Gordinha virou estrela
Meiga e leal, a gatinha solitária e dona de uma dignidade ímpar se encantou com quase 20 anos de Vida. Por ser muito fofa em sua infância, ganhou esse nome desde tenra idade, mesmo sem necessariamente ser gordinha.
Sexta-feira, dia 7 de novembro, 7 horas e 31 minutos. A mensagem twitteriana do professor Masao Uetanabaro -- "Gordinha virou estrela" -- confirma o que temíamos: a partida de uma felina idosa, leal, inteligente, solitária e dona de uma dignidade de fazer inveja aos mais sisudos seres humanos, que tiveram que aprender a conviver com seus, digamos, semelhantes que teimam em rastejar ante aqueles narcisos e mentecaptos que vivem a oprimir toda a sua própria espécie.
Porque a Vida tem dessas coisas.
Enquanto a civilização dos narcisos expõe sem constrangimento a podridão que os poderosos da espécie humana conseguiram fazer em nome do progresso e da modernidade, seres iluminados de espécies felinas, caninas ou de tantas outras chamadas irracionais nos ensinam magicamente, sem qualquer alarde, lições que nos tornam melhores como seres viventes. Melhores, também, como gente.
Gordinha, que sempre chamei de "Goda" com a maior dignidade, foi uma felina de uma altivez ímpar. Solitária, ela sabia se impor aos demais companheiros de jornada. Nos 17 anos que compartilhou o bom tratamento dispensado pelo pesquisador aposentado, pioneiro nos estudos de espécies silvestres da fauna do Pantanal, essa gatinha se sobressaía entre os mais de 10 felinos pela altivez com que se relacionava com os de sua espécie, com os caninos e, sobretudo, com a tinhosa espécie humana.
Lembro-me de quando Omar e Sofia eram crianças. Diferente dos outros felinos a habitar a espaçosa residência do Professor Masao, Goda rejeitava qualquer tentativa bem intencionada de a carregar ou segui-la. Altiva, impunha-se desde bem novinha (Masao a adotou adulta). Sua fase mais encantadora, embora linda sempre fosse, foi logo depois da pandemia, quando eu a encontrava todas as semanas durante os dois anos que estive na casa do Professor, no decorrer de minha mais recente tentativa de mestrado, em Campo Grande.
Dona de um olhar incisivo, ela sabia lidar com seus iguais ou se desvencilhar de espécies mais afoitas -- fossem crianças, como os meus Meninos, ou caninos e felinos com os que convivia em casa. Em meio a tantos outros felinos também inteligentes e cativantes (cada qual ao seu jeito), Goda sabia demarcar seu espaço, sua vez. Era raríssimo ouvi-la miar. Parecia dominar a telepatia, pois sem emitir qualquer som ou ruído, se fazia entender e até respeitar.
Eu chegava toda terça-feira, após a aula, exatamente na hora do almoço. Ela foi chegando aos poucos a mim, sempre altiva. No começo, como a me testar, pedia ração dentro de casa, o que era inadmissível, de acordo com a educação que Masao lhes deu. Com o tempo, o próprio tutor abriu uma exceção, só para ela, a decana, a mais idosa.
Quando, toda quarta, eu saía "de mala e cuia" da casa do Professor, às vezes de manhã, outras vezes depois do almoço, lá estava ela, a se despedir, da porta da sala, com seu olhar de "até mais". Era uma personalidade! E ai da peralta da Laika, a caçula dos caninos, querer cheirá-la ou segui-la, como todo cãozinho costuma fazer. Só no olhar ela segurava a onda, sem hesitação, e conseguia.
Ao longo daqueles dois anos, não foram poucas as noites em claro na casa do Masao. Ora por conta de alguma apresentação, prova ou pela necessidade de compreender melhor o conteúdo de uma das disciplinas. E quem era a minha Companheirinha de estudos? "Dona" Goda, com a maior dignidade. Lá estava ela, quietinha, deitada em uma das cadeiras ao lado da que eu estava a usar, a me dar todo o apoio para "varar a madrugada" e aproveitar o tempo.
Ela não se deixava carregar, mas com o tempo ela me fez essa concessão. De vez em quando, é claro. Em nosso último encontro, em abril de 2023 (portanto, dois anos e meio atrás), quando me despedi dela com muito carinho, ela deixou que a carregasse e, "olho no olho", lhe dissesse que não a esqueceria, que voltaríamos a nos encontrar, levasse o tempo que fosse.
Não foi bem assim. Embora Masao nos desse notícias da Goda -- algumas vezes com imagens de videoconferência, pois ela era presença ilustre na casa do Professor --, na quarta-feira minha Irmã Fati enviou mensagem dizendo estar triste pelo estado de saúde da Gordinha. Não hesitei, enviei mensagem e pedi ao Masao foto recente da Goda. Junto à foto Masao nos advertiu em mensagem que ela estava em seus derradeiros momentos.
Dois dias depois, na sexta-feira, veio a notícia do desenlace, de que se tornara estrela. Por certo, uma estrela marcante, como em sua existência felina. Agora à noite, tentarei fitar o céu, bastante estrelado, para ver se consigo enviar-lhe mensagem telepática, como as tantas que enviou a todos com os que conviveu durante sua breve, mas intensa, jornada felina.
Saudades da Goda, querida Gordinha, essa estrela que ilumina a Vida.
Ahmad Schabib Hany
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