domingo, 29 de novembro de 2020

OBRIGADO E ATÉ BREVE, PADRE MARCO ANTÔNIO!

Obrigado e até breve, Padre Marco Antônio!


Depois de sete anos de generosos aportes à coletividade, sobretudo imigrantes e refugiados, no coração do Pantanal e da América do Sul, o Padre Marco Antônio Ribeiro Alves, um scalabriniano que muito lembra os maiores sacerdotes que serviram na bicentenária Corumbá de todos os povos, todas as graças e de todas as crenças, encerra sua missão nesta fronteira e parte com destino à Amazônia, o pulmão do mundo.

Estávamos no segundo semestre de 2015. Um convite da Pastoral da Mobilidade Humana, da Igreja Católica, convoca o Observatório da Cidadania Dom José Alves da Costa (Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário, de cuja secretaria-executiva era um dos titulares) para um seminário sobre os direitos da migração e o crime do tráfico de seres humanos. Como na época estava como professor-substituto no curso de História do CPAN/UFMS, e a despeito de uma paralisação que acabou fazendo o jogo dos golpistas eu não podia participar do seminário, nosso espaço público não estatal enviou dois outros membros.

Lembro-me como hoje o entusiasmo de nossos representantes ao conhecer o Padre Marco Antônio Ribeiro Alves, jovem sacerdote scalabriniano: um deles, que não era católico e não está mais entre nós, o comparou ao Padre Pasquale Forin mais novo. Eu, que tive a sorte e a honra de conhecer o Padre Pasquale no tempo em que ele trabalhava em Campo Grande e eu era um tímido estudante de História na antiga FUCMT, fiquei curioso com a comparação. Até porque, por meio dele, conheci alguns sacerdotes scalabrinianos de Campo Grande que não esqueço, pois eles são marcantes e têm um lema memorável (que aprendi com um deles): “Era estrangeiro e me acolhestes.”

Pelas adversidades da Vida, somente em 2020, por causa da pandemia, é que tive a sorte e a honra de conviver mais proximamente dele -- lamentavelmente, com o distanciamento social proposto pelas novas normas de biossegurança. Graças à “teimosia cidadã” de Companheiras/os como as/os Professoras/es Simone Yara Benites da Silva, Anísio Guilherme da Fonseca, Cristiane Sant’Anna de Oliveira e Thiago da Silva Godoy (entre outras/os não menos determinantes), foi possível construir o Comitê Popular de Enfrentamento à Pandemia e, com isso, nos foi possível a oportunidade desse encontro há muito desejado: Dom João Bergamaschi, Bispo Diocesano de Corumbá, indicou o Padre Marco Antônio representante da Diocese no Comitê Popular, e, nessa condição, o elegemos, com outras/os Companheiras/os, para ser ponto-focal (popularmente chamado de membro da secretaria-operativa) desse espaço pioneiro de cidadania e solidariedade a serviço da Vida.

Com generosidade, abnegação e talento surpreendente, Padre Marco Antônio hábil e sabiamente soube representar e inspirar o Comitê Popular em momentos cruciais da pandemia: campanhas de solidariedade, mesas de diálogo, acompanhamento do COE (centro operacional de enfrentamento à pandemia da prefeitura de Corumbá), seminários nacionais e internacionais sobre esse flagelo (e também o das queimadas criminosas que o nefasto desgoverno federal se recusa a enxergar)... Além de ter sido gentil e generoso com todos os seus membros, inclusive com este inegavelmente “rabugento” aprendiz de cidadão, que depois de passar dos 60 anos, não abre mão de seu direito de não engolir desaforos, até para preservar a própria saúde.

Foi ele que me convidou a participar de um seminário, em julho, do qual também participou o querido Professor Marco Aurélio Machado de Oliveira, irmão de vários/as Companheiras/os de luta na juventude, entre as/os quais destaco meu contemporâneo e Companheiro de aventuras cidadãs, o Professor Tito Carlos Machado de Oliveira, por unanimidade eleito presidente da chapa “Debate & Ação” para o Diretório Acadêmico Félix Zavattaro (DAFEZ), da Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras (FADAFI), lamentavelmente derrotada, ainda que tivesse entrado para a história do movimento estudantil, com sua marcha deliciosa, criativa e instigante “somos ‘Debate e Ação’...”, composta pelo querido e sempre presente Chico, o Francisco Porto, irmão mais velho do Toninho Porto, músico que, acredito, esteja na Europa.

E, como em tudo na Vida, hoje nos vemos com os olhos marejados e a voz embargada: é difícil se acostumar a despedidas, sobretudo quando pessoas marcantes, como o Padre Marco Antônio, se distanciam de nós em momentos álgidos, determinantes. Ao final da reunião ordinária do Comitê Popular de Enfrentamento à Pandemia, dia 25 de novembro, fomos surpreendidos por sua despedida, pois, a partir de 1º de janeiro de 2021, estará em Manaus para assumir uma paróquia, algumas pastorais e demais obrigações como sacerdote scalabriniano. Confesso que naquele instante me reportei à despedida do igualmente querido e hoje saudoso Dom José Alves da Costa, quando eu estava trabalhando fora de Corumbá e não pude participar pessoalmente.

Desse modo, só temos que agradecer à Vida por ter-nos presenteado um Amigo dessa magnitude, que levamos para toda a existência em nossas mentes e corações. Desejar que tenha muita saúde e Vida longa, além de sorte e êxito em sua abençoada missão. E que, quando tiver que ser guindado a outras missões, que o coração do Pantanal e da América do Sul possa voltar a ser contemplado, para felicidade dos anônimos cidadãos que por aqui transitam como migrantes ou refugiados, além das comunidades de base da Diocese de Corumbá, que de forma exemplar representou e dignificou.

Obrigado, Padre Marco Antônio, e até breve!

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Bolívia -- Evo Sem Fronteiras: "Estamos de volta e somos milhões"

 

Bolívia – Evo Sem Fronteiras: “Estamos de volta e somos milhões”

Supriyo Chatterjee সুপ্রিয় চট্টোপাধ্যায়

21/11/2020, Tlaxcala Rede Internacional de Tradutores

Sonhos, premonições, mitos e história conduziram Evo Morales por uma pequena ponte, do exílio de um ano no México e na Argentina, de volta à Bolívia. Deixou o país como presidente deposto e volta sem seu gabinete, mas agora, parece, pode pôr-se lado a lado de dois gigantes continentais e emergir como herdeiro do mesmo estandarte, espécie de ímã para os despossuídos e deserdados, num continente acossado pelo Covid, do sul do Rio Bravo até o Orinoco?

Nayawa jiwtxa nayjarusti waranqa waranqanakawa kutanipxa

(“Morro, mas voltarei amanhã e serei milhões”)

Últimas palavras do líder aimará Tupac Katari, antes de ser esquartejado pelos espanhóis, dia 15 de novembro de 1781. Suas palavras viralizaram, depois que Evo conseguiu escapar da Bolívia, ano passado.

Primeiro, vieram os sonhos. Em outubro, Evo sonhou que escalava o pico de uma montanha e lá recebia uma medalha. Uma semana depois, teve exatamente o mesmo sonho. Foi quando, diz ele, soube que seu partido “Movimento para o Socialismo”, esp. MAS, sairia vencedor das eleições presidenciais de novembro. Muitos estranharam a confiança arrogante, mas Evo já teve premonições desse tipo. Antes da morte de sua irmã, em agosto, sonhou que uma tia já falecida chegara à procura dela. Os sonhos de Evo provaram-se certeiros: seu partido alcançou vitória retumbante, seu ex-ministro da Economia e seu ex-chanceler foram eleitos presidente e vice-presidente, e o exílio logo acabaria.

Apenas um ano antes, em 2019, Evo vivia um pesadelo. Com um golpe já em andamento em La Paz, refugiou-se numa base do partido na região de Cochabamba, confinado num campo de pouso, com os conspiradores enviando mensagens ao pessoal da segurança que o acompanhava com ofertas de muito dinheiro, dólares norte-americanos, para que lhes entregassem o Presidente, para ser morto ou para ser mandado para os EUA. Foram necessários muito planejamento e manobras, encabeçados pelos presidentes do México e da Argentina, antes de conseguirem que um avião da Força Aérea mexicana decolasse, levando Evo e seu vice-presidente, Alvaro García Linera, pela escuridão da noite tropical, para o exílio, no México.

O exílio vive incorporado à história da América Latina, desde a colonização. A Coroa espanhola não só mandou muitos de seus indesejáveis para exílio permanente nas Américas, também despachou agitadores americanos para a Espanha, para Porto Rico e até para as Filipinas. O exílio virou lugar-comum durante a guerra da independência. Simon Bolívar, o libertador do continente, morreu longe de sua Venezuela natal, vendo seu sonho de uma Grande Colômbia dissolver-se à sua volta. No Chile, Bernardo O'Higgins e José de San Martín e seus adversários, os irmãos Carrera, todos esses conheceram o exílio. Buenos Aires, Montevidéu, Santiago do Chile, Caracas e Cidade do México receberam grandes populações de exilados. Um dos exilados mais famosos que viveram na Cidade do México foi Fidel Castro, que ali reuniu a vanguarda da revolução cubana.

A América Latina tornou-se refúgio de milhares de Republicanos que fugiam da perseguição assassina de Franco durante e depois da Guerra Civil Espanhola. Depois, com o fascismo e a Segunda Guerra Mundial, veio uma onda de refugiados de Itália, Japão e Alemanha. A maré logo virou, quando o Novo Mundo começou a expelir seus exilados. O argentino Juan Domingo Perón padeceu longo exílio na Espanha em meados do século 20, quando milhares de chilenos, argentinos e uruguaios comuns tiveram de fugir como exilados políticos durante o terror dos anos 1970. O êxodo colombiano nunca parou. A angústia e a nostalgia dos colombianos por uma pátria para eles perdida transparece nos escritos e nos poemas de Pablo Neruda, Eduardo Galeano e Mario Benedetti, entre tantos outros, e impressos na memória coletiva.

Evo e Álvaro Garcia Linera, no comício da volta, no aeroporto Chimore

O exílio de Evo foi curto, mal durou um ano, e o retorno foi triunfante. O aeroporto Chimore, de onde saíra da Bolívia na calada da noite, foi palco do maior comício da volta, com multidão de mais de meio milhão de pessoas. A sustentá-lo no exílio estava o mito de Tupac Katari, o líder indígena boliviano cujas últimas palavras, reza a história, teriam sido “Morro, mas voltarei amanhã e serei milhões.”

Para os povos indígenas da Bolívia, Tupac Katari mítico cumpriu o que lhes prometeu, e dessa vez estão na posição de povos vitoriosos. Evo decidiu que outra vez viverá como líder sindical, seus longos dias de trabalho já livres de assuntos de estado, dedicados outra vez a mobilizar e unir os mineiros, os trabalhadores do setor público, os camponeses, como foi seu pai, e plantadores de coca, para proteger o frágil novo governo contra ataques do ancien regime – que continua a conspirar com grupos paramilitares e dentro dos quartéis e das forças especiais da Polícia.

O novo governo tem todos os motivos para desconfiar da polícia e daquele irrepreensível pedigree de repressão. Originalmente modernizado por um general prussiano nos anos 1930, a certa altura chegou a ser treinado por ninguém menos que Klaus Barbie, o Carniceiro de Lyon. A inteligência dos EUA ajudou Klaus a fugir da França para a Bolívia, onde adestrou as forças policiais nas artes da tortura e de fazer desaparecer ativistas da oposição; adiante, uniu-se a Pablo Escobar, senhor-da-droga na Colômbia, sempre operando como informante para os EUA. O Pentágono cuidou dessas forças ao longo de todas as ditaduras no século 20. Naturalmente, os norte-americanos têm sob seu controle todas as polícias locais, conhecidas pelo alto número de corruptos ativos, independente de quem pague seus salários. Em todos os casos fazem muito mais dinheiro nas gangues de extorsão.

Pouco provável que o efeito da volta de Evo limite-se às fronteiras da Bolívia, e não só porque fez a esquerda de todo o continente rememorar que também sabe vencer. Imediatamente depois dos primeiros comícios de boas-vindas, Evo reuniu-se com líderes progressistas indígenas e sindicais, entre outros, de Equador e Argentina, e convocou um congresso de movimentos sociais latino-americanos para Cochabamba, nos dias 17-19 de dezembro. O objetivo é constituir uma organização indígena internacional, focada nas lutas anti-imperialistas e anticapitalistas, e também promover a integração da região.

Diz-se que Evo deseja reanimar a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, CELAC, e a União de Nações Sul-americanas, UNASUL, as duas organizações regionais constituídas quando a esquerda esteve no poder em vários desses países. Governos de direita as puseram em estado de coma induzido, e é difícil ver como Evo poderá fazer ressurgir aquelas organizações, dado que já não é chefe de estado. Mas pode ajudar Luis Arce, presidente da Bolívia nessa empreitada, e se, no futuro imediato, a esquerda voltar ao governo em outros países, é possível que aconteça. Por enquanto, por mais que o deseje, a reanimação dessas organizações está além das capacidades de Evo.

Seu maior impacto político pode ter efeito no Equador, ano que vem. Parece estar-se unindo ao candidato da esquerda às eleições presidenciais do próximo ano no Equador, e ao líder da maior coalisão indígena naquele país. As duas forças estão em disputa desde o governo de Rafael Correa, mas a enorme população indígena do Equador poderia impulsionar uma frente única com vistas ao poder naquela nação andina.

Há outros países com população majoritariamente indígena, como Peru, Paraguai e Guatemala na América Central, mais até agora nenhuma delas dá sinal de se ter deixado seduzir pelos talentos de Evo.

As populações indígenas no continente não têm identidade comum ou monolítica, nem construíram movimentos sociais ou étnicos nos respectivos territórios nacionais. Não são tampouco imunes às fraturas de classe, às ideologias ou à influência de culturas não originárias, mas o boom econômico dos anos de exportação de matérias-primas está acabado e os tempos de ‘política é negócio como sempre’ estão também nos estertores finais. Esse pode ser solo fértil para que Evo consiga modelar um bloco revolucionário indígena coeso, e reafirmar uma identidade comum que ultrapasse fronteiras. Seja como for, hoje o sucesso desse projeto está longe de poder ser dado por garantido.

A volta triunfante de Evo consagrou um mito contemporâneo na América Latina, onde muitos na esquerda – mais nos movimentos de base que nas altas lideranças – estavam à procura de alguém que preenchesse o vazio que se criou com a morte de Fidel e de Chávez. Aprendiz de ambos, na origem, Evo pode emergir como herdeiro, como referência discursiva, conforme cresça sua estatura como olho gerador do furacão. Como os dois líderes antes dele, Evo tem o capital moral e uma vontade férrea de devolver os golpes do império que se vai desmoronando, sim, mais ainda muito lentamente.

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Evo Morales Ayma:

Mi vida. De Orinoca al Palacio Quemado, 2020, Argentina: Ed. Página 12

(Compartilhado do Grupo Debate Internacionalista, coordenado pelo Amigo Camarada Professor Lejeune Mirhan, a quem agradeço pela generosidade da iniciativa.)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ROBERTO ORRO, UM DEMOCRATA A TODA PROVA...

Roberto Orro, um democrata a toda prova...

Pela voz embargada do querido Amigo-Irmão Edson Moraes, fico sabendo da eternização do advogado Roberto Moaccar Orro, deputado constituinte em 1979, diversas vezes deputado estadual e uma vez secretário de Estado de Justiça, no mandato peemedebista do ex-governador Marcelo Miranda Soares.

Conheci o então Deputado Roberto Orro na recém-inaugurada sede da Seccional Sul-mato-grossense da Ordem dos Advogados do Brasil (situada então no imponente prédio da esquina das ruas Pedro Celestino e Cândido Mariano), mesmo evento em que também conheci o deputado Sérgio Manoel da Cruz, seu chefe de gabinete Mário Corrêa Albernaz e os advogados Carmelino de Arruda Rezende e Wilson Barbosa Martins (presidente da entidade) e reencontrei o vereador e ex-candidato a senador Plínio Barbosa Martins (que conhecera em campanha em Corumbá, ao lado do incansável Hugo Pereira, seu maior fã e apoiador).

Afetuoso, o Deputado Orro, assim que ouviu meu nome, como bom “patrício”, fez questão de me perguntar o nome de meu Pai e de que cidade era oriundo. Bastou uma vez, para que ele me identificasse em qualquer evento onde nos reencontrássemos, e não demorou muito para que ele mesmo me apresentasse o também querido Seu Anízio Salamene, mais que Primo seu um grande fã, falecido há alguns anos. Sua Companheira, grande guerreira e incansável socialista, é a Professora Yonne Ribeiro Orro, anos-luz à frente de seu tempo.

Eram tempos de arbítrio e a cooptação de quadros da oposição era feito cinicamente. A bancada do então MDB (oposição ao regime) havia perdido um terço dos parlamentares. O líder era o Deputado Sérgio Cruz, incansável aríete contra os serviçais da ditadura, e o vice-líder naquele momento era o Deputado Roberto Orro, acusado inclusive por outros oposicionistas de ter vínculos com “subversivos”, por sua postura democrática e não discriminar pessoas acusadas de militar em partidos de esquerda, então proibidos de existir.

As convicções democráticas de Roberto Orro são conhecidas por todos, sobretudo por causa das inúmeras perseguições que sofrera durante o regime de 1964. Comedido e reservado, o então deputado contrastava com aquela imagem parcimoniosa quando era chamado para a defesa da causa democrática, fosse na tribuna, perante um batalhão de jornalistas ou ante autoridades ligadas à ditadura: defesa dos Direitos Humanos, das terras dos povos originários, da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, da Assembleia Nacional Constituinte, dos direitos dos trabalhadores ou das liberdades democráticas.

No breve período em que tive a honra de integrar dois projetos sediados na Assembleia Legislativa (no tempo em que estava instalada em frente da Praça do Rádio Clube), primeiro no gabinete da Liderança do PMDB, sob a coordenação do saudoso Amigo Mário Corrêa Albernaz e do Irmão Edson Moraes, e um tempo depois no gabinete da Vice-liderança do PMDB, sob a coordenação dos Amigos Mário Sérgio Lorenzetto e Amarílio Ferreira Júnior, constatei a coerência, coragem e lealdade de alguns deputados oposicionistas, em especial de Sérgio Cruz e Roberto Orro, que quando possível desenvolviam atividades conjuntas, para desespero das forças conservadoras.

No processo de construção do PMDB, entre 1980 e 1982, Roberto Orro manteve a sua postura discreta, mas contundente, frente às investidas do então governador Pedro Pedrossian e seus inúmeros projetos ousados, como o Guatambu, o Panelão e o Apa-Poré. Ora ao lado de Sérgio Cruz ou em companhia de Plínio Barbosa Martins, Roberto Orro dividia o mandato de deputado com as obrigações de dirigente partidário para dar cobertura jurídica ou política aos correligionários assediados pela força poderosa do regime, personificado na figura de caudilho predestinado Pedrossian.

Não posso esquecer da defesa sôfrega e emocionante dos Terena na Aldeia do Bananal, em Aquidauana. O Cacique Domingos Terena se impunha como liderança legítima de sua comunidade ante a arrogante postura dos coronéis da FUNAI em Campo Grande e em Brasília. À época, os parlamentares do PMDB davam lição aos seus sucessores como atuar em tempos de autoritarismo, e aí há que se reconhecer a coerência do também Deputado Sultan Rasslan, de Dourados, em sua atuação de parlamentar oposicionista.

Quando Roberto Orro era secretário de Justiça, em 1987, atendeu a um chamado nosso, com a maior generosidade, para o ato de lançamento do Comitê 29 de Novembro de Solidariedade ao Povo Palestino, em companhia da Professora Yonne Orro, da saudosa Jornalista Margarida Marques e da igualmente querida Jornalista Maria Helena Brancher. Muito gentil, fez questão de conhecer pessoalmente meus Pais, dedicando uma meia hora com minha Família, embora sua agenda em Corumbá fosse bastante atribulada. Creio que foi meu encontro derradeiro com esse grande democrata cujo rico legado é motivo de honra para seus contemporâneos.

Até sempre, querido Companheiro Roberto Orro!

Ahmad Schabib Hany

Discurso de posse do vice-presidente David Choquehuanca, do Estado Plurinacional da Bolívia

Discurso de posse do vice-presidente David Choquehuanca, do Estado Plurinacional da Bolívia

15/11/2020, tradução revista, com auxílio de Tlaxcala, Rede Internacional de Tradutores; notas traduzidas da versão ao francês. Vídeo em espanhol.

“Com a permissão de nossos deuses, de nossos irmãos mais velhos e de nossa Pachamama,[1] de nossos ancestrais, de nossos achachilas,[2] com a permissão de nosso Patujú,[3] de nosso arco-íris, de nossa folha de coca sagrada.

Com a permissão de nossos povos, com a permissão de todos os presentes e não presentes nessa Câmara.

Hoje quero compartilhar aqui, o nosso saber, em alguns minutos.

Comunicar é obrigação, dialogar é obrigação, é um dos princípios do bem-viver.

Os povos de culturas milenares, da cultura da vida, mantemos nossas origens desde os primórdios da antiguidade.

Nós, crianças, herdamos uma cultura milenar que entende que tudo é interligado, que nada é dividido, que tudo é dentro e nada é fora.

‘Vamos juntos’

Por isso nos dizem que caminhemos juntos, que vamos todos juntos, que deixar ninguém para trás, que todos tenham tudo e nada falte a ninguém.

Que o bem-estar de todos é o bem-estar de si mesmo. Que ajudar é razão de crescer e ser feliz, que desistir pelo bem do outro nos fortalece, que nos unir e reconhecer-nos no todo é o caminho de ontem, hoje, amanhã e sempre do qual nunca nos desviamos.

O ayni,[4] a minka,[5] a tumpa,[6] nosso colka[7] e outros códigos de culturas milenares são a essência de nossa vida, de nosso ayllu[8].

Ayllu não é apenas organização de sociedades humanas, ayllu é sistema de organização da vida de todos os seres, de tudo que existe, de tudo que flui em equilíbrio em nosso planeta, nossa mãe, a Terra.

Durante séculos os cânones civilizadores de Abya Yala[9] foram desestruturados, dessemantizados e muitos deles exterminados, o pensamento originário foi sistematicamente submetido ao pensamento colonial.

Mas não conseguiram nos apagar, nós estamos vivos, somos de Tiwanaku,[10] somos fortes, somos como pedra, somos Kalawawa[11] somos cholke,[12] somos sinchi,[13] somos rumy,[14] somos Jenecherú,[15] fogo que não se apaga, somos de Samaipata,[16] somos o jaguar, somos Katari,[17] somos Aïnous, Maoris, Comanches. Somos Maias, somos Guaranis, somos Mapuches, Mojeños, somos Aimaras, somos Quechuas, somos Jopis e somos todos os povos da cultura da vida que despertamos nossos larama,[18] iguais, rebeldes cheios de sabedoria.

‘Uma transição, a cada 2.000 anos’

Hoje, Bolívia e o mundo vivem uma transição que se repete a cada 2.000 anos, o ciclo do tempo. Vamos de nenhum tempo ao tempo, do intemporal ao temporal, começando um novo amanhecer, um novo Pachakuti[19] em nossa história.

Um novo sol e uma nova expressão na linguagem da vida, na qual a empatia pelo outro ou o bem coletivo substitui o individualismo egoísta.

Onde os bolivianos nos olhamos todos iguais e sabemos que unidos valemos mais. Estamos em tempo de ser Jiwasa[20] de novo, não se trata de ‘eu’: trata-se de ‘nós’.

Jiwasa é a morte do egocentrismo, Jiwasa é a morte do antropocentrismo e o fim do eurocentrismo.

Estamos em tempo de voltar ao Jisambae,[21] o código que protegeu nossos irmãos Guaranis. Jambae[22] é o que não tem dono. Ninguém nesse mundo há de se sentir proprietário de alguém e de algo.

Desde 2006, na Bolívia, iniciamos um trabalho árduo para conectar nossas raízes individuais e coletivas, para voltar a ser nós mesmos, para retornar ao nosso centro, ao nosso taypi,[23] à pacha,[24] ao equilíbrio que deixa brotar a sabedoria das civilizações mais importantes de nosso planeta.

Estamos em processo de resgatar nossos conhecimentos, os códigos da cultura da vida, os cânones civilizatórios de uma sociedade que viveu em íntima conexão com o cosmos, com o mundo, com a natureza e com a vida individual e coletiva. De construir o nosso sumak kamaña,[25] nosso bem-viver, a partir do nosso sumajakalle,[26] que é garantir o bem individual e o bem coletivo ou comunitário, nosso sake.[27]

Uma das referências inabaláveis da nossa civilização é a sabedoria herdada da terra, e da Pachakama[28]. Garantir equilíbrio em todo o tempo e espaço é saber administrar todas as energias complementares, a cósmica que vem do céu, e a da Terra, que emerge de debaixo do chão.

Chacha-warmi[29]

Estamos em tempos de resgatar nossa identidade, nossas raízes culturais, nosso bem. Temos raízes culturais, temos filosofia, temos história, temos tudo, somos pessoas e temos direitos.

Essas duas forças telúricas interagem criando o que chamamos de vida, como uma totalidade visível (Pachamama) e espiritual (Pachakama).

Ao entender a vida em termos de energia, temos a possibilidade de modificar nossa história, matéria e vida como a convergência da força chacha-warmi, quando nos referimos à complementaridade dos opostos.

O novo tempo que iniciamos será sustentado pela energia do ayllu, da comunidade, do consenso, da horizontalidade, dos equilíbrios complementares e do bem comum.

Historicamente, a revolução é entendida como um ato político para mudar a estrutura social, a fim de transformar a vida do indivíduo. Nenhuma revolução jamais modificou a conservação do poder para controlar o povo. Não conseguimos mudar a natureza do poder, e o poder conseguiu distorcer a mente dos políticos. O poder conseguiu corrompê-los.

“Nossa revolução é a revolução das ideias”

Esse é um desafio que assumiremos com a sabedoria dos nossos povos.

Nossa revolução é a revolução das ideias, é a revolução dos equilíbrios, porque estamos convencidos de que para transformar a sociedade, o governo, a burocracia e as leis e sistemas políticos, devemos mudar como indivíduos.

Vamos promover a conjunção com as oposições, buscar as coincidências entre a direita e a esquerda, entre a rebeldia dos jovens e a sabedoria dos anciãos, entre os limites da ciência e da natureza inquebrantável. Entre as minorias e as maiorias tradicionais. Entre os doentes e os sãos. Entre os governantes e os governados. Entre o culto à liderança e doação do indivíduo, para servir aos outros.

Nossa verdade é muito simples. O condor só alça voo quando sua asa direita está em perfeito equilíbrio com a esquerda. A tarefa de nos formarmos como indivíduos equilibrados foi brutalmente interrompida há séculos. Não a concluímos. Mas o tempo da era ayllu, comunidade, chegou e já está conosco.

Requer que sejamos indivíduos livres e equilibrados para construir relacionamentos harmoniosos com os outros e com o nosso meio ambiente. É urgente que sejamos seres capazes de manter o equilíbrio, para nós mesmos e para a comunidade.

Estamos no tempo de Apanaka Pachakuti,[30] irmãos da mudança, quando nossa luta não é luta só por nós, mas também por eles, não contra eles. Buscamos o mandato, não buscamos o confronto. Buscamos a paz. Não somos da cultura da guerra nem da dominação. Nossa luta é contra todas as formas de submissão e contra o pensamento colonial único, patriarcal, venha de onde vier.

A ideia do encontro entre o espírito e a matéria, o céu e a terra de Pachamama e Pachakama nos permitem pensar que uma nova mulher e um novo homem serão capazes de curar a humanidade, o planeta e a bela vida que nele há e devolver a beleza para nossa terra-mãe.

Defenderemos de todas as interferências os tesouros sagrados de nossa cultura. Defenderemos nossos povos, nossos recursos naturais, nossas liberdades e nossos direitos.

“Voltaremos a Qhapak Ñan

Voltaremos ao nosso Qhapak Ñan[31] – o nobre caminho rumo à unidade, à integração, o caminho da verdade, o caminho da fraternidade, o caminho do respeito a nossas autoridades, a nossas irmãs, o caminho do respeito ao fogo, o caminho do respeito à chuva, o caminho do respeito às nossas montanhas, o caminho do respeito aos nossos rios, o caminho do respeito à nossa terra-mãe, o caminho do respeito à soberania dos nossos povos.

Irmãos, para concluir

Os bolivianos devemos superar a divisão, o ódio, o racismo, a discriminação entre compatriotas. Devem pôr fim à perseguição contra liberdade de expressão. Fim da judicialização da política.

Chega de abuso de poder. O poder tem de ajudar, o poder tem de circular, o poder, assim como a economia, tem de ser redistribuído, tem de circular, tem de fluir, assim como o sangue corre em nosso corpo. Chega de impunidade. Justiça, irmãos.

Mas a justiça tem de ser verdadeiramente independente. Ponhamos fim à intolerância, à humilhação dos direitos humanos e de nossa terra-mãe.

O novo tempo significa ouvir a mensagem dos nossos povos, que vem do fundo do coração, significa curar feridas, olhar para nós com respeito, recuperar a pátria, sonhar juntos, construir fraternidade, harmonia, integração, esperança para garantir a paz e a felicidade das novas gerações.

Só então podemos alcançar o bem-viver e governar-nos nós mesmos.

!Jallalla Bolivia! Viva a Bolívia! [fim do discurso]

 


[1] Mãe-terra.

[2] Espíritos dos ancestrais que protegem a comunidade.

[3] Flor cujas cores vermelha, amarela e verde são simbolizadas na bandeira da Bolívia.

[4] Princípio da reciprocidade.

[5] Tradição do trabalho coletivo para finalidades sociais.

[6] Protocolo de convite, de invocação dos espíritos sagrados dos mortos.

[7] Grande armazém onde se guardam principalmente alimentos.

[8] Comunidade de várias famílias cujos membros consideram que tenham origem comum, seja filial ou religiosa, que trabalha coletivamente em território de propriedade da comunidade.

[9] Nome que o povo Kuna usa para se referir às Américas.

[10] Designa o local considerado berço da civilização pré-incaica de mesmo nome.

[11] Transparente, que nada esconde.

[12] Grão muito difícil de quebrar, tradicionalmente posto em volta do pescoço de recém-nascidos.

[13] Fortes, corajosos.

[14] Duros de cozinhar.

[15] Palavra de origem tupi-guarani que significa “fogo eterno”, “fogo que não se apaga”.

[16] Nome do local onde se ergue o rochedo esculpido, místico e misterioso de Samaipata.

[17] Divindade representada pela serpente alada, que simboliza a vitalidade da água que irriga as terras cultivadas e permite a existência das comunidades.

[18] Os sábios, filósofos e cientistas.

[19] “Mudança da terra”, chegada de novo tempo, volta ao equilíbrio, à igualdade original.

[20] Um todo, composto de singularidades.

[21] Sistema codificado de comunicação dos Guaranis.

[22] Como lê-se no texto, “indivíduo livre, sem patrão”.

[23] Núcleo ou centro da Terra, ponto de encontro das energias positivas e negativas, lugar dos opostos, onde coexistem os contrários.

[24] Terra, cosmos, universo, tempo-e-espaço.

[25] Bem-viver. O conceito do bem-viver.

[26] Ação de assegurar o bem individual e o bem coletivo ou comunitário.

[27] Raiz cultural.

[28] Universo espiritual, que complementa a Pachamama.

[29] Complementaridade de opostos, dualidade e harmonia.

[30] “Compreendamos os irmãos da oposição política”.

[31] Verdadeira via, o justo caminho. Expressão que também designa a famosa rede de estradas que cobria o Império Inca.

 

(Compartilhado do Grupo Internacionalista, coordenado pelo Amigo, Camarada Professor Lejeune Mirhan, a quem agradeço pela generosidade da iniciativa.)

sábado, 21 de novembro de 2020

SOMOS TODOS JOÃO ALBERTO

 SOMOS TODOS JOÃO ALBERTO

Em imagens muito parecidas às que denunciam a violência psicótica de policiais que mataram George Floyd em maio deste ano, a opinião pública brasileira, na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, é tomada de perplexidade pelo surto assassino de “seguranças” (sic) do Supermercado Carrefour em Porto Alegre que levou à morte, em menos de seis minutos, João Alberto Silveira de Freitas.

As trágicas imagens flagradas na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra deste ano em Porto Alegre põem por terra todos os argumentos hipócritas da “democracia racial”. Estão na gênese do Estado brasileiro como de resto todos os Estados decorrentes das igualmente criminosas colonizações hispânica, inglesa, francesa, holandesa e belga as causas da desumanização do africano escravizado e de sua coisificação. Ou teriam se esquecido de que negros e índios “não tinham alma”? E que a hegemonia econômica e “civilizatória” europeia foi conquistada ao custo de um voraz genocídio superior a 100 milhões de vidas africanas, além da total desestruturação das sociedades ancestrais da África, reduzidas entre os séculos XVI e XIX (na verdade até hoje, pleno século XXI) a centro provedor de um rentável negócio, o comércio escravista que encheu de dinheiro a Inglaterra, França, Holanda, Bélgica... (não por acaso, junto com a Espanha e Portugal, metrópoles coloniais enriquecidas também com as riquezas locais, entre elas ouro, prata, pau-brasil, esmeraldas, cana-de-açúcar...).

Tão inconsistentes quanto a narrativa negacionista de hoje feito diarreia fétida a ser expelida como rajadas de metralhadora de milicianos cada vez mais poderosos e bem representados nas diversas esferas de poder ─, os argumentos de que a “indolência” dos povos originários foram a causa do criminosamente rentável comércio de escravizados (aliás, origem do capitalismo, em sua fase chamada mercantilista, metalista e outras caracterizações transitórias). Reitero: tudo isto está na essência do Estado que somente no século XX, graças a muita luta de gerações generosas que deram seus melhores dias para a construção do Estado Democrático de Direito, como consignado na Constituição Federal de 1988.

Não nos esqueçamos, porém, de que há uma reduzidíssima minoria, hoje muito poderosa porque subitamente guindada ao poder graças a um golpe malsucedido gestado por ex-democratas, se assim pudermos denominá-los, na ânsia de retornar ao poder por meio de atalho, e que acabaram por entregá-lo a um lobo solitário, verdadeiro predador dos valores democráticos , que tem ojeriza por tudo aquilo que foi construído entre 1985 e 2016. Se Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, Franco Montoro, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Mário Covas, Florestan Fernandes, Freitas Nobre, Alencar Furtado e Marcos Freire, entre outros/as não menos importantes, estivessem vivos, figuras como obtusas como Aécio Neves, José Serra, Geraldo Alckmin, Roberto Freire, Tasso Jereissati e Fernando Henrique Cardoso jamais teriam consumado a desestabilização política que, entre 2014 e 2016, criou as condições para o golpe travestido de impeachment.

E por que, afinal, a violência desproporcional vem se multiplicando em todas as regiões do País? Ao contrário do negacionismo cúmplice e cínico de agentes políticos que hoje galgaram importantes cargos federais, a “caixa de pandora” aberta para dar o golpe em 2016 disseminou e multiplicou os mais retrógrados conceitos (aliás, preconceitos) que se remetem aos séculos XV, XVI e XVII (período anterior ao Iluminismo): quando os porta-vozes dessas hordas néscias criminosas negam e renegam tudo o que lhes incomoda, não fazem mais que reconstruir o maniqueísmo inquisitorial, o pérfido dualismo do “bem” contra o “mal” (obviamente eles são o “bem”, e tudo o que se contrapuser é o “mal”).

Não duvide o/a leitor/a de que eles são a reencarnação dos funestos seres da Inquisição, tanto que a Bíblia, em sua leitura fundamentalista (tanto quanto a Torá e o Alcorão, também pelo viés fundamentalista), cumpre essa mesma função. Lembram-se, um ano atrás, na “assunção” da golpista Jeanine Áñez Chávez como “presidenta” da Bolívia, seu juramento (ou teria sido perjúrio?) foi sobre a Bíblia, e não sobre a Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, em plena vigência? O governo nazissionista de Ben Netanyahu e os governantes wahabitas e hashemitas de Saud e Hussein fazem o mesmo, sobre a Torá e o Alcorão. Com o aval do império decadente de... Donald Trump, que não reconhece a vontade popular e quer se impor como um Nero em pleno século XXI.

A trágica morte do brasileiro com virtudes e defeitos, como todos os seres humanos João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, afrodescendente, pai de quatro filhos, filho, marido e torcedor do São José do Rio Grande do Sul, diante de sua Companheira e às vistas de muitos que se omitiram, por “seguranças” (sic) de um dos supermercados Carrefour de Porto Alegre, escancara uma das maiores feridas da sociedade brasileira: o racismo estrutural, que, somado à injustiça social tão secular quanto aquele, ameaça a sobrevivência do Estado Democrático Brasileiro, duramente construído ao longo de todo o século XX por gerações generosas de brasileiros muitos dos quais já eternizados.

Destemperos daquele que deveria agir como estadista (e desde que tomou posse não age como tal) à parte, mexer na ferida é, sim, urgente e necessário, gostem ele e sua horda de seres anacrônicos e bizarros. Somos todos João Alberto. Somos todos Marielle Franco e Anderson Santos. Somos todos Marçal de Souza, o Tupãí covardemente assassinado em 1983 por essa gente “de bens” que incendeia as matas, mata índios e posseiros e hoje, mais “empoderada” que nunca, apoia os inimigos da democracia, em nome da “tradição, da família e da propriedade”. Como em 1964, 1937, 1889, 1822 e 1500. Como sempre.

Só que enquanto houver cidadãos/ãs com consciência, sejam eles/as afrodescendentes, originários/as, trabalhadores/as, intelectuais ou livre-pensadores/as, a história seguirá sua inexorável marcha evolutiva rumo a uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. E, sim, o lixo, de onde tais hordas costumam sair, será o destino desses seres bizarros e anacrônicos, travestidos de ovo da serpente do fascismo, do racismo ou do machismo.

Ahmad Schabib Hany