Dez anos sem Augusto Alexandrino, o eterno Malah
Cartunista alado, artista gráfico singular, poeta dos traços irreverentes, empresário generoso, professor competente, amigo leal, cidadão incansável. Uma década sem sua sábia presença.
Augusto Alexandrino dos Santos, o querido e saudoso Malah, eternizou-se discretamente no quarto da casa de seu Filho, em Campo Grande, a poucas centenas de metros de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Não acordara, como de hábito, cedo, seu Filho decidiu arrombar a porta, quando o encontrou sem Vida. Parece que algo lhe dizia para não se afastar de seu torrão-natal. Embora relutante, precisou mudar-se para a capital, onde iniciaria uma série de tratamentos de saúde, já bastante fragilizada.
Era 25 de maio de 2013, fatídico ano que iniciava uma sucessão de perdas de Amigos e retrocessos políticos, Além do genial cartunista, artista gráfico e professor competente que o Malah foi, dois meses antes o igualmente querido e saudoso Padre Ernesto Saksida se eternizara. Se isso já não fosse trágico, um desencadear de perdas vieram a reboque: o pacto cidadão que permitiu que pela primeira vez a ascensão do que deveria ter sido uma sucessão de gestões populares em Corumbá e Ladário (iniciada com Ruiter Cunha de Oliveira em Corumbá e José Antônio Assad e Faria em Ladário) seria minado, sobretudo, com a ardilosa ‘mobilização’ do ‘cançei’ (com ‘c’ cedilhado, por favor), ‘vem pra rua’, ‘mbl’ (minúsculos e abjetos) e tantas outras manifestações ‘patrióticas’, mais tarde desmascaradas, que incluíram as famílias proprietárias dos conglomerados midiáticos embolorados (cuja primeira vítima de si mesma foi a famiglia Civita, que deu um calote aos seus milhares de empregados antes de abandonar a emblemática Editora Abril).
Porque recordar Augusto Alexandrino Malah é reviver o mais universal de todo(a)s o(a)s Amigo(a)s que a Vida generosamente nos presenteou. Desde 1974, para os meus um ano trágico pela perda de meu saudoso Irmão Mohamed (o eterno ‘Chíchi’, cuja pronúncia é similar à do técnico de futebol ‘Tite’), Malah foi mais que o competente e querido Professor (maiúscula) de Desenho: ao lado do igualmente saudoso e querido Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, foi um entusiasta (e irreverente) orientador de Cidadania, tendo-se unido irmãmente ao projeto de jornal estudantil empreendido em 1975.
Malah foi um dos expoentes da Geração de Ouro, ao lado de Edson Moraes, Juvenal Ávila de Oliveira, Gino Rondon, Jonas de Lima e Adilson Lobo, entre outros não menos geniais, protagonistas no rádio e jornais no tempo do Consórcio Corumbaense de Comunicação (CCC). Todos eles são unânimes em reconhecer a generosidade, o talento e a ousadia de Malah. Em pleno período de censura e repressão, Malah ouvia as rádios Voz da América, BBC de Londres, França Internacional, Exterior da Espanha, Paz e Progresso (Moscou), Rádio Pequim, Rádio Moscou e Rádio Havana para aprimorar seu inglês e compreender melhor a ciência da Comunicação. Mas qual não foi a sua surpresa ao receber intimação para comparecer à Delegacia de Polícia Federal por se corresponder com pessoas de ‘ideias exóticas’. É que ele recebia cartas de ouvintes e produtores de todas essas emissoras (cartas, obviamente em inglês, a trocar informações sobre música, cultura e artes brasileiras), o que acionou o sinal de alerta dos órgãos de controle ideológico da época. Depois ficou sabendo que as cartas eram ‘censuradas’ por órgãos de informações e repressão, como SNI, CIE, CENIMAR, CISA, DOI-CODI, DOPS-DEOPS etc.
Daniel Lopes, diretor geral do Consórcio Corumbaense de Comunicação (e mais tarde, com o fim do CCC, da Folha da Tarde), em seu projeto de modernização jornalística e desenvolvimento gráfico, havia introduzido uma linotipo e uma monotipo, e a clicheria também já havia sido adquirida (estava em fase de instalação quando os donos de outros veículos consorciados, por pura ciumeira, começaram a sair do consórcio), e o Malah, que fazia locução na Rádio Difusora Mato-grossense, já havia sido contatado para ser o ilustrador e cartunista dos jornais do grupo a ser constituído pelo operador do projeto bancado pelo todo-poderoso senador e dirigente arenista, Felinto Müller. Cuiabano que ganhou poder à sombra de Getúlio Vargas (isto é, ditadura do Estado Novo), tão logo o regime de 1964 exerceu controle total na política brasileira, tornou-se homem-forte, presidindo a ARENA, o Senado e o Congresso Nacional. Mas sua trágica morte, ocorrida no acidente aéreo em Paris no dia de seu aniversário de 72 anos, com o incêndio e explosão do avião da Varig no Aeroporto de Orly, acabou por interromper todos os seus projetos e facilitar a divisão de Mato Grosso, pois, como cuiabano, o ex-membro da Coluna Prestes que virou integralista (na verdade, fascista declarado), se estivesse vivo, teria impedido qualquer iniciativa nesse sentido.
Malah, muito discreto e bastante politizado, sabia que Daniel Lopes não era apenas um dirigente de jornal de interior, e com muita prudência aceitou a proposta, que por ironia do destino não se concretizou. Se aparentemente o consórcio corumbaense fora criado para derrotar o então líder messiânico Cecílio de Jesus Gaeta, da oposição (primeiro, trabalhista, depois emedebista, mas dos rebeldes, sempre ligado a Pedro Pedrossian), o planejamento, execução e financiamento pelo homem-forte do regime tinham propósito maior: atender às pretensões pessoais de ser mais que simples governador de Mato Grosso, anteriormente derrotado por seu contraparente Fernando Corrêa da Costa, e, sobretudo, impedir a luta de seus desafetos do sul de Mato Grosso, de dividir o estado.
Parece ter sido ontem a eternização dessa pérola da Geração de Ouro, discretamente ao lado de sua maior expressão, o querido Jornalista Edson Moraes, que precisou mudar-se às pressas para a futura ‘nova cap’, Campo Grande, por conta da revelação, por seu O Tempo (diário que ele e o saudoso gráfico Manoel de Oliveira fundaram depois do fim da Folha da Tarde), do cemitério clandestino perto da estação de Urucum, o que lhe valeu a ira dos cães de guarda da ditadura. Já Malah, dedicado ao magistério, preferiu se ater às artes gráficas, que lhe permitia extravasar seu talento. Porque, além de sua Família, de ex-integrantes da Coluna Prestes, seu projeto de Vida estava fincado em Corumbá. Foi só se mudar para a capital, ficou taciturno e em menos de seis meses se eternizou.
Recorrentemente o Malah tem se manifestado mediante interlocutores de várias idades, gerações e localidades. Ora por meio dos queridos Amigos Edson Moraes, Juvenal Ávila, Luiz Taques, Nelson Urt, Adolfo Rondon, Alle Yunes, Douglas Assad e Lívia Gaertner, ou dos textos imortalizados dos saudosos e queridos Jornalistas Farid Yunes e Márcio Nunes Pereira. Todos os dois, aliás, muito gratos ao genial Malah: durante anos, seus cartuns ilustraram o Correio de Corumbá depois que Farid assumiu a direção do jornal, de forma combativa e vigilante; também grato, o Márcio nunca se esquecera de que, num gesto próprio da generosidade do Malah, muitos equipamentos gráficos do Diário de Corumbá leiloados judicialmente (adquiridos por ele, apenas para ajudar o Amigo) permaneceram na sede do jornal para manter as edições do combativo diário.
É provável que o Malah esteja, ao lado de Márcio e de Farid, celebrando este momento, sobretudo ao ver que os algozes das liberdades democráticas estão, dia após dia, vendo o sol a nascer quadrado e seus projetos golpistas indo pelo ralo. Como teria sido genial o registro deste momento da História pelos traços irreverentes do eterno Malah.
Ahmad Schabib Hany