SOMOS TODOS JOÃO ALBERTO
Em imagens
muito parecidas às que denunciam a violência psicótica de policiais que mataram
George Floyd em maio deste ano, a opinião pública brasileira, na véspera do
Dia Nacional da Consciência Negra, é tomada de perplexidade pelo surto
assassino de “seguranças” (sic) do Supermercado Carrefour em Porto Alegre que
levou à morte, em menos de seis minutos, João Alberto Silveira de Freitas.
As
trágicas imagens flagradas na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra deste
ano em Porto Alegre põem por terra todos os argumentos hipócritas da “democracia
racial”. Estão na gênese do Estado brasileiro ─ como de resto
todos os Estados decorrentes das igualmente criminosas colonizações hispânica,
inglesa, francesa, holandesa e belga ─ as causas da desumanização do
africano escravizado e de sua coisificação. Ou teriam se esquecido de que negros
e índios “não tinham alma”? E que a hegemonia econômica e “civilizatória”
europeia foi conquistada ao custo de um voraz genocídio superior a 100 milhões
de vidas africanas, além da total desestruturação das sociedades ancestrais da
África, reduzidas entre os séculos XVI e XIX (na verdade até hoje, pleno século
XXI) a centro provedor de um rentável negócio, o comércio escravista que encheu
de dinheiro a Inglaterra, França, Holanda, Bélgica... (não por acaso, junto com
a Espanha e Portugal, metrópoles coloniais enriquecidas também com as riquezas
locais, entre elas ouro, prata, pau-brasil, esmeraldas, cana-de-açúcar...).
Tão
inconsistentes quanto a narrativa negacionista de hoje ─ feito
diarreia fétida a ser expelida como rajadas de metralhadora de milicianos cada
vez mais poderosos e bem representados nas diversas esferas de poder ─, os argumentos
de que a “indolência” dos povos originários foram a causa do criminosamente
rentável comércio de escravizados (aliás, origem do capitalismo, em sua fase chamada
mercantilista, metalista e outras caracterizações transitórias). Reitero: tudo
isto está na essência do Estado que somente no século XX, graças a muita luta
de gerações generosas que deram seus melhores dias para a construção do Estado
Democrático de Direito, como consignado na Constituição Federal de 1988.
Não
nos esqueçamos, porém, de que há uma reduzidíssima minoria, hoje muito poderosa
─ porque
subitamente guindada ao poder graças a um golpe malsucedido gestado por
ex-democratas, se assim pudermos denominá-los, na ânsia de retornar ao poder
por meio de atalho, e que acabaram por entregá-lo a um lobo solitário,
verdadeiro predador dos valores democráticos ─, que tem
ojeriza por tudo aquilo que foi construído entre 1985 e 2016. Se Ulysses
Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, Franco Montoro, Leonel Brizola,
Darcy Ribeiro, Mário Covas, Florestan Fernandes, Freitas Nobre, Alencar Furtado
e Marcos Freire, entre outros/as não menos importantes, estivessem vivos,
figuras como obtusas como Aécio Neves, José Serra, Geraldo Alckmin, Roberto
Freire, Tasso Jereissati e Fernando Henrique Cardoso jamais teriam consumado a
desestabilização política que, entre 2014 e 2016, criou as condições para o
golpe travestido de impeachment.
E
por que, afinal, a violência desproporcional vem se multiplicando em todas as
regiões do País? Ao contrário do negacionismo cúmplice e cínico de agentes
políticos que hoje galgaram importantes cargos federais, a “caixa de pandora”
aberta para dar o golpe em 2016 disseminou e multiplicou os mais retrógrados
conceitos (aliás, preconceitos) que se remetem aos séculos XV, XVI e XVII
(período anterior ao Iluminismo): quando os porta-vozes dessas hordas néscias
criminosas negam e renegam tudo o que lhes incomoda, não fazem mais que
reconstruir o maniqueísmo inquisitorial, o pérfido dualismo do “bem” contra o “mal”
(obviamente eles são o “bem”, e tudo o que se contrapuser é o “mal”).
Não
duvide o/a leitor/a de que eles são a reencarnação dos funestos seres da
Inquisição, tanto que a Bíblia, em sua leitura fundamentalista (tanto quanto a
Torá e o Alcorão, também pelo viés fundamentalista), cumpre essa mesma função. Lembram-se,
um ano atrás, na “assunção” da golpista Jeanine Áñez Chávez como “presidenta”
da Bolívia, seu juramento (ou teria sido perjúrio?) foi sobre a Bíblia, e não
sobre a Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, em plena
vigência? O governo nazissionista de Ben Netanyahu e os governantes wahabitas e
hashemitas de Saud e Hussein fazem o mesmo, sobre a Torá e o Alcorão. Com o
aval do império decadente de... Donald Trump, que não reconhece a vontade
popular e quer se impor como um Nero em pleno século XXI.
A
trágica morte do brasileiro ─ com virtudes e defeitos, como todos os seres
humanos ─ João Alberto
Silveira Freitas, 40 anos, afrodescendente, pai de quatro filhos, filho, marido
e torcedor do São José do Rio Grande do Sul, diante de sua Companheira e às
vistas de muitos que se omitiram, por “seguranças” (sic) de um dos supermercados
Carrefour de Porto Alegre, escancara uma das maiores feridas da sociedade
brasileira: o racismo estrutural, que, somado à injustiça social tão secular
quanto aquele, ameaça a sobrevivência do Estado Democrático Brasileiro, duramente
construído ao longo de todo o século XX por gerações generosas de brasileiros
muitos dos quais já eternizados.
Destemperos
daquele que deveria agir como estadista (e desde que tomou posse não age como
tal) à parte, mexer na ferida é, sim, urgente e necessário, gostem ele e sua
horda de seres anacrônicos e bizarros. Somos todos João Alberto. Somos todos
Marielle Franco e Anderson Santos. Somos todos Marçal de Souza, o Tupãí
covardemente assassinado em 1983 por essa gente “de bens” que incendeia as
matas, mata índios e posseiros e hoje, mais “empoderada” que nunca, apoia os
inimigos da democracia, em nome da “tradição, da família e da propriedade”.
Como em 1964, 1937, 1889, 1822 e 1500. Como sempre.
Só
que enquanto houver cidadãos/ãs com consciência, sejam eles/as
afrodescendentes, originários/as, trabalhadores/as, intelectuais ou
livre-pensadores/as, a história seguirá sua inexorável marcha evolutiva rumo a
uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. E, sim, o lixo, de onde tais
hordas costumam sair, será o destino desses seres bizarros e anacrônicos,
travestidos de ovo da serpente do fascismo, do racismo ou do machismo.
Ahmad
Schabib Hany
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