Doutor Ulysses, Senhor Democracia
Trinta e três anos de seu desaparecimento, o Deputado Ulysses Guimarães é paladino da luta pela democratização do Brasil e da Assembleia Nacional Constituinte, cujo trabalho final se traduz na Constituição Cidadã e, sobretudo, no conjunto de direitos conquistados por meio do Estado Democrático de Direito.
Segunda-feira, 12 de outubro de 1992. Semanas depois do impeachment sofrido pelo primeiro presidente da República eleito pelo voto direto e secreto pós-1964 -- Fernando Collor de Mello, canastrão arrogante cuja gola ficou maior que o pescoço e acabou se afogando em copo de cafezinho, desses descartáveis --, o memorável Deputado Ulysses Silveira Guimarães se eternizava e seu corpo desaparecia na praia de Angra dos Reis (RJ), ao sofrer um acidente de helicóptero sob um temporal no meio da tarde do feriado de Nossa Senhora Aparecida.
O Doutor Ulysses passara o feriadão para descansar em casa de praia de amigos na companhia da Companheira de Vida, Dona Mora; do ex-senador Severo Fagundes Gomes, e da Esposa, Dona Henriqueta. Estavam retornando a São Paulo para retomar a agenda parlamentar. Além do piloto Jorge Cameratto, todos perderam a vida, mas o corpo do Senhor Democracia simplesmente desapareceu como por encanto.
Relatório dos órgãos de proteção de voo revelaram uma série de inobservâncias cometidas pelo piloto de helicóptero, bastante experiente mas sem habilitação para usar os recursos de voo por instrumento. Também foi observada a precariedade nas anotações do plano de voo, determinante em caso de ocorrência de adversidade, como a que causou o acidente com Ulysses, Severo e respectivas esposas.
Não faltaram lendas e mitos para o seu desaparecimento literal. Desde 'praga rogada' (encomendada?) por Collor e assemelhados -- parece que a sua ex-esposa, Rosane Collor, chegou a revelar algumas iniciativas nesse sentido em um desses programas de televisão que vivem do sensacionalismo -- até 'castigo divino' por ter 'perseguido' os patriotas da 'revolução de março' e sua cria, o tal Fernando Collor, neto e filho de dois áulicos das ditaduras do Estado Novo e do regime de 1964, Lindolpho Collor e Arnon de Mello.
O fato é que o Doutor Ulysses Guimarães teve a sua existência interrompida quase duas semanas após o impeachment de Collor, ocorrido em 29 de setembro de 1992. Tanto o Senhor Democracia como o sempre chamado Senador Severo são referência ética e política para a oposição democrática do país, embora tanto Ulysses e Severo, na erupção política que culminou com a deposição do grande Presidente João Marques Belchior Goulart, o Jango, não estivessem naquele momento em seu apoio. Até Juscelino, também do PSD, estava em rota de colisão com seu ex-vice-presidente, por conta da tensão política na época.
"NAVEGAR É PRECISO"
"Navegar é preciso, viver não é preciso." Com esse verso de um dos mais belos poemas de Fernando Pessoa, o Deputado Ulysses Guimarães, do MDB, contra o candidato do regime, general Ernesto Geisel, em 1973, percorreu todo o Brasil, inclusive Mato Grosso (antes da divisão), com sua 'anticandidatura'. Não era por acaso a escolha do verso do poeta português tido por subversivo: a tortura e os 'casuísmos' do regime do AI-5 não davam garantias de vida. Mas, pelo fato de Ulysses ser homônimo do protagonista da Odisseia de Homero, que desafiara poderosos em seu périplo por mais de dez anos, enquanto a sua Penélope o aguardava por sua volta no palácio.
O mote usado pelo 'anticandidato' à sucessão do general Emílio Garrastazu Médici, o mais temido de todos os generais-presidentes do ciclo, contou com importante apoio de democratas e alguns ex-golpistas, como Carlos Frederico Werneck de Lacerda (brilhante jornalista, grande orador e um dos maiores líderes do golpe, ao lado do mineiro José de Magalhães Pinto, ainda leal ao regime, adversário político de Tancredo de Almeida Neves, defensor de Jango). A eleição era 'indireta' [na verdade não havia eleição, tudo era uma ficção], decidida no 'Colégio Eleitoral', meticulosamente armado para a maioria tomada pelo partido de sustentação da ditadura (ARENA). Contudo, a campanha não se limitou ao meio parlamentar: teve como objetivo a mobilização de setores da sociedade para fazer oposição ao regime e pelas liberdades democráticas.
Por curiosa ironia, o belíssimo verso que consagrou a campanha eleitoral do 'anticandidato' em 1973 foi o que homenageou postumamente a sua memória. O corpo de Ulysses não foi encontrado, e o Presidente Itamar Galtiero Franco, ainda na condição de interino, havia manifestado o desejo de só depois do resgate dos restos mortais assinar o decreto de reconhecimento da morte do ex-presidente da Câmara Federal e da Assembleia Constituinte.
Em 21 de outubro de 1992, na versão cantada dos versos de Fernando Pessoa no memorável show Rosa dos Ventos de Maria Bethânia nos anos de chumbo, o Brasil se despediu do Estadista que, tal qual Tancredo Neves e Leonel Brizola, mereceu e tentou, mas não pôde ser Presidente da República. No entanto, seu legado para o alicerce do Estado Democrático de Direito pulsa cotidianamente por meio da Constituição Cidadã.
Ahmad Schabib Hany
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