Gal
e Boldrin se eternizam
A cultura brasileira se empobrece em
dose dupla neste 9 de novembro: Gal Costa, a intérprete da voz de cristal, e
Rolando Boldrin, o contador de causos mais autêntico da tevê, interrompem sua
jornada e passam a iluminar desde a eternidade a população recém liberta do
atraso e do obscurantismo fundamentalista.
“Ressuscita-me
/ Ainda que mais não seja / Porque sou poeta / E ansiava o futuro /
Ressuscita-me / Lutando contra as misérias do quotidiano / Ressuscita-me por
isso / Ressuscita-me / Quero acabar de viver o que me cabe / Minha vida para
que não mais existam amores servis / Ressuscita-me / Para que ninguém mais
tenha de sacrificar-se / Por uma casa, um buraco / Ressuscita-me / Para que a
partir de hoje, a partir de hoje / A família se transforme e o pai seja pelo
menos o Universo / E a mãe seja no mínimo a Terra / A Terra / A Terra” (“O amor”,
de Caetano Veloso e Ney Costa Santos Filho, homenagem ao Poeta soviético
Vladimir Maiakovski, autor do poema musicado.)
Entre o corre-corre do curso que
absorve a maior parte do tempo, eis que a mensagem de minha querida
Sobrinha-Camarada-Companheira-Amiga-Irmã-Ídolo Dunia me leva à dura realidade,
ao silêncio: a diva, terna e agora eterna Gal Costa se cala logo agora, quando
há tanto por fazer, construir, erguer. A gaivota da voz de cristal passa a
iluminar para sempre este povo altivo, recém libertado dos grilhões do
obscurantismo fascista, farsante e vil. Ela que enfrentou com maestria, ainda
garota, a (mal)ditadura perversa e opressora nos anos sombrios de 1960, 1970 e
1980.
Na melódica voz de Gal, ‘Baby’
(Caetano Veloso), ‘Divino Maravilhoso’ (Caetano Veloso e Gilberto Gil), ‘Meu
nome é Gal’ (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), ‘O amor / Ressuscita-me’ (Caetano
Veloso e Ney Costa Santos Filho sobre poema de Vladimir Maiakovski), ‘Chuva de
prata’ (Ed Wilson e Ronaldo Bastos), ‘Sorte’ (Caetano Veloso) e ‘Brasil /
Mostra tua cara’ (Cazuza) se alternam na minha memória, como numa gravação que
vem do âmago. É que sou da geração que aprendeu o português, o amor e a
cidadania ao som de divas como Gal Costa, Beth Carvalho e Elis Regina, entre
outras talentosas mulheres de vanguarda, corajosas, transformadoras.
Voz penetrante e inconfundível, Gal
era rigorosamente seletiva. Foi incondicional intérprete do fundador da
bossa-nova, o imortal João Gilberto. Ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil e
Maria Bethânia, se transformou na musa do tropicalismo, mas sem deixar suas
raízes na bossa-nova. Era dialética, se reinventando o tempo todo, e assim revelou
seu ecletismo musical, interpretando, com arranjo magistral, diversos gêneros e
compositores. Discreta, jamais se expôs, o que a distanciou do grande público,
que, no entanto, soube reconhecer o talento e personalidade. Sua carreira
internacional não foi caudatária, pois acompanhou sua própria trajetória: uma
conquista pessoal, brilhou nos Estados Unidos e Europa, tendo sido celebrada no
Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, na década de 1980.
Pena que as novas gerações não tenham
desfrutado da genialidade de Gal, aliás, Maria da Graça Penna Burgos Costa,
baiana nascida no pós-guerra de 1945. A despeito da ação repressora da
(mal)ditadura de 1964, sua geração foi talentosa, irreverente e inovadora e tem
um legado extraordinário em diversas áreas da cultura e das transformações
deste país-continente. Inspiração para as futuras gerações, tanto na vanguarda
estética como no comportamento generoso e irreverente, Gal Costa enriquece a
constelação eterna da humanidade, com a peculiar discrição que caracterizou sua
vida.
Boldrin, gênio do regional
“Pra
todo aquele que só fala que eu não sei viver / Chega lá em casa pruma visitinha
/ Que no verso ou no reverso da vida inteirinha / Há de encontrar-me num
cateretê / Há de encontrar-me num cateretê” (Rolando Boldrin)
Ainda em Campo Grande, outro baque: o
ator, compositor e contador de causos Rolando Boldrin, no mesmo fatídico 9 de
novembro, se eternizou também em São Paulo. Todos nós aprendemos muito também
com ele, não só em seu pioneiro ‘Som Brasil’, como nos sucessivos programas que
foi criando, produzindo e apresentando magistralmente desde 1981.
No tempo em que o televisor era
artigo de luxo, aos meus 12 anos, dava um jeito de dar uma escapadela para
assistir ‘Os deuses estão mortos’ (Record, 1971) e ‘Mulheres de areia’ (Tupi,
1973) na hospedaria da saudosa Dona Elisabeth Wünder de Arza, Amiga de minha
saudosa Mãe. Voz grave, feição sisuda (acentuada pela fronte marcada por uma
cicatriz) e sua singular capacidade de interpretação fizeram do ator pioneiro
da tevê um ícone, mais pelo talento e versatilidade que pelo pioneirismo.
Sua capacidade inventiva o levou a
mais de 150 composições inesquecíveis: ‘Vide vida marvada’, ‘Tema para Juliana’,
‘Seresta’, ‘Violeiro’, ‘Faca de ponta’, ‘Eu, a viola e Deus’ e ‘Amanheceu,
peguei a viola’. Além disso, sua generosidade gigante permitiu que inúmeros
artistas (não só compositores, como escultores e artesãos) pudessem sair do
anonimato e debutar em seus respectivos programas. Graças a essa atitude,
milhares de artistas têm nele um padrinho pé quente, pois após debutar em seu
programa ganharam rumo em seu ofício sagrado.
Gal e Boldrin, cada qual ao seu jeito
sincero e marcante, têm contribuições únicas à cultura brasileira. Abriram
também os horizontes de diversas gerações que tiveram neles referência inspiradora,
despertando-lhes o sentido de pertencimento e, sobretudo, de cidadania. Numa época
em que o tema diversidade-identidade era refém de um estúpido compêndio
instituído sem qualquer discussão com as diferentes regiões do País, além da
censura imposta por meio dos atos institucionais outorgados na calada da noite durante
os sombrios tempos de Médici e Costa e Silva (é proposital a inversão da ordem
dos generais de plantão).
Gal, por exemplo, nos deu provas inequívocas
de sua rebeldia convicta quando, sozinha, ousou enfrentar a matilha fascista
que a ferro e fogo silenciou juventude, artistas, intelectuais, pensadores e
oposicionistas e os levou à prisão, tortura, morte ou exílio -- exatamente como
ocorreu com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Marieta Severo, que
precisaram se refugiar na Europa. Já Boldrin, seu aparente conservadorismo era
cênico, para dar um ar de autenticidade a sua genial arte dramática, presente
em toda a sua obra, em todo o seu ofício.
Até sempre, Gal! Até sempre, Boldrin!
Obrigado pelos inúmeros ensinamentos, obrigado por sua generosidade, obrigado
por seu talento e obrigado por ter-nos tornado amantes da cultura do Povo
Brasileiro!
Ahmad
Schabib Hany
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