POR QUEM
OS SINOS DOBRAM (uma reflexão sobre a solidariedade)
Por José
Gonçalves do Nascimento (*)
Começo recorrendo ao mestre John
Donne, citado por Ernest Hemingway, no clássico "Por Quem os Sinos
Dobram": “Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem
é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Portanto, nunca procures
saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.
Costuma-se dizer que o que nos
une, enquanto humanidade, é maior do que aquilo que nos divide. E é verdade. Pelo
menos nestes aspectos: habitamos sob o mesmo teto, respiramos o mesmo ar,
bebemos a mesma água; vivemos sob o mesmo céu, nos banhamos no mesmo mar, nos
alimentamos dos mesmos nutrientes; temos em comum o nascer, o viver e o morrer;
partilhamos dos mesmos problemas, das mesmas inquietações, das mesmas
incertezas; somos semelhantes em tudo, inclusive na finitude; participamos dos
mesmos destinos, viajamos na mesma embarcação, estamos sujeitos aos mesmos
limites.
Destinos comuns, inquietações
comuns, problemas comuns, desafios comuns exigem dos humanos gestos, atitudes,
caminhos igualmente comuns. Isso implica a capacidade de ver o que se passa no
entorno, de olhar para além do próprio umbigo, de atentar para as angústias do
outro, de deixar o outro falar, de ir além do que se é cobrado, de romper
preconceitos, de ultrapassar fronteiras, de ousar, de provocar, de questionar.
Significa assumir a defesa do outro; mais do que isso: colocar-se no lugar do
outro, sentir a dor do outro, interessar-se pelo outro; correr risco pelo
outro. Implica, às vezes, não apenas ensinar o caminho, mas pegar na mão do
outro e levá-lo até o caminho; não apenas ensinar a pescar, mas também pegar no
anzol e ajudar o outro a pescar; é colocar “o coração na miséria alheia”, no
dizer de Guimarães Rosa; é Ir junto, fazer junto, incomodar-se junto, resistir
junto, lutar junto, celebrar junto...
Carregamos em nós infinitas
possibilidades, entre as quais a de superar o individualismo tacanho que nos
avilta e nos distancia do nosso real papel enquanto membros de uma comunidade
de semelhantes. Carregamos em nós, igualmente, a disposição para práticas
concretas de altruísmo e de dedicação ao serviço da causa humana, bem como do
ambiente em que vivemos, nele incluídos outros seres vivos, a terra, o mar, o
ar, os rios, as florestas.
Só a solidariedade, como valor
universal e intrínseco à natureza humana, é capaz de conceber relações de paz,
de justiça, de tolerância, de respeito às diferenças (individuais e coletivas),
de acolhimento ao migrante, ao refugiado, aos que se encontram à margem da
sociedade, aos excluídos de tudo e de todos.
A solidariedade está na luta dos
defensores do acesso à terra por parte daqueles que dela dependem para morar,
trabalhar, cultivar sua lavoura, alimentar sua criação, comer, beber, educar
seus filhos.
A solidariedade está na luta dos
defensores do uso da moradia por parte de quem não dispõe de um lar digno onde
possa repousar com o mínimo de conforto e segurança.
A solidariedade está na luta dos
defensores das populações de rua, habitantes de outra cidade dentro da mesma
cidade, cidadãos de papel, reféns da culpa de terem nascidos pobres, pretos,
gays, lésbicas, analfabetos, nordestinos, alcoólatras.
A solidariedade está na luta do
povo indígena em defesa do seu direito à terra, aos rios, às florestas, à caça,
à pesca; bem como ao pleno usufruto das suas culturas, das suas línguas, das
suas religiões, dos seus saberes, das suas filosofias, dos seus mistérios, dos
seus feitiços.
A solidariedade está na luta do
povo afrodescendente que a todo momento busca impor-se, ocupar espaços de
decisão, e usufruir de oportunidades iguais em relação aos outros, apesar dos
estigmas do preconceito racial (e classial) de que foi e continua sendo vítima.
A solidariedade está na luta
política em defesa das liberdades democráticas, na promoção dos direitos
humanos e sociais, na afirmação das minorias, na preservação do meio ambiente,
no fomento de iniciativas que proporcionam o pleno exercício da cidadania.
A solidariedade está na luta pela
construção de uma nova ordem econômica, com base nos princípios do
cooperativismo, e sem submeter-se à concorrência desleal e selvagem imposta
pela lógica do capitalismo.
A solidariedade está no sangue
dos mártires, semente da nova terra, certeza do novo amanhã, rastro de luz a
dissipar toda a escuridão.
A solidariedade está no
testemunho dos profetas do povo, anunciadores da Boa Nova da paz, da justiça, e
co-construtores de uma sociedade de fato civilizada, ética, fraterna e
inclusiva.
A solidariedade liberta,
transforma, move montanhas, opera milagres, mexe com velhas estruturas,
destrona a estupidez, o egoísmo, o orgulho, o rancor; constrói mundos
solidamente saudáveis, forja espaços de exercício da liberdade, de promoção da
vida, de devoção à dignidade dos seres humanos; de cuidado com tudo o que
existe.
Comecei com John Donne e termino
como Paulo Freire: “A solidariedade tem de ser construída em nossos corpos, em
nossos comportamentos, em nossas convicções”.
(*) Professor José Gonçalves do Nascimento, de Monte Santo (BA), reside em
Osasco (SP) e trabalha na rede municipal de ensino de São Paulo. Estudou na
Universidade Católica de Salvador, no Instituto de Teologia de Ilhéus e na
Pontifícia Universitá Urbaniana di Roma. Autor de diversos textos e livros de
temática social. Este texto foi postado numa rede social (Facebook), de onde
foi retirado na íntegra (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10211104946453252&set=a.2579447499179&type=3&theater).
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