Jesus Gaeta
e o ocaso das lideranças populistas corumbaenses
O falecimento do ex-deputado estadual Cecílio de Jesus Gaeta, o único no século XX a exercer o cargo por quatro mandatos sucessivos, encerra o ciclo de caudilhos corumbaenses. A despeito de sua ruptura com a base progressista que o projetou, sua trajetória política originou o empoderamento político, em plena resistência à ditadura, de pessoas humildes, como Rubens Galharte e os saudosos José de Oliveira e Jonas Ribeiro.
“‘Receba as flores que eu lhe dou / Em cada flor um beijo meu...’ Canta, Nilton César, que cada verso seu é uma punhalada no peito de meus inimigos!” Era assim como os multitudinários comícios do mito, verdadeiro mito (não aquele inominável que se valeu de hordas fascistas para projetar o que não tinha: conexão com as pessoas humildes), do Povo Corumbaense (e Ladarense) iniciavam, mesmo sob chuva ou frio intenso. Cecílio de Jesus Gaeta, ou Jesus Gaeta, deputado estadual da oposição de 1971 a 1986, detentor de quatro mandatos eletivos ininterruptos, provocava irritação e preocupação aos representantes dos mandarins de plantão ao longo de 21 anos do regime de 1964.
Quando os golpistas de 1964 agiram com virulência para apear dos cargos todos os que de alguma forma incomodavam àqueles que não tiveram competência democrática para vencer os trabalhistas e seus aliados em nível federal entre 1950 e 1960 (a despeito da eleição surpreendente do atabalhoado mato-grossense Jânio da Silva Quadros com sua contagiante marchinha ‘Varre, varre, vassourinha...’, que renunciou na tentativa de ser ‘entronizado’ como ditador), o até então desconhecido vendedor das Pernambucanas e taxista no outro período acabou sendo guindado à vereança por ter sido lanterninha dos candidatos do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Getúlio Vargas e João Goulart.
Gaeta não inspirava qualquer ameaça aos novos ‘donos do poder’, por isso não tinha sido cassado, diferentemente da maioria de seus correligionários do PTB e aliados, que simplesmente perderam o cargo e ficaram mais de dez anos sem poder exercer qualquer atividade política. Era um assassinato civil, como o filho do saudoso ministro da Saúde de Jango e criador do SAMDU (Serviço de Assistência Médica de Urgência), Doutor Wilson Fadul, fizera constar de seu depoimento sobre o médico e deputado federal por Campo Grande (e com grande base eleitoral na Corumbá cosmopolita dos anos 1950-60), ex-oficial da Aeronáutica. Além de Fadul, o deputado Pecy de Barros Por Deus e os suplentes para a Assembleia Legislativa de Mato Grosso Alberto Neder e Amorésio de Oliveira (e ex-deputado na década anterior), que passaram humilhações públicas e muitos deles até confinamento no famoso barco que ficou atracado na outra margem do Rio Paraguai, em frente ao Porto de Corumbá.
Diferentemente dos cassados, presos, torturados e humilhados (quando não dado como morto, como Wilson Fadul), Gaeta fez carreira política durante os anos de chumbo. Ele, depois de editado o Ato Institucional nº 2 (aquele que revogou os partidos anteriores a 1964, na tentativa de fazer com que o eleitorado ‘esquecesse do velho PTB’, e instituiu o bipartidarismo, isto é, a Aliança Renovadora Nacional, ARENA, da situação, e o Movimento Democrático Brasileiro, MDB, numa oposição consentida, submissa aos jogos do novo regime, que nada tinha de democrático).
Gaeta, contudo, na medida em que o MDB foi se transformando em oposição autêntica, sobretudo a partir de 1968, quando vários parlamentares seus foram cassados, presos, torturados e até mortos (caso, por exemplo, do líder do MDB na Câmara Federal, deputado Ruben Paiva, sequestrado depois das dez horas da noite de sua própria residência e cujo corpo até hoje não foi achado), ele foi se aproximando da ‘Arena 2’, do ex-governador e ex-pessedista (ex-correligionário de Juscelino Kubitschek de Oliveira e de Tancredo Neves). Foi, aliás, como o então líder do PMDB, deputado Sérgio Cruz, o denunciara no plenário da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul por ter votado com a bancada governista e contra a orientação de seu partido, que era da oposição.
Setores ligados ao Partidão questionaram Sérgio Cruz, mas em Corumbá e em Ladário os oposicionistas celebraram a atitude do líder do PMDB. Graças a isso, lideranças como Joilce Viegas de Araújo, Rômulo do Amaral, Rubens Galharte e Nivaldo Ferreira da Silva engrossaram as fileiras do PMDB, certos de que não seriam atropelados pelo caudilhismo do líder das votações, e que sufocava o surgimento de novas lideranças. Aliás, em 1978, ano da primeira eleição para o novo estado, Mato Grosso do Sul, Gaeta fez questão de fazer sua campanha acintosamente contrária à direção regional do MDB, tendo apoiado o ex-governador Pedro Pedrossian (Arena 2), que ao lado do ex-governador José Fragelli (Arena 1) saiu candidato a senador e se elegeu pela sublegenda, mesmo tendo recebido menos votos que o líder das pesquisas para senador, o ex-prefeito Plínio Barbosa Martins (Irmão de Wilson Martins, democratas de renome nacional), daí por que ele até hoje é chamado de Senador Moral de Mato Grosso do Sul.
A melhor definição do que foi o ‘gaetismo’ é da querida e incansável Dona Eva Granha de Carvalho, que em 1998 gravou um depoimento revelador, ao lado do Genro-Filho que durante décadas produziu vídeos e programas para televisão na fronteira Brasil-Bolívia. Uma das fundadoras do MDB original (e depois do PMDB, tendo saído para fundar o PT ao lado do deputado federal Antônio Carlos de Oliveira, José Orcírio Miranda dos Santos, José Mirrha e Ezequiel Lima, emblemático dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção de Campo Grande, antes ligado ao velho PCB). Bastante coerente e crítica, descreve Gaeta como um deslumbrado, que diante da súbita fama não conseguiu formar um coletivo de políticos que pensassem nas camadas populares e nas liberdades democráticas.
A Dona Eva Granha, filha de um Republicano Espanhol que se exilara na América do Sul depois que Francisco Franco, ditador sanguinário da Espanha, derrotara ao lado de Adolf Hitler a esquerda espanhola, foi a autora da ideia de que cada eleitor de Gaeta levasse uma rosa vermelha para o comício do candidato do povo, bem ao estilo da Teologia da Libertação. Como Gaeta era radicalmente avesso ao socialismo (a rosa vermelha traduz a Internacional Socialista até hoje, basta ver o símbolo do PDT de Brizola), logo tratou de romantizar aquilo que durante os primeiros comícios era uma espécie de mística para o início do discurso do candidato popular cujo perfil foi construído à sombra de antigos trabalhistas que tiveram seus direitos políticos cassados pelo regime de 1964.
Por isso, o eufemismo de ‘roseiral querido’ (bastante despolitizado) e a música-tema de um compositor de sucesso da Jovem Guarda, Nilton César, com sua icônica ‘Receba as flores que eu lhe dou’. Foi assim, despolitizado e personalista como o último líder populista corumbaense construiu uma carreira política à revelia do regime de 1964, mas como não representava qualquer ameaça à sua ideologia (pelo contrário, ele, ao lado da então vereadora Nelly Bacha, denunciou ‘comunistas’ dentro do MDB, numa alusão aos deputados Roberto Orro e Antônio Carlos de Oliveira, que representavam o setor mais ideológico da oposição à ditadura, mas nunca necessariamente ‘comunistas’).
Gaeta é digno de uma pesquisa de Ciência Política. O Jornalista Edson Moraes, um conterrâneo que trabalhou durante anos com seu desafeto Sérgio Cruz, é autor de uma reportagem de fôlego publicada em plena pandemia (creio que é autor da entrevista derradeira com o caudilho corumbaense). Com tantas informações sobre esse líder controvertido, imprevisível, verdadeiro ator em muitas situações, provavelmente Moraes se anime a fazer uma obra de fôlego sobre essa liderança singular. Edson Moraes é uma das grandes revelações do Consórcio Corumbaense de Comunicação (CCC), criado na década de 1970 para ‘barrar a reeleição’ de Gaeta e eleger dois deputados arenistas, mas a estratégia foi malsucedida e a morte súbita em desastre de aviação de um dos patrocinadores do CCC fez com que o projeto naufragasse, não sem antes ter permitido a revelação de grandes Jornalistas e Radialistas, isso graças à generosidade do saudoso Luiz Gonzaga Bezerra e à parcimônia de Daniel de Almeida Lopes. Sobre isso, aliás, vamos tratar em breve.
De minha parte, posso dizer que, mesmo sabendo que eu tinha participado do projeto do querido e saudoso Amigo-Camarada Mário Corrêa Albernaz, chefe de gabinete de Sérgio Cruz em seu mandato derradeiro na Assembleia Legislativa, Gaeta foi gentil e generoso quando retornou a Corumbá e instalou o emblemático diário O Combate: entre 1990 e 1991, depois que o querido Kojak e a Tânia deixaram o jornal, não só me permitia que usasse suas modernas máquinas para deixar algum texto assinado para publicar, como insistia no convite para que tivesse uma coluna fixa, prometendo que não demoraria a lançar O Combatente, uma versão vespertina do matutino. Pude perceber que não era de guardar mágoa, embora gostasse de ‘causar’ para obter algum dividendo político.
Quase dois anos depois da eternização do Irmão, ex-vereador Augusto Fernandes Gaeta, o ex-deputado Cecílio de Jesus Gaeta se eterniza, encerrando assim um ciclo, embora populista, bastante autêntico, pois os agentes políticos não eram fruto de marketing, mas da engenhosidade de pessoas do Povo, como Dona Eva Granha, e da intuição mística desse que foi líder messiânico e ao mesmo tempo receptáculo casual da decepção e do descontentamento por um regime que trouxe muito prejuízo a Corumbá, inclusive com a divisão do Pantanal e o destrato às demandas locais por seu desenvolvimento digno, no contexto de seu complexo bioma e peculiaridades regionais.
Ahmad Schabib Hany
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