sexta-feira, 12 de maio de 2023

SANTA RITA DE SAMPA

Santa Rita de Sampa

Eis que a transgressora iluminada Rita Lee se eterniza no mesmo dia em que, 78 anos atrás, a Alemanha nazista (e toda a barbárie que ela representa) se rendia ao Exército Vermelho. Ousada, irreverente e, sobretudo, genial, não precisou provar que “toda mulher é meio Leila Diniz” e que a “ovelha negra da família” soube ser Companheira por mais de 40 anos, grande Mãe e Avó presente.

‘Santa Rita de Sampa’, nome de uma de suas composições, foi mais uma das ousadias da Diva da Irreverência que por décadas nos provocou de todas as maneiras e formas para nos transformar, nos libertar das amarras. Pois Rita Lee Jones dedicou seu talento, sua própria existência entre nós, para fertilizar nossa árida rotina e, sobretudo, destruir a hipocrisia vigente em nossa sociedade, de aparências e mitos, muitos mitos desprezíveis.

Filha de um imigrante estadunidense protestante e uma imigrante italiana católica, Rita Lee representa o cosmopolitismo quase totalmente perdido da Pauliceia Desvairada do movimento modernista gestado 25 anos antes de seu nascimento, no pós-guerra de 1945. O misto de irreverência e ousadia que com muita luz, genialidade e graça marcou a hoje eterna combatente da hipocrisia e do falso moralismo é abre-alas transformador do novo tempo que ainda tarda, mas haverá de chegar, para desespero dos conservadores e seus aliados de ocasião da extrema-direita.

O que seria do Brasil, das camadas populares e, sobretudo, de todas as mulheres deste país-continente se as à frente de seu tempo, como Rita Lee, Gal Costa, Leila Diniz, Elis Regina, Nara Leão, Beth Carvalho, Clara Nunes, Norma Bengell, Martha Alencar e Irede Cardoso, entre tantas não menos importantes, não tivessem ousado inteligentemente acabar com a hipocrisia que até então reinava, a ferro e fogo, numa nação censurada, oprimida e silenciada?

Para filhos de imigrantes, essa geração de mulheres brasileiras e seus colegas homens, igualmente geniais, se consistiram em abençoados porta-vozes da cultura e da variedade cultural brasileira. Além de ter ensinado literalmente português mediante composições bem elaboradas que nada devem aos autores dos embolorados manuais de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC), as duas disciplinas enxertadas na grade curricular durante o obscurantismo de 1964 a 1985.

Na década de 1960, quando Rita Lee surgiu para o público brasileiro, uma das revistas que acompanhavam a carreira da jovem revelação era a Garotas, da Rio Gráfica Editora (RGE), do Rio de Janeiro, depois adquirida pelo grupo da ‘Vênus Platinada’, hoje Editora Globo, com sede em São Paulo. Minhas Irmãs, adolescentes, gostavam dessa revista por causa de sua cobertura do mundo musical, cujo destaque era a Diva da Irreverência. Já naquele tempo a censura se encarregava de atravessar o caminho dos artistas.

Ah, sim, a censura. Não por acaso, mesmo sem qualquer engajamento político, Rita Lee foi tão censurada quanto Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Velloso, Ivan Lins, Vitor Martins, Milton Nascimento, Fernando Brant, Martinho da Vila e Geraldo Vandré, por exemplo, os mais visados pelos cães (com todo respeito pelos caninos) da ditadura. Rita era censurada pela ousadia de se contrapor com genialidade à etiqueta e toda a falsidade imposta pela hipocrisia reinante então, ao extremo de ter sido presa por flagrante forjado com maconha.

A explicação é simples: com sua genial irreverência, Rita ‘atentava’ contra ‘a moral e os bons costumes’, pretexto para que aqueles falsos moralistas de meia pataca ficassem a cuidar das calcinhas das moçoilas em plena década de 1960, quando as mulheres, com a revolução feminista, queimaram os sutiãs, vestiram minissaia, decidiram ‘perder’ a sua virgindade e passaram a tomar a pílula anticoncepcional e defender a prática do aborto legal, até para poupar a vida de jovens vítimas da máfia das clínicas clandestinas de aborto.

Diferentemente de Gal, Leila, Elis, Nara, Beth, Clara, Norma, Martha e Irede, a ousadia de Rita, em 1977, confesso, me causou um misto de decepção e indignação. Foi quando ela compôs com Paulo Coelho (o escritor) e interpretou, com sua irreverência peculiar, “Arrombou a festa” para dar umas alfinetadas em muitos compositores e intérpretes da Música Popular Brasileira (MPB), então em alta. Foi um sucesso junto ao público, mas os amantes da MPB se sentiram traídos, como advertiu o Amigo Juvenal Ávila de Oliveira, à época diretor musical da Rádio Difusora Mato-grossense, e que calou fundo na alma.

Para Rita Lee, as convenções e pactos coletivos, inclusive nas hostes da resistência democrática, não eram intocáveis. O que para os engajados representou um golpe baixo, uma heresia. Mas isso nem abalou a Diva da Irreverência, e não demorou muito para dar um novo presente ao público, como “Miss Brasil 2000”, “Jardins da Babilônia”, “Mania de Você”, “Doce Vampiro”, “Lança Perfume”, “Baila Comigo” e “Cor de Rosa Choque”.

Era difícil não se reconciliar com a genial cantora: nem Caetano, Gil, Gal, Betânia e os demais integrantes da Tropicália, depois do impacto, ficaram ‘de mal’. Ao contrário, foi Gil um dos mais assíduos membros da MPB que a apoiaram a se distanciar de Os Mutantes e da Tutti Frutti e poder partir para sua carreira solo, depois seguida com o guitarrista e Companheiro de Vida, Roberto Carvalho. Aliás, uma relação que durou toda a Vida, bem diferente da rebeldia proclamada pela grande intérprete da transgressão.

Tanto na juventude como na maturidade, Rita Lee fazia questão de se manter à margem da política. Embarcou, ao lado de Hebe Camargo, nas críticas à gestão progressista que tanto encantaram seus colegas contemporâneos. Mas não se distanciou de Amigos de verdade, como Eduardo Matarazzo Suplicy, ex-Companheiro de sua parceira de programa ‘TV Mulher’, no início da década de 1980, ao lado de Marília Gabriela. ‘Cor de Rosa Choque’ não só era trilha, mas hino desse programa matinal diário que rompeu com muitos mitos desprezíveis, ainda nos tempos da (mal)ditadura.

A eternização de Rita Lee, como de todos os seres iluminados, é, sim, lamentada. Mas a sua existência repleta de luz e irradiações transformadoras é tão maior que passarão anos, décadas e, por certo, séculos a interagir com sua obra magistral, provocadora, ousada, irreverente e debochada. Sorte nossa, que pudemos ser seus contemporâneos privilegiados.

Ahmad Schabib Hany

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