OBRIGADO
POR EXISTIR, JÚLIA GONZALES!
Eternizaram-se Julinha Gonzales:
Júlia do PT, Júlia da luta, Júlia da solidariedade, Júlia do acalanto, Júlia do
acolhimento, Júlia da labuta, Júlia da moradia, Júlia do sindicato, Júlia da
família, Júlia da sabedoria, Júlia da APA Baía Negra, Júlia da ASSUFMS, Júlia
das conquistas coletivas e Júlia da esperança...
Eternizaram-se, neste fatídico Dia de Reis, Júlia
Gonzales, do Coração do Pantanal e da América do Sul, do sol e do sal... Sim,
no plural, porque Júlia é muito mais que uma, são várias guerreiras em uma só:
do PT, da luta pela moradia, da solidariedade, do acalanto, do acolhimento, da
labuta, do sindicato, da família, da sabedoria, da ASSUFMS, das conquistas
coletivas e da esperança. Plural, diversa, mas íntegra, única e de caráter.
Eterna e terna...
Por meio de uma breve mensagem da Professora Francy
Laura de Moraes, uma das Filhas da Julinha, tomei conhecimento da eternização
dessa incansável guerreira cujo legado de lutas e desafios permanece incólume
no cotidiano cidadão em Corumbá e Ladário. A Professora Francy Laura, em 2019,
fazia Mestrado em Educação, e foi graças a ela que pude rever, por derradeira
vez, a Julinha. Era novembro de 2019. Na ocasião, ela ficou de nos visitar em
casa, mas com a pandemia esse compromisso acabou sepultado pela Vida, que, como
disse Paulo Freire (também guru da Francy), não tem ensaio. Pois hoje, cá
estamos, a lamentar a ausência da Julinha e reverenciar seu legado, único como
ela.
Tive a honra e privilégio de conhecer a querida e
agora saudosa Julinha em meados da década de 1980, à época jovem servidora do
CEUC (atual CPAN da UFMS). O Brasil então se reencontrava com a sua História, e
os eleitores dos municípios privados de eleger seus prefeitos pelo voto direto
e secreto durante o regime de 1964 foram à êxtase nunca antes experimentada. Em
Corumbá, por 21 anos sem votar para prefeito (das cidades de área de segurança
nacional, estâncias hidrominerais e capitais os prefeitos eram nomeados, por
meio de lista tríplice, pelo general-presidente de plantão), em 1985, eram cinco
candidatos, entre eles o Professor Jorge Panovich (lembrado quase 40 anos
depois pela panela vazia), que contava com o entusiástico apoio de sua
correligionária Julinha.
Graças à gentileza do Jornalista Luiz Taques,
então correspondente em Campo Grande da Folha
de Londrina, tive a oportunidade histórica de assistir à entrevista de
Jorge Panovich, ao lado da esposa, Rosa Panovich, e do candidato a vice,
Saturnino Casanova. Seguidor de Paulo Freire, ainda proscrito em sua própria
terra, Panovich expunha uma agenda ousada para a época, dando ênfase à educação
popular e à cultura pantaneira, sobretudo, dos ribeirinhos. Repórter sagaz, o
Amigo Taques não perdera a oportunidade de questionar seu passado na Arena
Jovem, em que intelectuais corumbaenses também se envolveram. O Professor
Panovich não se constrangera e disse que se tratou de equívoco de uma geração
oriunda de famílias conservadoras, mas que naquele momento ele estava para dar
um novo rumo à história de Corumbá.
O mesmo impacto quando de meu primeiro contato com
Dona Eva Granha de Carvalho, Marlene Terezinha Mourão (a grande Peninha) e a
saudosa Heloísa Helena da Costa Urt – todas elas únicas, grandes mulheres,
guerreiras incansáveis e fundadoras do PT – tive quando conheci a então jovem e
determinada Julinha no CEUC (atual CPAN / UFMS), em meados de 1985. Sincera e inquisidora,
ela me questionara por não estar envolvido na campanha do Professor Jorge
Panovich e de seu vice, o também Professor Casanova. Em respeito a ela e à
minha amizade com diversos Companheiros de luta, dei as minhas razões, mas para
ela não foram convincentes, pois numa atividade do CEUC, semanas depois, deixou
claro que com ela não havia meia amizade: ou estava na luta, ou dizia qual era
o seu papel na história.
Só passei a merecer alguma consideração da Julinha
quando me viu, durante o segundo turno da campanha presidencial de 1989, num
debate em que Lula enfrentou Collor, o candidato da Globo. Desde então parece
que passou a me considerar digno de confiança. E com toda razão: durante o
regime de 1964, eram muitos os X-9, sempre batendo nas costas dos que tinham
coragem de se expor, com a nefasta função de levar relatórios sórdidos para
seus chefetes de plantão. Ela, como uma aguerrida lutadora, não aceitava
condutas como essas. Mas só me chamou de companheiro em 1998, quando da renhida
campanha de Zeca em Corumbá, e o Pacto Pela Cidadania realizara, em três meses,
seis Encontros da Cidadania, cujo ápice ocorreu no antigo anfiteatro do CEUC
por ocasião dos cinquenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em
dezembro daquele ano.
Num tempo em que o PT fazia promoções para bancar
suas campanhas, Helô, Peninha, Dona Eva e Julinha, ao lado de outras grandes
mulheres e homens, realizavam atividades dignas de registro: os canapés
inesquecíveis eram pretexto para encontros políticos produtivos, em que ideias
inovadoras traziam alternativas para uma sociedade engessada e cheia de nós
burocráticos. Creio que foi Helô quem teve a ideia de propor à Julinha integrar
o MNLM (Movimento Nacional de Luta por Moradia), de cuja coordenação regional
foi membro memorável. Da mesma forma, esteve à frente da luta pela implantação
da APA Baía Negra (para dar lugar a um dos elefantes brancos da ditadura, a
CODRASA, que deveria ter abrigado um pôlder para o plantio de arroz irrigado, a
um custo megalomaníaco, que ficou impune). Não só conseguiu transformar a
realidade, como liderou as famílias de ribeirinhos e lhes proporcionou
inclusão, cidadania e dignidade a toda prova.
Julinha não tinha qualquer apego pelo poder. Seu
oxigênio eram as lutas sociais, das quais nunca se afastou. Foi fundadora da
Associação dos Servidores da UFMS (ASSUFMS) e uma das dirigentes até pedir
exoneração da UFMS, ainda na década de 1990. Colocou sua experiência sindical a
serviço dos trabalhadores rodoviários (o pessoal do transporte coletivo urbano)
durante a gestão do João José (o JJ), sem mesquinharia nem protelação (como o
Professor Raul Delgado comprovou em um de seus videodocumentários que nos
compartilhou em homenagem a ela, que aparece aos 25 minutos de exibição com um
discurso contundente em que condena ausência de políticas sociais do ‘Brasil
Novo’ de Collor, as políticas recessivas e a exclusão social, disponível neste
link <https://youtu.be/y84iWtWOvL4>).
Quando uma líder autêntica, ativista incansável,
mulher empoderada, trabalhadora destemida e, sobretudo, Companheira (com letra
maiúscula) solidária e acolhedora como Julinha encerra a sua sagrada jornada e
sai de cena, perdemos todos um grande pedaço de nós mesmos, inclusive os eventuais
desafetos, porque com a sua dedicação, o seu aporte sincero, é toda a sociedade
a que se beneficia, sobretudo as novas, futuras gerações que terão o privilégio
de conhecê-la graças aos inúmeros registros, inclusive belos documentários
produzidos profissionalmente, com justiça e reconhecimento.
Com sinceridade, quando um Amigo muito querido fez
o Mestrado, eu torci para que ele, formado em Jornalismo por uma das maiores
faculdades de Comunicação Social do Brasil e em História em nosso glorioso
CPAN/UFMS, fizesse sua pesquisa de pós-graduação com base na luta, na
trajetória vitoriosa, de nossa sempre aguerrida e iluminada Julinha. Só
recentemente é que me disseram que trata da produção literária underground de
nossa região de fronteira, que, como bem pesquisou e documentou o Professor
Waldson Diniz em sua tese de Doutorado na USP, é pródiga para dar
invisibilidade a amplas camadas sociais, como os bolivianos, sujeitos de sua
pesquisa pioneira e corajosa.
Até sempre, Julinha, e obrigado por existir, por
dar visibilidade à mulher combativa do povo pantaneiro, à trabalhadora
destemida que não tem medo de cara feia e muito menos de jagunço metido a ‘macho’,
que se borra todo (este ‘macho’) diante do desafio de uma lutadora consciente e
digna de seu valor como Você! Nossa sincera solidariedade à sua querida Família
e às suas grandes Companheiras de luta e de fé por uma sociedade mais justa,
por um mundo melhor. Que os vereadores de Corumbá e Ladário denominem
logradouros públicos em sua honrada memória. E que a festa na Eternidade, ao
lado da igualmente querida e saudosa Helô Urt, tenha os acordes do querido
Mestre Agripino Magalhães, ao ritmo do rico cururu pantaneiro...
Ahmad
Schabib Hany
3 comentários:
Scha, você tem exercido uma missão incrível! não deixar que essa tempestade de gentes que varre a história também apague grande lutadoras! Muito obrigada messssssmo
Muito linda homenagem!Parabéns Schabib por sua sensibilidade com o mundo e especiamente com as pessoas
Obrigada! Que mulher corajosa.
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