Dona Liane, sinônimo de
dignidade...
A
disseminação virulenta do ódio e da intolerância como pano de fundo do
assassinato com requintes de crueldade de uma incansável mulher que trabalhou
com honradez e dignidade até as horas derradeiras de sua exemplar existência.
Por meio de um telefonema
emocionado do Amigo Augusto Antelo, sogro de um parente da vítima, é que recebo
a trágica notícia do cruel assassinato de Dona Liane Arruda, a incansável
proprietária da Espeteria Darmanceff, há décadas referência de frango assado em
Corumbá, e nos últimos anos concorrido “point” para os degustadores do bom
espeto pantaneiro.
Como num filme, me reportei ao
final da década de 1980, quando vivíamos ainda o caos na economia provocado
pelos sabotadores do Plano Cruzado (1986). No mesmo endereço em que se encontra
hoje a espeteria funcionava havia décadas o armazém Darmanceff, do ex-sogro de
Dona Liane, então recém-casada com Estêvão, para onde fui comprar caixas de água mineral
em garrafas pet, pois as distribuidoras de bebidas se recusavam a vender o
produto, com preço controlado, ainda engarrafado nas antigas embalagens
retornáveis de vidro.
Fui atendido, com a gentileza e
educação que marcaram sua existência, pela jovem nora de Seu Darmanceff, a quem
sempre fiz questão de chamar de senhora. Os anos passaram mas permaneceram a
cordialidade e a discrição, creio que unânimes entre os que tiveram a sorte de
haver encontrado uma pessoa que, sem exagero, dignifica a espécie humana, sobretudo
nestes mesquinhos tempos de tanto ódio, intolerância e preconceito.
Ao retornar de Campo
Grande, em um período em que trabalhei por lá, surpreendi-me quando soube da
separação do casal, mas ela continuou firme no batente, cuidando dos filhos,
ainda adolescentes. Pouco antes do isolamento social, fiz contato telefônico para que
reservasse um frango assado e fui pegá-lo, mas por conta de um contratempo
demorei um bocado. Chegando lá, ao pegar minha compra pedi desculpas, ao que
ela, com a gentileza que lhe era peculiar, me respondeu que não houve incômodo,
pois era a hora da faxina.
Como toda pessoa bem sucedida
que lida com produção de alimentos, Dona Liane era generosa, e se demonstrava realizada
com o que fazia, com amor e dedicação. Por tudo isso, não é compreensível como
alguém, em sã consciência, possa ter praticado um crime cruel, torpe e
injustificável. Seja latrocínio ou feminicídio, que cabe à polícia desvendar,
não há palavras para definir tamanha aberração, desumanidade e sordidez.
Aliás, desde a eleição e posse
daquele que se diz presidente mas não faz mais nada que tuitar o tempo todo, os
índices de violência com requintes de crueldade aumentaram assustadoramente.
Não só pela sensação de impunidade, mas pela apologia ao crime com que os deslumbrados
que, por vias indizíveis, alçaram ao poder não para governar, mas para destruir
o Estado Democrático de Direito que nossas gerações levaram mais de duas
décadas para conquistar milimetricamente.
Embora não haja relação direta,
é óbvio que este contexto de bizarrices anacrônicas dignas da imaginação do
saudoso Dias Gomes e sua imortal Sucupira (em “O Bem-Amado”, dos idos da década
de 1970) tem contribuído para o desplante de mentes obtusas e pervertidas,
ávidas de sangue, entre os pretensos justiceiros, em sua maioria praticantes de
um fundamentalismo religioso que em nada segue o legado de Cristo, de oferecer
a outra face em vez de praticar a lei de Talião, do olho por olho, dente por
dente.
Descanse em paz, Dona Liane, e
que seu exemplar legado de integridade, honradez e dignidade permaneça vívido e
palpitante nos corações, mentes e atitudes destas e próximas gerações,
encorajando mulheres de garra a continuar as conquistas infindáveis por uma
sociedade melhor, em que a mulher não só seja protagonista, mas respeitada e
efetivamente protegida, material e humanamente.
Ahmad
Schabib Hany
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