DE PODER

Fome, de comida e de poder

O relatório bienal da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) constata o retrocesso do Brasil sob o desgoverno dos ‘patrioteiros’: mais de 21 milhões de brasileiros passavam fome entre 2022 e 2023, isto é, mais de 5 milhões que no período anterior (2020 a 2021).

Uma vergonha para o país que é dos maiores produtores e exportadores de alimentos no mundo.

De um lado, fome de comida: mais de 21 milhões de brasileiros, como revelou o mais recente relatório da Organização das Nações unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Do outro, fome de poder: as elites saudosas do tempo da casa grande e da senzala, do tempo em que resolviam tudo por suas leis, sem a existência de direitos individuais, sociais, coletivos, trabalhistas e difusos (as diferentes gerações, ou dimensões, dos direitos humanos, consignados de modo didático na Constituição de 1988), e que para se locupletar em 2016 recorreram a toda sorte de ‘aliados’, por sinal, muito parecidos: milícias, grileiros, garimpeiros, madeireiros, sonegadores, contrabandistas, traficantes, quadrilheiros, falsos religiosos (atrás do ‘oro, oro, oro’) e políticos corruptos de toda estirpe.

Depois de ter saído do mapa da fome em 2008, o Brasil voltou a registrar mais de dois por cento da população abaixo da linha da pobreza a partir de 2016, quando os golpistas caem de paraquedas, sob a batuta do ‘brimo’ Temer, Romero Jucá, Aéreo Never e Eduardo Cunha, e com a maior cara deslavada desmontam todas as conquistas sociais e econômicas implantadas a partir da implementação da Constituição Federal de 1988, mais exatamente nos governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Ninguém precisa morrer de amores por Dilma, Lula, Fernando Henrique e Itamar, mas é inegável que sua -- de todo(a)s ele(a)s -- formação democrática, forjada na luta contra o regime de 1964, foi determinante para ir construindo o Estado Democrático de Direito com todas as políticas sanitárias, socioassistenciais, educacionais, culturais, habitacionais e econômicas paulatinamente implantadas desde 1993 e até abril de 2016.

Porque com o ‘brimo’ Temer e o inominável (agora inelegível) tudo isso foi desmontado, num retrocesso nunca antes visto em qualquer democracia. Antes de 2018 os sinistros de Temer já se empenhavam em ‘flexibilizar’ as políticas de Educação, Saúde, Assistência Social, Cultura, Habitação, Saneamento e Soberania Nacional, Energética e Tecnológica.

Ao lado de Henrique Meirelles (que com Lula tinha sido um grande presidente do Banco Central, mas que capitulou perante o desavergonhado ‘batrício’, da terra-natal de meus saudosos Pai e Avô materno, o Líbano), do presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República Sérgio Etchegoyen e do comandante do Exército Augusto Heleno, em nome de um patriotismo do tempo de Sylvio Frota, o ministro do Exército demitido sumariamente pelo presidente Ernesto Geisel por atentar contra o processo de redemocratização articulado pelo general Golbery do Couto e Silva em seu governo.

Foi esse patriotismo exacerbado e nada racional que levou o inominável açambarcar os destinos de uma população com mais de 200 milhões de habitantes deste país-continente, e deu no que deu: no lugar de políticas sociais e sanitárias, promoveu a flexibilização da venda de armas e munições, inclusive de uso restrito das forças de segurança; ao invés de valorizar a equipe técnica do IBAMA, ICMBio e INPE, desmontou o sistema de vigilância e controle ambiental que potencializou a ação de organizações criminosas em todos os biomas existentes no país, sobretudo na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado; em vez de fortalecer o SUS (Saúde), o SUAS (Assistência Social), o SUSP (Segurança Pública) e a rede de proteção infanto-juvenil, feminina, das populações em situação de vulnerabilidade social, disseminou o ódio contra indígenas, afrodescendentes, quilombolas, ribeirinhos, as mulheres, casais homoafetivos, populações lgbtqia+ e nordestinos.

Sabem aquele adágio popular, de que “vergonha é roubar e não conseguir carregar”?

Foi o que esses arremedos de ‘democretinos’ fizeram: forjaram factoides por meio da ‘Leva Jeito’ da dupla Marreco (de Maringá) e Urinol e as famiglias (que se fingem de éticas agora que a máscara da quadrilha caiu) da meia dúzia de oligopólios midiáticos que sugam as verbas públicas e desinformam as pessoas de boa-fé. E aí, zap!, a corja de ‘patrioteiros’ fascistas não perdeu tempo e usurpou bem ao seu estilo, mancomunada aos milicianos, grileiros, madeireiros, garimpeiros, sonegadores, traficantes, contrabandistas, jagunços, falsos religiosos, falsos patriotas e falsos democratas, que na calada da noite saem por aí delinquir, prevaricar, procrastinar, fornicar e ‘otras cositas más’...

Mas por quê? Ele(a)s, afinal, não são ‘patriotas’? Não são, como se declaram, ‘cristãos’? É que há diversas formas de serem patriotas, diversas formas de serem cristãos...

No caso dos fascistas, partem de princípio bem narcisista, de que só o(a)s ‘capazes’, como ele(a)s, são merecedore(a)s do bem-estar proporcionado por aquilo que ele(a)s entendem ser um ‘mérito’, uma ‘conquista’. Dessa forma, a fome, a miséria e as vulnerabilidades são decorrência de sua ‘incapacidade’, ou da ‘fatalidade’, de ‘seres inferiores’.

Da mesma forma com os plutocratas (com ‘l’, por favor!). Fazem questão de não conceber que o Estado de Direito seja democrático e seja provedor dos mínimos sociais, coisa que a Europa e os Estados Unidos (cuja sociedade é modelo para si) resolveram isso no início do século XX, logo depois do crash de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York, quando o economista John Maynard Keynes desenvolveu a política do Estado de bem-estar social para atender às populações desamparadas decorrentes desse processo propriamente capitalista, a volatilidade do mercado.

Em poucas palavras, pois os fatos falam por si: o descalabro em que nos encontramos não é fruto do acaso ou da própria incompetência do ‘brimo’ Temer e do inominável (e agora inelegível). É resultado da forma como compreendem a administração pública, a gestão do Estado, na ótica do ‘Estado mínimo’, como Ronald Reagan, o ator canastrão que depois de ser dedo-duro no macarthismo (foi ele que fez com que Charles Chaplin fosse expulso para a Inglaterra, acusado de comunista durante a guerra fria) virou presidente dos Estados Unidos, e a ‘dama de ferro’ Margareth Thatcher, primeira-ministra da Inglaterra, em fins da década de 1980, decidiram como seria a ‘globalização’, naquilo em que eles definiram como a doutrina do Consenso de Washington.

Por trás, obviamente, Jeffrey Sachs (não confundir com Ignacy Sachs, grande pensador, junto com o longevo e lúcido Noam Chomsky; Jeffrey é um economista do ‘Chicago boi’s’ que ganhou fama ao formular a transição do socialismo para o capitalismo na Polônia de Lech Walesa e que terminou numa crise econômica popular sem precedentes na história), um dos mestres do ‘posto Ipiranga’ do inominável, Paulo Guedes. Estiveram também no Chile do ditador sanguinário Augusto Pinochet, na Bolívia claudicante de Gonzalo Sánchez de Lozada (antes da Guerra da Água, que fez com que renunciassem, paulatinamente, Gony e Carlos Mesa, levando Evo Morales e depois Luis Arce e o MAS ao governo) e na Argentina paupérrima de outro ‘brimo’, Carlos Saúl Menem, de tristes memórias.

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 4 de julho de 2023

AOS 27 ANOS DE SAUDADE DO INCANSÁVEL PEREGRINO

Aos 27 anos de saudade do incansável Peregrino

Neste 4 de julho transcorrem 27 anos da eternização do incansável Peregrino que a Vida nos presenteou como Pai. Em homenagem à sua memória, posto novamente este texto, publicado no centenário de seu nascimento.

Postagem original: <https://schabibhany.blogspot.com/2014/10/aos-cem-anos-do-incansavel-peregrino.html>.

AOS CEM ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

 

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AOS CEM ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

 MAHOMA HOSSEN SCHABIB (1º/10/1914 – 04/07/1996)

 

Se estivesse vivo, o Peregrino que a Vida generosamente nos presenteou como Pai estaria completando 100 anos nesta quarta-feira, dia 1º de outubro de 2014.

Nascido no dia em que eclodira a Primeira Guerra Mundial na bucólica e formosa Rasen-Hache (província de Batroun), no Líbano, o incansável Peregrino chamado Mahoma Hossen Schabib ficara órfão de Mãe, dona Maquie Madi, aos 5 anos de vida. O Pai, Hussein Schabib, não quisera que os sete filhos (quatro meninas e três meninos) tivessem madrasta. Como caçula, coube às irmãs, bem mais velhas, cuidar dele. Por influência do primo mais velho, matemático e poeta Scandar Shalak, alfabetizara-se precocemente, e logo fora para o internato na distante Damasco (capital da Síria), onde concluíra com destaque os níveis fundamental e médio.

Ele contava, emocionado, que tivera o privilégio de ver a comoção popular quando da chegada do corpo do imortal poeta libanês Gibran Khalil Gibran (autor de “O Profeta”, entre outras obras) a Damasco para as homenagens póstumas na Síria e Líbano, quando professores participaram como oradores das celebrações ecumênicas. Igualmente, narrava com indisfarçável indignação sobre a repressão, pelos gendarmes franceses, ao movimento juvenil sírio contrário à opressão colonialista em meados da década de 1920, em que milhares de intelectuais e universitários foram torturados e mortos sem piedade, logo por aqueles que se diziam agentes da civilização e do progresso ao substituir o igualmente obscurantista e opressor império turco-otomano, de triste memória.

Obstinado, não sossegara enquanto não transpusesse as fronteiras políticas da Arábia, dividida à época pelos impérios britânico e francês (Líbano e Síria, colônias francesas; Palestina e Egito, colônias britânicas). Para tanto, passou-se por beduíno e atravessou todo o território da Palestina (ainda livre da ocupação sionista), pela fronteira do sul do Líbano e chegar, por Gaza, ao Cairo, no Egito, para cursar Filosofia na milenar Universidade Al-Azhar – fechada em 1954, início do governo de Gamal Abdel Nasser, por causa de seus arqui-inimigos da Irmandade Islâmica, contrária ao Estado laico implantado pelo maior estadista árabe dos últimos cinco séculos. Mas ele (meu Pai) não pôde concluir o curso universitário por causa da eclosão da Segunda Guerra Mundial: o Egito era colônia da Grã-Bretanha e o ardil colonialista obrigava os jovens mais instruídos ao alistamento militar – uma acintosa forma de eliminar a juventude inquieta porque esclarecida, feito bucha de canhão.

Mesmo a contragosto, acabou interrompendo os estudos no final do curso (1939), aceitando o conselho de seu irmão mais velho, Ale Hossen Schabib (que, naturalizado boliviano, virou Alejandro Hossen, pois, como em todo país hispânico, o primeiro sobrenome é o que conta). Esse irmão havia emigrado para a América no fim da Primeira Guerra Mundial e, depois de incursionar pela Amazônia brasileira, decidira estabelecer-se na Bolívia, de onde custeava os estudos do irmão caçula, além de ajudar a família com o que fosse possível naquele período de miséria e tragédias no Hemisfério Norte. A sua esperança – e consolo – era que a guerra não levasse muito tempo e que ele não demorasse a retornar ao Cairo para concluir seus estudos e seguir seu projeto de vida no Oriente Médio.

 

OUTRA CULTURA, NOVOS DESAFIOS

Mas não foi bem assim. Para começar, foi uma verdadeira epopeia chegar até a América do Sul, atravessando dois oceanos num barco de cruzeiro da companhia italiana de navegação Costa, o “Ana C”. Aportou em Arica, no Chile, após a travessia do Canal do Panamá com as suas comportas deslumbrantes. Em seguida, voou literalmente sobre a Cordilheira dos Andes até chegar a La Paz, a mais de três mil metros de altura, e seguir em outro voo até a capital do departamento de Beni, Trinidad, na Amazônia boliviana, para finalmente conhecer o irmão mais velho com quem só se relacionara até então por cartas – afinal, ele partira quando meu Pai era de colo. Adaptar-se à vida de mascate num país de cultura totalmente diferente da sua foi outra proeza. Com a ajuda do irmão que era como Pai, procurou estabelecer-se num povoado menor, Magdalena, para capitalizar-se e logo ganhar autonomia financeira. Mas as adversidades (entre elas, o naufrágio de seu batelão carregado de mercadorias) o fizeram descapitalizar-se e quase lhe custaram a própria vida, em 1940, que ele passara a grafar como “0000” (quatro zeros), pois os prejuízos o fizeram voltar à estaca zero.

Perseverante, em cinco anos – praticamente o período da sangrenta guerra que acabou com a inocência da humanidade –, entre a disciplina nos estudos (não abandonara o hábito de estudar, nem quando atingiu a terceira idade, lendo sistematicamente no mínimo quatro horas diárias) e no trabalho, aprendeu a arte do comércio e dois novos idiomas (espanhol e inglês), e logo era detentor de um capital monetário respeitável. Por essa razão, o irmão que fazia as vezes de Pai o aconselhara a ir se preparando para casar-se. Coincidência ou não, nessas incursões como mascate havia conhecido um dentista muito popular, de nacionalidade libanesa, o assim chamado doutor José (Yussef) Al Hany, Pai de dez filhos (seis meninas e quatro meninos) com uma única companheira, a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany, afável, culta e hospitaleira.

O doutor Hany, druso (ou derzi, religião espiritualista oriental); a dona Guadalupe, católica, de Pai maronita (variação libanesa de catolicismo cujo sacerdote pode se casar). Meu Pai, muçulmano. Como os árabes, a exemplo dos brasileiros, vivem e celebram a diversidade, não demorou muito para que a mais velha das filhas, a bela Wadia Hany Ascimani, decorrido algum tempo, viesse a contrair núpcias com o jovem imigrante. Não é demais dizer que naquela época, entre os árabes, não era tão acirrada a intolerância religiosa de hoje, alimentada pelas potências ocidentais dentro da ignóbil lógica do “dividir para reinar”, iniciada com a imposição do Estado sionista no território da Palestina em 1948, como perniciosa reparação dos danos causados pelos europeus nazistas em território europeu, e que nada têm a ver com os árabes, estes também vítimas dos abusos colonialistas até a presente data.

Casaram-se em abril de 1948 (ironicamente três semanas antes da formalização, pelas potências mundiais, do Estado de Israel), uma relação conjugal que durou 48 anos e dois meses (meus Pais já planejavam comemorar suas bodas de ouro, quando uma parada cardíaca interrompeu, em 1996, seus projetos comuns de Vida). Mas essas quase cinco décadas, como em tudo na Vida, não foram um mar de rosas, pois tiveram altos e baixos. Os primeiros cinco anos de vida conjugal, sim, por conta da estabilidade econômica então reinante na Bolívia, foram tranquilos: minha Mãe aprendeu logo as habilidades comerciais, tendo se tornado referência nos negócios crescentes da família. Deixaram a Amazônia depois do nascimento da segunda filha, indo residir na chamada cidade-jardim boliviana, Cochabamba, localizada num formoso vale da Cordilheira dos Andes e com excelente qualidade de vida, cultura e cosmopolitismo.

 

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VOLTA ÀS ATIVIDADES INTELECTUAIS

Nesse importante centro cultural boliviano, até por conta da estabilidade da economia familiar, meu Pai decidiu retomar os estudos na Bolívia, e não demorou muito para que exercesse com maestria o jornalismo, além de conduzir um programa radiofônico sobre a cultura árabe e as relações com a América Latina. (Era um período de efervescência política em todo o mundo: além da consolidação do socialismo como alternativa real para todos os povos vítimas do saque e da exploração de suas riquezas naturais e de sua gente, na Bolívia viviam-se as transformações decorrentes do triunfo da Revolução de 1952 boliviana, e na Arábia espalhavam-se os ideais de Nasser, um dos jovens líderes da Revolução de 1952 egípcia, que acabou com o jugo pró-inglês do rei Faruk no Egito e mudou os rumos do povo árabe disperso em 22 Estados divididos pelo Ocidente e das nações do Terceiro Mundo no século XX, ao fundar, com Broz Tito, Jawaharlal Nehru e Chu En-Lai, o Movimento dos Países Não Alinhados.) Talvez a excessiva visibilidade tivesse exposto muito meu Pai diante de adversários poderosos, até então desconhecidos, que se valeram da crise sociopolítica e econômica na Bolívia para desencadear contra ele uma série de ações judiciais e fragilizá-lo comercial e economicamente. Em meio a uma avalanche inflacionária de mais de nove mil por cento ao ano, no início da década de 1960, meus Pais decidiram vender todo o seu patrimônio, construído com muito esforço ao longo de três décadas, a fim de reunir o máximo possível para adquirir as passagens para dez pessoas (dois adultos e oito crianças) de trem e navio a fim de retornar ao Líbano, onde nasceu a caçula dos filhos e permanecemos por quase quatro anos. Nesse meio-tempo, meu Pai cobriu para a Rádio Cairo em espanhol, uma revista árabe-chilena chamada “Mundo Árabe” e uma edição em espanhol da revista brasileira “O Cruzeiro” a luta pela independência das nações árabes do norte da África (Argélia, Líbia e sobretudo o Egito, que passara a se denominar República Árabe Unida, um Estado confederado com a Síria e o Iraque, mas que não durou muito por conta das investidas ocidentais e de seus fantoches dos reinos, emirados e sultanatos árabes, temerosos de que a experiência socialista de Nasser no Egito irradiasse para os demais países do Oriente Médio).

Como o jornalismo não lhe proporcionara o suficiente para o sustento de uma família de onze pessoas (nove delas crianças e adolescentes), meu Pai lançara mão de suas últimas economias para tentar se estabelecer com um restaurante na segunda maior cidade libanesa, Trípoli (capital da província de Batroun), em sociedade com um primo que já fora seu sócio na fronteira da Bolívia com o Brasil (Guajará Mirim, Rondônia), Hussein Khalil Schabib. Entre as atividades comerciais e a agricultura (nas terras herdadas do Pai), tentou se recuperar financeiramente, mas decidiu por retornar para a América do Sul, pois o clima político no Líbano não lhe inspirava bons augúrios. Ele pressentira, pela insustentabilidade do cotidiano do cidadão comum libanês, a revolta das camadas populares contra as oligarquias libanesas, fato que eclodiu em 1974 com a trágica guerra civil que durou duas décadas, dizimou e empobreceu a população e destruiu a infraestrutura do país após a invasão de tropas israelenses e americanas, no início da década de 1980, provocando uma série de massacres nunca antes vistos no Líbano ou qualquer outra nação árabe, à exceção da Palestina e da Argélia em sua luta pela independência (depois, sim, vimos, em maior escala, a invasão do Iraque e da Líbia – e agora na Síria – pelos mesmos gendarmes e mercenários de Israel e Estados Unidos, em pleno século XXI). 

 

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A ESCOLHA DE CORUMBÁ

Nos quase 25 anos que vivera na Bolívia, inúmeras vezes viajara de avião ou trem pela região do Pantanal, tendo ficado em Corumbá por breves estadas, sobretudo depois que fixara residência em Cochabamba. Rumo a São Paulo, de onde comprava muitos itens para abastecer seu comércio atacadista, havia se encantado com o desenvolvimento desta região, que, depois da inauguração da ferrovia Corumbá – Santa Cruz de la Sierra, passou a compará-la à região de Milão pelo tronco ferroviário e a importância desse transporte para a integração do continente. Por isso, quando se decidiu por retornar para a América do Sul, sua escolha recaiu sobre Corumbá, de modo que os três filhos mais velhos (que estavam por chegar à universidade) ficassem na casa da Vovó Guadalupe e os demais não tão distantes do país que o acolhera na juventude e, a despeito das adversidades, lhe ensinara muito. Ele era muito grato ao povo boliviano por tudo que lhe ocorreu na Vida. Obviamente, como todo imigrante, amava todos os países que o acolheram. E sua relação com o Brasil foi como o coroar de seus sonhos e lutas, até pelo fato de haver feito a escolha em plena maturidade. Assim, quando se estabeleceu com um modesto comércio de armarinhos, à rua Joaquim Murtinho, plena Feira Boliviana (a poucas quadras da estação ferroviária da Red Oriental da Bolívia, à época separada por uma centena de metros da ferroviária da Noroeste), semanas antes do golpe militar de 1964, iniciava uma nova fase em sua renhida existência de Peregrino incansável.

Seis meses mais tarde, início da primavera de 1964, meu Pai deu início a seu projeto de trabalho (e de Vida) no coração do Pantanal e da América do Sul (era assim como ele via Corumbá, centro do bioma e do subcontinente): abrir uma sorveteria (com a solidária assessoria de um Amigo libanês, Fauze Rachid e sua esposa boliviana Pura Ceballos de Rachid, proprietários da popular Sorveteria Superbom, e que anos depois se mudaram para Puerto Suárez) e construir uma hospedaria (pousada) com menos de uma dezena de quartos, que em pouco mais de cinco anos se transformara em referência para comerciantes bolivianos e jovens turistas de todo o mundo por causa da higiene, segurança e atenção de seu proprietário poliglota e bem informado (como recomendavam os guias pioneiros que descobriram a rota dos Incas e os safáris fotográficos do Pantanal, sem qualquer incentivo das instâncias de governo federal, estadual e municipal de todos os países sul-americanos, que viam os mochileiros barbudos como suspeitos, quer fosse como “subversivos” ou como “maconheiros”), depois de ter conseguido comprar, com o pouco que lhe restava da venda de seus bens do Líbano, uma casa modesta de um simpático casal de idosos (o senhor Afonso, português, e dona Paulina, corumbaense, irmã de uma vizinha que logo ganhou status de vovó, a dona Ventura, muito cordial e sempre presente nos primeiros anos da chegada de toda a Família).

Foi com essa modesta pousada que, por quase trinta anos, assegurou o sustento digno de uma numerosa família de nove filhos, tendo como meta dar-lhes formação universitária. Quando um amigo bem próximo lhe propôs um empréstimo para ampliar as instalações da pousada, diante do movimento e do reconhecimento de seus serviços, ele revelou que não pretendia ser dono de rede de pousadas ou fazendas, mas pai realizado por ver todos os seus filhos a concluir os seus estudos, independentemente da profissão escolhida. Obviamente que a perda do filho mais velho (ocorrida em circunstâncias não elucidadas pela polícia em 1974, que me induziu a declarar, aos 15 anos, que fora por suicídio, fato questionado por seus colegas universitários e sobretudo por um investigador de uma seguradora que por coincidência se hospedara dois meses depois da tragédia), Mohamed (ou carinhosamente “Tchítchi”), o abatera profundamente: ainda que não abandonara as metas que traçara para sua Vida, com a maior dignidade e responsabilidade, não era difícil pegá-lo lacrimejando ao ler ou conversar com jovens que lembrassem o espírito arrojado do saudoso filho.

A propósito dessa tragédia, houve quem propusesse que denunciássemos o governo do mais sanguinário, corrupto e mercenário dos ditadores bolivianos, Hugo Banzer Suárez, pela morte de nosso irmão, cuja memória foi criminosamente vilipendiada pela chefia da polícia local nos tempos nefastos da ditadura. Lembro-me como hoje que, acompanhado de dois queridos Amigos (Juvenal Ávila de Oliveira, então radialista, e João de Souza Álvarez, fotógrafo à época da tragédia), visitamos quase todas as redações de jornais locais que haviam estampado a manchete sensacionalista do tipo “estudante (sic) universitário se fuzila sem deixar carta” (coisa típica de crônica policial chapa-branca, espreme-sai-sangue) a fim de esclarecer os fatos e pedir que republicassem a matéria dando-nos o direito de mostrar o outro lado dessa notícia. Alguns, obviamente, nem se deram a esse trabalho. Mas o velho Diário de Corumbá, então dirigido pelo jornalista Carlos Paulo Pereira Júnior, corrigiu a notícia com o devido destaque. O Pai dele, fundador do jornal em 1969, jornalista Carlos Paulo Pereira, tinha uma relação de amizade com o meu Pai, que desde as primeiras edições colaborava com matérias de política internacional. Por conta desse gesto, a partir de então meu Pai passou a assinar também matérias de fundo espiritual, não doutrinário, em que homenageava de alguma forma meu saudoso Irmão. Talvez o artigo dele que mais tenha repercutido na década de 1970 tenha sido “De onde viemos, para onde vamos e por quê?”, o qual foi publicado em dois idiomas em diversos jornais do Brasil e da Bolívia.

 

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A MILÃO SUL-AMERICANA

Ainda na década de 1970, por ocasião do bicentenário da fundação de Corumbá, publicou outro emblemático artigo, desta vez voltado para as perspectivas de desenvolvimento da região do Pantanal, quando explicou por que o turismo, ao lado do comércio, eram a vocação natural de Corumbá – tendo então comparado a posição estratégica do coração do Pantanal a Milão, na Itália. Essa matéria foi levada por um turista para publicá-la num jornal espanhol e em outro italiano. Desde então, quando calhava de se hospedar algum jornalista em sua pousada, meu Pai fazia questão de entregar alguns artigos de sua autoria, autorizando-o a publicar como quisesse, ainda que sequer publicasse a autoria. Ele foi um defensor declarado de que as ideias não têm “dono”, e é um dever fazê-las circular, em benefício da humanidade.

Mas foi ao lado de outros dois imigrantes como ele – William “Bill” Sefusatti, o ítalo-britânico dono dos barcos Califórnia, e Hermann Pettersen, alemão casado com Dona Maria, cuiabana, dono do Restaurante El Pacu, ambos localizados no Casario do Porto – que anonimamente deu sua contribuição para a consolidação do turismo contemplativo no Pantanal entre os fins da década de 1970 e início da década de 1990, quando alguns guias pioneiros brasileiros também passaram a integrar a atividade, tais como Clóvis Brandão Carneiro, Rodrigues, Guilherme Carstens, Armando Duprat, Roberto Kassar, Joaquim, Catu, Gilberto, José Bobadilha, José Paraguaio, Johnny Índio, entre outros. De forma bem profissional, ao lado da pioneira La Barca Tours, da família Nader, o também pioneiro J. Carneiro e seu Expresso do Pantanal consolidaram de forma sustentável o turismo voltado para as famílias que vinham conhecer o bioma pantaneiro pelo majestoso Rio Paraguai.

No início da década de 1990, frustrado com a sucessão de equívocos cometidos pelos gestores do turismo em nível estadual e municipal, que em troca de favores eleitoreiros, permitiam que os chamados guias piratas prostituíssem a atividade em Corumbá, iniciou uma série de artigos sobre a importância do turismo e fazendo explícitas advertências às instâncias administrativas. Recebia telefonemas de cumprimentos “pela coragem”, mas as sugestões reiteradas para a organização da atividade na região jamais viu serem implementadas. Tanto assim, em maio de 1994 encerrou as atividades de sua modesta pousada, depois de trinta anos de trabalho ininterrupto, em protesto contra a pirataria que então tomava conta do turismo.

Para não se deprimir, fez sucessivas viagens com a minha Mãe – ao México, onde mora um de meus irmãos e suas filhas; ao Líbano, onde deixou praticamente toda a Família, e à Bolívia, onde visitou a Família e amigos contemporâneos seus, ainda saudáveis – e, quando se preparava para organizar sua “segunda lua-de-mel”, para comemorar suas bodas de ouro, faleceu subitamente, ao meio-dia de uma quinta-feira, 4 de julho de 1996, aos 82 anos incompletos.

Minha Mãe, dona Wadia, viveu mais treze anos, tendo resistido estoicamente a um câncer virulento que a silenciou sem lhe tirar o gosto pela Vida, em menos de seis meses. Internada num hospital de Campo Grande, ela deu seu último suspiro no início da manhã de uma segunda-feira, dia 15 de junho de 2009, aos 83 anos de idade. Eles tiveram nove filhos (seis mulheres e três homens) e um legado de trabalho e muita dignidade, um exemplo para todos nós que nos orgulhamos de sermos filhos seus.

Ahmad Schabib Hany
1º de outubro de 2014