“Ni modo”
Por
certo a perda mais impactante em minha infância/adolescência foi a de meu
Irmão-guru Mohamed Schabib Hany, o querido e saudoso “Chíchi” (pronuncia-se
igual ao apelido do técnico do Corinthians e depois da Seleção, “Tite”), eternizado
abruptamente, aos 25 anos de uma Vida intensa e benfazeja: aluno brilhante, mas
não “cdf”; filho e irmão generoso
e solidário, e, sobretudo, Amigo e colega leal e abnegado. Um cidadão a toda
prova.
Não
que antes não tivesse experimentado essa inevitável sensação nada aprazível de
perder um ser querido, o que nos dá a noção exata de nossa total impotência e
nos faz uma chamada precisa para a nossa real insignificância.
A
linda jovem e muito querida Prima Mshiroh (“Imchiróh”) Schabib, Mãe da querida
Najeh (“Najéh”) Schabib, uma de minhas primeiras Amigas do peito, se eternizou
aos 23 anos e, antes de virar saudade, pedira à minha querida Mãe que cuidasse
dessa Priminha, de minha idade. E o saudoso e igualmente querido “Abuelito”,
nosso Avô José (Yussef) Al Hany, Pai de minha saudosa Mãe, se encantara aos 67
anos. Ambos levados por uma longa doença, na época sem cura (creio que a leucemia).
Isso ocorrera na primeira metade da década de 1960.
Mohamed,
o “Chíchi”, se encantou traumática e repentinamente, em 21 de setembro de 1974,
em meio a uma cortina de mistérios que a saudade jamais silenciou. Num tempo em
que nada, absolutamente nada, podia se esperar das “otoridades” policiais. Nem
recorrendo ao juiz de Direito ou ao general da Brigada, como os meus saudosos
Pais, levados pelo desespero, foram orientados a fazer. Em vão. Nem perícia,
nem laudo, nem inquérito. Decretaram que tivesse sido suicídio, e ponto final
-- danem-se os familiares e a memória do falecido...
Basta
dizer que, seis meses antes, na madrugada do dia de aniversário de 48 anos de
minha Mãe (11 de março de 1974), feito jagunços, seis atiradores, que depois se
identificaram como policiais, haviam disparado mais de trinta tiros contra a
parede lateral da moradia de minha Família, felizmente construída nos anos
1930/40 como fortaleza de pedras e madeira de lei. E o pretexto era que “alguém”
(que supunham ser meu Irmão) -- e por isso teria que ser executado assim, crivado
de balas, e sem direito a investigação prévia e julgamento justo, à luz da lei
-- andava atirando pedras no telhado de um bar noturno frequentado por
explorados peões de fazenda ansiosos por saciar suas necessidades sexuais. Na
verdade, tratava-se de uma retaliação contra meu Pai, que liderara, a pedido da
vizinhança, a subscrição de um abaixo-assinado, ao final do ano anterior,
reivindicando das autoridades limites legais para o funcionamento de diversos
bares noturnos, por causa da violência que ameaçava aumentar na ex-Feira
Boliviana, como então se denominava aquele perímetro de Corumbá situado nas
imediações da Estação Ferroviária Internacional, inaugurada em maio de 1968.
Além
de ter sido uma flagrante ameaça a toda a nossa Família, com clara finalidade
de intimidação, esse atentado que felizmente não matou nem feriu ninguém -- até
porque fez meu saudoso Pai revidar oportuna e corajosamente com cinco tiros
quase certeiros (pois, além de ter sido campeão de tiro ao alvo em sua
juventude na Amazônia, ele tinha arma registrada com porte legalizado) --, aquele
episódio foi um ultraje, uma humilhação para todos nós, sobretudo para o
“Chíchi”, estudante de Psicologia quase concluinte e um jovem idealista que
cultivava a solidariedade e a paz em suas relações, fosse com a vizinhança ou
clientes da modesta pousada e os colegas e amigos do então Centro Pedagógico de
Corumbá, um dos campi da extinta Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT),
criada havia poucos anos.
Desde
tenra idade Mohamed se revelara um líder natural. Não por ser o mais velho de
uma prole de nove filhos, mas por seu comportamento, espontaneamente. É o que
contavam meus saudosos Pais, e seus Amigos de infância assim o confirmaram, em
depoimentos espontâneos, enviados tão logo souberam de sua eternização, 45 anos
atrás. E sua marca era a lealdade e o afeto mesclado a uma alegria infinita.
Nos momentos tensos, costumava contar anedotas, para aliviar a tensão. Quando,
em casa, recebia uma repreenda de nosso Pai, por algum motivo (inevitável nas
relações entre Pais e filhos), ele costumava procurá-lo, mais tarde, para se
explicar. E quando o choque era de opinião, seu bordão inesquecível era um
marcante “ni modo”, em espanhol (isto é, “fazer o quê?”).
Quando
tomei consciência de minha inserção numa família numerosa, pude perceber uma
relação leal e solidária entre meus Irmãos mais velhos, sobretudo os três
maiores: Mohamed, Wadia e Muslim, que ao voltarmos do Líbano, ficaram para
morar e estudar com a minha querida e saudosa “Abuelita” (Avó materna), Dona
Guadalupe Ascimani de Hany, uma segunda Mãe para todos os netos, viúva aos 58 anos
e que se eternizou aos 73 anos, também por uma doença incurável que a deixou
prostrada por um longo tempo, mas sem perder a lucidez e a vontade de viver.
Por conta das idas e vindas entre o Líbano e a Bolívia, Mohamed e Muslim
acabaram estudando na mesma série, apesar da diferença de dois anos entre eles,
mas sem qualquer sentimento de competição ou recalque. Lembro-me da festa de
formatura do ensino médio, em 1967, em Cochabamba, no então imponente Colégio
Nacional Daniel Sánchez Bustamante, em que o “Chíchi” recebeu anel de honra ao
mérito por ter sido o melhor aluno nos três anos seguidos. E no dia seguinte à
festa, a apresentação ao Serviço Militar (na época, os estudantes faziam o
“pré-militar”, uma espécie de prática de tiro), em que os dois irmãos cumpriram
com responsabilidade, tendo sido promovidos a “dragoniante”, como registra a
sua carteira de reservista do Exército boliviano.
“Chíchi”
decidira cursar Engenharia Civil, que na época somente era oferecida na Bolívia
pela Universidade Mayor de San Andrés (UMSA), em La Paz, quando se distanciou
do Muslim, que optara por Medicina, na Universidade Mayor de San Simón (UMSS),
em Cochabamba (onde um ano depois Wadia ingressaria no curso de Arquitetura).
Eram anos de repressão e resistência, tanto para universitários como para os
trabalhadores. Os dois irmãos foram líderes estudantis espontaneamente, mas
cada qual ligado à sua universidade e ao seu contexto. Em La Paz, sede de
governo boliviano, a visibilidade de Mohamed se deu de forma meteórica. Em 1970,
quando o efêmero governo do general Rogelio Miranda promoveu uma intensa
repressão a intelectuais, sindicalistas, religiosos e docentes universitários,
tendo sido levados ao temido Panóptico de San Pedro, os estudantes tomaram a
Bastilha boliviana, e “Chíchi”, por dois dias seguidos, esteve na capa dos
jornais “Presencia” e “El Diario”, de maior circulação do país, para explicar
os motivos da iniciativa dos universitários pela libertação dos presos
políticos. Os meus Pais, temerosos, ao receber os jornais com a foto dele,
passaram a ver com preocupação esse grau de exposição, como que antevissem o
que viria a seguir.
Naquele
ano ele trocara Engenharia por Sociologia, e seu engajamento político já era
explícito. Era um quadro orgânico socialista e sua atuação como líder
estudantil o expunha excessivamente. O sangrento golpe militar encabeçado pelos
coronéis Andrés Selich e Hugo Banzer, em agosto de 1971, tinha como alvo
principal dos líderes sanguinários fascistas a cidade universitária da UMSA, em
plena área central de La Paz, para impedir que a resistência civil, liderada
por sindicalistas, intelectuais, universitários e religiosos, pudesse de alguma
forma conter o avanço dos golpistas, cujo epicentro era Santa Cruz de la
Sierra, palco de uma sangrenta batalha campal no perímetro urbano da então
terceira maior cidade da Bolívia.
Não
demorou muito, e um telegrama enviado de Cochabamba pelo Tío “Yoco” (José Tamim
Hany Ascimani), Irmão de minha Mãe -- com um lacônico “Mis pésames. Chichi
falleció.” --, fez toda a família cair em pranto. Pouco depois,
desesperadamente, minha Mãe e meu Irmão Muslim, que passava as férias em
Corumbá, viajaram para La Paz. Estávamos de luto. Amigos e vizinhos vinham
prestar solidariedade. Foram pelo menos cinco dias de sofrimento até ficarmos
sabendo que ele estava ileso. Erroneamente o nome dele constava de uma lista de
mortos no Restaurante Universitário da UMSA, um dos locais da resistência ao
golpe sanguinário e alvo de bombardeio aéreo e de atiradores de elite das
tropas golpistas. Ele, como dirigente estudantil, estava em uma frente ampla, fazendo
isolamento ao Palácio Quemado, para impedir a destituição do Presidente Juan
José Torres e repelir as investidas fascistas dos coronéis Selich e Banzer em
sua ânsia pela tomada do poder.
Uma
semana depois, “Chíchi” finalmente estava entre nós, com minha Mãe e Muslim.
Alivado e feliz, meu Pai o chamara de Lázaro, o personagem bíblico, por ter
sobrevivido à morte anunciada. Desde então, ele não mais retornara à Bolívia,
cujas universidades tiveram decretado um recesso compulsório por mais de três
anos. Tanto Mohamed como Muslim fizeram vestibular no Brasil para continuar os
estudos -- como Sociologia era um curso banido das universidades brasileiras
naquele período da história, ele se matriculara no curso de Psicologia, a
partir de 1972. Amigos queridos, como Marlene Terezinha Mourão (“Peninha”),
José El-Haje (“José Lata”), Pastor Cosmo Gomes de Souza, o Senhor Lincoln Gomes
e os Professores Valmir Batista Corrêa, Lúcia Salsa Corrêa e Gilberto Luiz
Alves, nos contaram sobre alguns momentos de convívio ou de encontro no Centro
Pedagógico durante sua passagem pela UEMT, como sua presença assídua na
biblioteca do CPC e sua participação em algumas atividades acadêmicas, mas
sempre discreto (em nada lembrava o líder estudantil que atuou ativamente na
resistência democrática em seus derradeiros anos de Vida na Bolívia).
Mas
nem por isso sua permanência em Corumbá foi infeliz, pois, soube, sabiamente,
cercar-se de Amigos, de todas as camadas e classes sociais, nacionalidades e
confissões religiosas. Mohamed viveu intensamente, estudando e conhecendo o
Coração da América do Sul em sua breve estada na enigmática Corumbá dos anos de
chumbo, em que (sic) forças não tão
ocultas sentenciavam sorrateiramente o destino dos que não agradassem aos
regimes de arbítrio e opressão implantados a ferro e fogo em nossa triste
América Latina, ao gosto e sabor do império do norte. Ainda que a contragosto
de meu Pai, dedicou bom tempo (creio que mais de ano) a trabalhar com o
imigrante italiano Alfredo Buonnocore em sua “Ital-Mecânica Corumbaense”, em
frente ao recém-inaugurado Centro Educacional Júlia Gonçalves Passarinho, do
outro lado da Cadeia Pública (anos depois, Pró-Sol e Casa do Artesão). Seu
Buonnocore (“bom coração”, em italiano), então, lhe mostrou seu projeto de
“trator-anfíbio do Pantanal”, projeto que depois levou para a Ilha do Marajó,
no Pará. Aqui não contara com o apoio necessário -- em Corumbá conseguiu
construir duas unidades, além do protótipo --, mas na Amazônia fez dezenas de
unidades, e no final da Vida acabou vendendo seu projeto para a Volkswagen do
Brasil, que guardou o projeto para a posteridade.
Com
outros senhores igualmente mais velhos que meu Pai, como os queridos e saudosos
Abu Kamel (Mohamad Bazzi) e Kablan Hamdan, ambos socialistas (um libanês e
outro palestino), costumava conversar sobre política internacional e as
investidas do império no Oriente Médio, como a suspeitíssima morte nunca
elucidada de Gamal Abdel Nasser, líder pan-arabista egípcio que criou a
República Árabe Unida (RAU), contribuiu para a descolonização da África das
potências coloniais europeias e participou ativamente da fundação do Movimento
dos Países Não-Alinhados, ao lado de Jawaharlal Nehru, Broz Tito e Chu En-Lai.
E como ficaram abalados quando souberam da trágica eternização de “Chíchi”,
tendo ficado ao lado de meu Pai todo o tempo de seu luto, como verdadeiros
Irmãos.
O
querido e saudoso Senhor Inácio Ramos da Silva, nascido em 1904, também era um
dos Amigos dele. Além de conversar sobre a Corumbá do tempo das charqueadas
(antes de ser carpinteiro, Seu Inácio foi magarefe, uma especialidade que
desapareceu depois da decadência da indústria da carne em nossa região), “Chíchi”
desempenhava com ele alguns trabalhos de marcenaria, como aprendiz. Levava-me
junto nessa empreitada, confeccionando casas para os cachorros, estantes para
os livros, móveis simples para objetos da casa e até estrados para as camas da
pousada de meus Pais, que precisavam se modernizar para os novos tempos dos
“colchões de mola”, periodicamente renovados para atender aos clientes.
Criativo e habilidoso, confeccionou uma estrutura para espetinhos que eu vendia
na infância e para venda de cachorro-quente, que lamentavelmente não teve tempo
de colocá-la em funcionamento.
Não
tinha preconceito de ninguém, tanto que estudava diversas disciplinas com
alguns militares da Marinha que vieram servir e estudar na região. Alguns deles
depois se tornaram professores nossos no ensino médio, como os sargentos
Uberlândio Passos e Chevalier da Silva, Amigos que herdei de suas relações.
Inclusive com os colegas de todas as minhas Irmãs mais velhas, ensinando disciplinas
como Matemática, Física, Química e Biologia. Com os meus Amigos João de Souza
Álvarez, Juvenal Ávila de Oliveira e Benedito Jesus Silva da Cruz também
estudava e conversava sobre os mais diversos temas. Certa vez a um deles, que
lhe dissera ter passado de uma para outra denominação religiosa por falta de
identificação, “Chíchi” observara que a fé é “de dentro para fora”, isto é, não
importa a denominação, o importante é a prática de suas concepções. Tempos
depois de meu Irmão ter se eternizado, esse querido Amigo me disse que não ter
esquecido “essa lição” que ouvira dele.
Entre
outros Amigos assíduos estavam o neto de Seu Inácio, o também saudoso Mário da
Mota e Silva (que morara no Rio de Janeiro, onde passou a compreender a
realidade brasileira em pleno regime de 1964), Don Virgilio (um Amigo boliviano
cujo sobrenome não lembro, pai da América e outras três filhas, um socialista
que fez questão de deixar um depoimento emocionado para o meu Pai quando
“Chíchi” se eternizou) e o “Carioca” (desse Amigo, que retornou para o Rio de
Janeiro em 1978, não me lembro seu nome, mas era uma excelente pessoa, grande
vendedor de amendoim, tendo inventado um aquecedor a carvão com alça que o
carregava como balde). Esses eram alguns de seus Amigos, que acabei por herdar
dele, e com os quais pude conhecer melhor o meu guru que se eternizara quando
eu era apenas um adolescente.
Por
isso tudo, chega a ser inconcebível para quem, como eu, que conviveu e o
conheceu profundamente, aceitar a sentença imediata, sem maiores investigações
nem a devida perícia básica -- como o exame de balística --, de que nosso
querido Irmão “Chíchi” se suicidara. Fui eu, aliás, quem o encontrou inerte, ao
retornar de uma saída para adiar a entrega de trabalho escolar à professora de
Biologia, ao lado dos Amigos João de Souza Álvarez, Juvenal Ávila de Oliveira e
Benedito Jesus Silva da Cruz, com quem almoçáramos juntos, e nossa imagem
derradeira desse jovem alegre, cheio de planos, jamais tinha qualquer motivação
drástica como a autoeliminação.
Toda
a minha Família tem presente aquele sábado, 21 de setembro de 1974, feriado
municipal de fundação da cidade, quando todos os alunos participavam do desfile
cívico-militar, à exceção daquele ano, em razão do luto decorrente do acidente
aéreo em que todos os membros do Comando da 9ª Região Militar, com sede em
Campo Grande, haviam falecido dias antes. Meu saudoso Pai estava em jejum pelo
Ramadan, mês sagrado muçulmano, desde a alvorada até o pôr-do-sol. Na hora do
café da manhã, todos nós nos reunimos, à exceção de meu Pai, e “Chíchi”, brincalhão
como sempre, substituíra o sal pelo açúcar na hora de adoçarmos o café. Mais
tarde, quando coube a mim a recepção da pousada, registrei apenas dois
hóspedes, precisamente às 10 horas da manhã: dois jovens bolivianos, bem altos,
cabelos e barba feitos e de características europeias. Eram os únicos hóspedes naquele
dia, pois todos os que pernoitaram haviam viajado bem cedo, ou para Campo
Grande ou para Santa Cruz de la Sierra. Permaneci até o final do almoço na
recepção, quando fui rendido por uma de minhas Irmãs.
Tínhamos
o hábito de nos reunir para almoçar todos juntos depois de atender aos
comensais no refeitório da pensão. Na companhia de meus Amigos, com os quais
saí logo após o almoço, nos despedimos dele e de minha Mãe, que permaneceram à
mesa, conversando. Não passava de uma da tarde quando saímos para nos dirigirmos
à casa de nossa professora de Biologia, mas devagar, até porque fazia um calor
típico daquela estação do ano. No centro, antes de irmos ao Edifício IOSA, onde
residia nossa professora, passamos pelo saudoso Café Castelinho, e conversamos
longamente até aproximadamente as três da tarde. Somente então nos dirigimos ao
apartamento da professora, que conversou conosco sem qualquer pressa. Lembro
que saímos do edifício quase às quatro e meia da tarde, e a seguir adentramos
ao saguão do Cine Tupi, situado no andar térreo do imponente prédio, para ver
os cartazes dos filmes em exibição. Precisamente às cinco horas, meus três
Amigos seguiram para as suas casas, e eu retornei para casa depois de comprar
os exemplares da “Folha de S. Paulo” e do “Jornal do Brasil” que Seu Natércio
Pinheiro guardava para meu Pai.
Ao
chegar em casa, às cinco e meia da tarde, cumprimentei três amigas de uma de
minhas Irmãs que estudavam para uma prova e deixei os exemplares dos jornais na
mesa da recepção da pousada. Logo, me dirigi ao quarto, em que deixara a
máquina de escrever com parte do trabalho de Biologia datilografado, pois
tínhamos o compromisso de entregá-lo à professora na segunda-feira. Mas ao
adentrar, me deparei com a porta entreaberta (quando eu havia deixado fechada,
com a chave na porta), a luz acesa, a máquina com os papéis datilografados e
manuscritos delicadamente colocados sobre uma das camas, e “Chíchi” estendido
no chão, entre as duas camas, sob um manto avermelhado. Tomado por uma estranha
sensação de pânico, forcei a vista e percebi que o que aparentava ser um manto
era na verdade o que não queria admitir: era o seu sangue, que cobria todo o
seu rosto e parte de seu corpo. Fiquei inerte por alguns segundos, tendo
contido o impulso de ir ao encontro dele, para sacudi-lo. Não consegui. Contive
a vontade de sair correndo.
Fui
à procura de meu Pai que, por causa do jejum, descansava enquanto esperava pelo
pôr-do-sol para poder saciar a sede e se alimentar. Com muito custo, consegui
chamá-lo: “Papai, vem ver o que ‘Chíchi’ fez...” Ao me ver tenso e pálido,
Papai se assustou, mas acreditou que se tratasse de futrica de adolescente, e
me aconselhou a conversar com meu Irmão. Não conseguindo falar, peguei meu Pai
pelo braço, e o levei ao encontro daquela cena trágica. Foi quando o vi pela
primeira vez chorar incontida e desesperadamente, chamando por seu nome e se
perguntando por quê. Uma cena que jamais sairá de minha memória. O pranto de
meu Pai chamou a atenção das duas Irmãs que estavam em casa e das Amigas que
estudavam com elas. Elas, desesperadas, vieram ao nosso encontro, além das duas
senhoras que trabalhavam na pensão naquele horário (a camareira e a
cozinheira). Uma das senhoras, bem forte, acudiu meu Pai e lhe deu um copo de
água com açúcar, enquanto a outra tentava acalmar as minhas Irmãs, que também
desabaram a chorar, ao lado das Amigas, que não sabiam o que fazer.
Como
minha Mãe havia ido à verduraria de Seu Manuel Avelino, a menos de cem metros
da hospedaria, para comprar verduras para o jantar (oportunidade que tinha para
conversar e tomar um café com a esposa dele, a saudosa Dona Lídia Avelino), fui
à sua procura, depois de passar pela quitanda de Seu Brotinho, a quem pedi que
fizesse o favor de ligar para a polícia e a ambulância para atender a um
chamado na pensão (nessa época, não havia telefone público e poucas eram as
moradias e comércios com telefone privativo, fosse em Corumbá ou na chamada
ex-Feira Boliviana). Ao chegar na verduraria de Seu Manuel, chamei com uma voz
trêmula por minha Mãe, e Dona Lídia, uma pessoa muito espiritualizada, se assombrou
com minha palidez, e disse à minha Mãe: “Vai, Dona Yoya, que não é notícia boa
que esse menino traz! Depois eu vou...” Mamãe não escondeu o susto, e insistiu
comigo para saber de que se tratava. Não conseguia falar, apenas a levava pelo
braço, para chegar o mais rápido possível. Ao passarmos pelo prédio da
Embratel, deu para ver a multidão se formando em frente da pousada e a chegada
das viaturas da polícia e da ambulância. Foi então que Mamãe se desesperou e
começou a correr no sentido de casa, já em pranto.
Quando
cheguei com Mamãe, minhas Irmãs e algumas Amigas a acudiram: por elas é que
ficou sabendo quem havia falecido. Fui ao encontro de Papai, que mal conseguia
falar com os policiais e os socorristas. Ao constatar que meu Irmão havia
falecido, a ambulância se foi. Depois de o Senhor Soares, conhecido fotógrafo,
ter registrado a cena do ocorrido, o corpo de “Chíchi” foi levado na Veraneio
da Polícia Civil (a companhia da Polícia Militar seria instalada em Corumbá
três anos depois, em 1977, ano em que Mato Grosso fora dividido, quando o
corumbaense Cássio Leite de Barros era vice-governador e depois o último
governador de Mato Grosso uno). Entre os policiais que levaram o corpo de meu
Irmão estavam alguns dos envolvidos no tiroteio do dia 11 de março contra minha
Família, e eu tive a impressão de que ele era levado como um troféu, o que me
doeu ainda mais. Como então não havia IML, o corpo foi deixado no necrotério,
localizado aos fundos do Hospital de Caridade (terreno em que foi construído o
hemocentro local), para onde retornei depois de fazer o único depoimento dado
em todo o processo, na delegacia situada nas imediações do Aeroporto Internacional.
O
único depoente fui eu, de 15 anos de idade e desacompanhado de qualquer pessoa
maior de idade. Ainda tomado de susto pelo que presenciara, não conseguia ouvir
(e muito menos entender) as perguntas feitas, sobretudo se ele se suicidara
mesmo. Naquele momento eu simplesmente não sabia o que era suicídio, mesmo
assim me fizeram assinar um documento, que acabou sendo o único a embasar o
processo de investigação (que, a rigor, não houve), como não houve exame de
balística e o revólver levado junto, um “Smith & Wesson” 1940 com cabo em
madrepérola, simplesmente desaparecera com o relógio “Mido” que ganhara de meu
Pai ao ingressar na universidade. Além do mais, foi muito sugestivo o teor
liberado para a imprensa, conforme noticiado, na segunda-feira, dia 23 de
setembro, pelo rádio e, na terça-feira, dia 24, pelos jornais, de que (sic) “estudante universitário se fuzila
em casa”.
Depois
de ter permanecido pelo tempo que representou para mim uma eternidade na delegacia
de polícia e de ter passado por essa verdadeira sessão de tortura, me deixaram
no necrotério, onde aguardei pelo traslado do corpo de meu Irmão pela funerária
que o prepararia. Outra cena que jamais esquecerei: na penumbra, o corpo inerte
de meu Irmão sobre uma mesa de mármore, o pequeno quarto com a porta
entreaberta, sem uma cadeira ou banco para sentar-se. Foi outra eternidade,
mas, ao contrário da Polícia, os agentes funerários foram mais sensíveis e me
deixaram num fusquinha em casa, pois demorariam para levar o caixão para o
velório, que ocorreu nas dependências da pensão, como quiseram meus Pais.
Nem
bem nos repusemos do baque, tivemos que visitar todas as redações de jornais e
rádios locais para tentar amenizar os termos utilizados pelo setor de
divulgação da delegacia, além de tentar restaurar a verdade. Vali-me da
companhia dos Amigos Juvenal Ávila de Oliveira, então radialista, e João de
Souza Álvarez, repórter fotográfico, para sensibilizar os meios a mostrar o
“outro lado” da notícia. Que eu me lembre, o único jornal que publicou a versão
da família da vítima com igual espaço e destaque em sua edição seguinte foi o
“Diário de Corumbá”. O fundador, Jornalista Carlos Paulo Pereira, era Amigo de
meu Pai e sempre dera um espaço para que ele escrevesse seus comentários sobre
o Oriente Médio (razão pela qual eu, desde cedo, assumi a revisão de seus
textos publicados pelo jornal). Depois da eternização de meu Irmão Mohamed,
Papai passara a publicar rigorosamente três vezes ao ano um artigo de conteúdo
espiritualista que foi ganhando adesão de muitos leitores, tendo sido o mais
reconhecido (e republicado em outros jornais no Brasil e na Bolívia) o artigo
intitulado “De onde viemos, para onde vamos e por quê?”, de 1976.
Na
tentativa de esclarecer e até de sair de dúvidas que consumiam toda a Família,
meus Pais recorreram, orientados por Amigos, ao juiz de Direito da Vara Criminal
e ao general da Segunda Brigada Mista, que encaminharam expedientes ao então
delegado regional de polícia, bacharel Élio Marsiglia, nosso ex-professor de
Matemática e de Educação Moral, Social e Cívica, e o mesmo que, como delegado
de políica, recebera o abaixo-assinado do final do ano anterior e a reclamação
pelo tiroteio contra a moradia de nossa Família, o que não dera em nada. Nem
devolução de revólver e relógio, nem elucidação do crime (ou acidente) ocorrido
com “Chíchi”. Três anos depois, o Jornalista Edson Moraes, ex-repórter da
“Folha da Tarde” e mais tarde fundador e diretor de “O Tempo”, precisou fechar
seu jornal e se mudar definitivamente para Campo Grande depois de ter publicado
uma série de reportagens em que denunciava a existência de um cemitério
clandestino na estação de Urucum, cuja responsabilidade era atribuída aos
órgãos de repressão.
Não
bastasse a iniciativa solidária dos colegas do curso de Psicologia de Mohamed,
que, por meio do saudoso Senhor Lincoln Gomes (que entoara durante a celebração
belíssimos hinos sacros), solicitaram autorização ao bispo diocesano para
realizar missa de sétimo dia em sua memória (então, as pessoas sepultadas como
suicidas não podiam ter celebração póstuma, por entendimento do Vaticano),
membros da União Espírita Corumbaense, por meio de Dona Elza (esposa de Seu
Brotinho), convidaram meus Pais para participarem de uma sessão espírita
reservada em que, após a realização, receberam mensagem de que “Chíchi” não era
suicida, o que tirou um fardo das costas de toda a Família.
Como
se isso tudo não tivesse sido suficiente, por pura coincidência, um
investigador de ascendência nipônica, de uma grande companhia multinacional de
seguros (“Argos”), de São Paulo, se hospedara, a trabalho, na modesta pousada
de meus Pais por duas semanas, e ao longo do tempo do convívio inevitável com
os adultos da pensão, acabou por saber do ocorrido com nosso Irmão. Com muita
discrição, aquele senhor cujo nome não lembro, pediu que meu Pai contasse em
detalhes o episódio, perguntou sobre o comportamento de Mohamed (sobretudo nos
seus últimos dias), sobre seu desempenho na universidade e a relação com os
colegas e Amigos. Perguntara se havia sido feito exame de balística e outros
exames de corpo de delito, e diante da resposta negativa de meu Pai ficou
visivelmente contrariado, mas sem
manifestar absolutamente nada. Como no decorrer de sua fala meu Pai falara do
registro fotográfico de Seu Soares, perguntou se podia ver as cópias das fotos
entregues por ele para Papai, por conta da amizade entre eles. Dois ou três
dias antes de ir embora, o investigador pediu para meu Pai chamar minha Mãe, e
a sós com eles descartou qualquer hipótese de suicídio. Disse que não poderia
afirmar que se tratasse de acidente ou de assassinato por não ter mais dados, e
que a não realização de exame de balística ele considerava um ato criminoso.
Isso, aliás, foi o que motivou meus Pais a insistirem no acompanhamento do
inquérito policial, que nunca deu em nada.
Meus
Pais sabiam que os tempos eram de chumbo não só na Bolívia. Como eram
estrangeiros no Brasil, insistiram até o limite da legalidade, ou melhor da
frágil institucionalidade, mas acabaram levando para a eternidade uma
angustiante dúvida, decorrente da acintosa (sic) “negligência” do delegado
regional de polícia, nomeado sem concurso por suas relações familiares com
membros da Arena, o partido de sustentação do regime de 1964, que, depois da
denúncia do Jornalista Edson Moraes (ameaçado de morte pela série de
reportagens), acabou abreviando sua carreira policial. Curioso é que um
ex-colega secundarista, caricaturista do saudoso “Clarim Estudantil” (jornal
interescolar criado pelos alunos do Centro Educacional Júlia Gonçalves
Passarinho), em pleno regime democrático (precisamente em 2008), propôs homenagear
o ex-delegado e ex-professor com uma comenda dos Direitos Humanos quando ele (o
ex-caricaturista) residia em Brasília e dizia atuar em uma organização social
de defesa dos Direitos Humanos.
Ahmad Schabib Hany
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