quarta-feira, 7 de setembro de 2022

A 'CULPA' É DO PROFESSOR DE HISTÓRIA...

A ‘culpa’ é do professor de História...

Diferentemente de 1922 e de 1972, as celebrações de 2022 são da dimensão do atual ocupante do Planalto -- medíocres e desfocadas -- , mas a ‘culpa’ é, como de costume, do professor de História...

O Amigo de mais de quatro décadas e Companheiro de jornadas memoráveis Historiador e Professor Paulo Marcos Esselin havia acabado de me compartilhar o artigo “Há um ‘historicídio’ em curso no Brasil”, escrito pelos historiadores Antônio Simplício Neto (UNIFESP), Paulo Eduardo Mello (UEPG), Valdey Araújo (UFOP) e Paulo Eduardo Teixeira (UNESP), em que advertem para o perigoso processo de esvaziamento da História (como durante o regime de 1964), publicado na página de opinião da Folha de S.Paulo em 3 de setembro último (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/09/ha-um-historicidio-em-curso-no-brasil.shtml).

Como a ratificar o alerta desses historiadores inconformados, a minha Companheira veio do trabalho com um depoimento tristemente revelador. No ônibus que ela tomara, dois jovens casais -- dois secundaristas e dois universitários -- problematizam um dos fatos expostos no artigo, a ‘perda da importância’ da disciplina de História nas escolas (fruto da gestão conservadora do governo Michel Temer no BNCC, isto é, Base Nacional Comum Curricular, documento responsável pela normatização dos currículos das escolas públicas e privadas do ensino básico).

O jovem casal de universitários não consegue disfarçar a indignação pela displicência dos jovens adolescentes que, com naturalidade, revelou desconhecer o porquê do feriado de 7 de Setembro e da ‘badalação’ em torno dessa data (obviamente, por conta do Bicentenário da Independência), além de atribuir ao professor sua santa ignorância. Mais conformada, a namorada do universitário (parecia tratar-se de estudantes de alguma licenciatura, isto é, da Educação) tentou tranquilizar o jovem possesso: “Calma, Bebê, que eu já estou acostumada com isso...”

Ora, além do desprezo das elites pela História, Geografia, Filosofia e Sociologia -- todas aglutinadas pelo BNCC de 2018, e com o agravante de professor de qualquer área poder ministrar essas disciplinas --, o esvaziamento de seu conteúdo durante os quase 20 anos de vigência plena da famigerada Lei 5.692/1971 (outorgada, sem qualquer debate, pelo então ministro Jarbas Passarinho nos anos de chumbo), sob pretexto de que a juventude precisava de ‘ensino profissionalizante’ (o mesmo discurso, aliás, dos saudosos da dita cuja).

Minha geração é a prova viva da ‘pasteurização’ da educação ocorrida durante a vigência da Lei 5.692/1971: se nos anos letivos de 1970 e 1971 tivemos História e Geografia (Filosofia e Sociologia já haviam sido retiradas dos currículos escolares), a partir de 1972 passamos a ter apenas Estudos Sociais (em que os tecnocratas do MEC tinham aglutinado História e Geografia), além de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB). No então chamado ensino superior, regido pela Lei 5.540/1968 (Lei da Reforma Universitária, resultante do Acordo MEC-USAID), a disciplina obrigatória a todas as graduações era Estudos de Problemas Brasileiros (EPB), versão universitária de OSPB.

No entanto, a despeito da doutrinação explícita durante os anos de chumbo e do fato de um coronel ter sido o titular do Ministério da Educação e Cultura (MEC), a estatura dos gestores da Educação fez com que a celebração do Sesquicentenário da Independência, em 1972, tivesse nuances memoráveis -- fosse para denunciar o oportunismo do ditador, que mandou cunhar moedas com sua imagem associada à de Pedro I, e, sobretudo, louvar a criatividade de docentes como o Professor João Papa, Professora Rosa das Graças Nunes Delgado, Professora Mary Calix Nachif, Professor Elias Francisco Machado Nemir, Professora Lourdesny dos Santos, Professor Odiney Taborda Papa, Professor Domingos Vieira Filho, Professor Luiz Carlos Katurchi, Professora Lúcia Cavalcante, Professora Joaquina Pires de Oliveira, Professora Maria Auxiliadora Maia e Professor Euro Nunes Varanis, cujas atividades extracurriculares nos despertaram o gosto pela Ciência, pelas Letras e, sobretudo, pela História.

E como gesto de gratidão, cabe, obviamente, um oportuno reconhecimento aos docentes e pesquisadores pioneiros dos cursos de História, Letras, Ciências e Pedagogia do Centro Pedagógico de Corumbá (CPC), da Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), como a Professora Edy Assis de Barros, Professor Valmir Batista Corrêa, Professora Lúcia Salsa Corrêa, Professor Gilberto Luiz Alves, Professora Kati Eliana Caetano, Professor José Carlos Françolin, Professor Masao Uetanabaro, Professora Gisela Angelina Levatti Alexandre, Professor José Carlos Abrão, Professor Lécio Gomes de Souza, Professor Salomão Baruki, Professor Leonides Justiniano, Professor José Sebastião Candia, Professora Vera Lúcia Santos Abrão, Padre João Antônio Borges Bertoldi, Professora Albana Xavier Nogueira, Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, Professor José Luiz Finocchio, Professor José Roberto Zorzatto, Professora Maria Auxiliadora Puccini e Professora Vilma Teixeira, entre tantos outros não menos importantes.

O Centenário da Independência, em 1922, foi muito mais fecundo, pois legou a Semana de Arte Moderna de São Paulo, o primeiro partido de âmbito nacional e de ideologia socialista do país (o velho PCB) e o Tenentismo, movimento dos jovens oficiais que são a base da Coluna Prestes e mobilizações ocorridas na República Velha, aliás, reprimidas com muita violência, mas que expuseram a caducidade da política oligárquica que teima se manter nestes tempos sombrios.

Não há como não enxergar que os sucessivos gestores da Educação, a despeito do alardeado patriotismo, não planejaram absolutamente nada em termos do resgate da História para o Bicentenário da Independência. Pelo contrário, tentaram açambarcar os ideais libertários dos mártires da emancipação do Brasil da coroa portuguesa. Mas a sua mediocridade e falta de foco, ou melhor, embasamento histórico, os levou a um pífio comício nada republicano, sobretudo, em Brasília e Rio de Janeiro. Como se a soberania nacional e os anseios libertários fossem exclusivos a reduzido número de privilegiados, por sinal, pouco afeitos à brasilidade, cujas características são a empatia, solidariedade, acolhimento e hospitalidade.

Felizmente, como ocorre há mais de 30 anos, por iniciativa da CNBB e dos movimentos sociais ligados às pastorais da Linha Seis, o emblemático contraponto da celebração do Bicentenário da Independência ficou por conta do Grito dos Excluídos, que em diversas capitais -- como São Paulo, com o importante apoio do Padre Júlio Lancelotti -- doou milhares de marmitas com refeições saudáveis e/ou cestas básicas às famílias com fome espalhadas pelo Brasil nestes tempos sombrios e nada generosos. Porque soberania rima e coaduna com empatia, não com exclusão, ódio e intolerância.

Em síntese, os patrioteiros amesquinham o civismo, transformam-no em fanatismo, e ao professor, em particular, de História, cabe a ‘culpa’ pelos descalabros e a descabida alucinação em vez de celebração. Resta a esperança -- bendita esperança! -- de que um dia não muito distante as novas gerações possam fazer a celebração deste Brasil diverso e generoso de forma plena, livre e com o entusiasmo e a espontaneidade que faz do Povo Brasileiro lindamente apaixonante. Eis a nossa sincera ode ao Bicentenário da Independência.

Ahmad Schabib Hany

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