terça-feira, 27 de abril de 2021

'ENTRE SEM BATER'

“ENTRE SEM BATER”

Apparicio Torelly, o “Barão de Itararé”, fez história quando, em seu cáustico A Manha, fustigou tanto o Estado Novo que os serviçais da polícia política de Felinto Müller decidiram invadir as modestas instalações do precursor de O Pasquim para não só empastelar a gráfica, mas agredir seu fundador e genial diretor. A partir de então, na porta da redação ele pendurou uma placa com a sugestiva recomendação de “entre sem bater”...

Tiranos e arremedos caricatos têm ódio e pânico da inteligência, sobretudo quando ela é acompanhada da sutil criatividade ácida. É o que se costuma chamar de sátira, e que no Brasil, na resistência à ditadura fascista de 1968, passou a ter nome e sobrenome: O Pasquim, da Editora Codecri (genial sigla de Comitê de Defesa do Crioléu, não poderia ter havido um nome mais representativo para um projeto sem igual).

Mas, segundo seus fundadores, O Pasquim nasceu de um tributo a outro gênio da sátira, o imortal Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), criador do memorável Febeapá, Festival de Besteiras que Assola o País, falecido no ano que, para o Jornalista Zuenir Ventura, não acabou e que foi alvo de uma homenagem à altura com o Dez em humor. Todos os participantes desse projeto acabaram integrando a equipe original do mais sarcástico jornal brasileiro.

E se Sérgio Porto era o “Pai” de O Pasquim, o “Avô” não poderia ser outro que o imortal Apparicio Torelly, o autoproclamado “Barão de Itararé” (“em homenagem à batalha que não houve”), genial ironia à tradição de acordos em que as elites se dão bem e à série de títulos nobiliários numa história oficial em que serviçais da corte são agraciados com honrarias mentirosas, à altura de sua mediocridade e servilismo ante os poderosos, tão corruptos quanto os próprios. Antifascista e comunista convicto, Torelly ousou criar uma paródia do principal jornal da capital federal em que ele trabalhava, A Manhã, e assim surge o genial A Manha, com o qual caricaturizou as entranhas do poder nauseabundo dos tempos do Estado Novo. Debochado, depois de agredido, sua redação destruída e a gráfica empastelada por serviçais da polícia política de Felinto Müller, fez uma placa e a pendurou na porta da redação: “Entre sem bater.”

Mudam os cenários, décadas, mandarins de plantão, mas a história do Jornalismo, esse que é autêntico - não dos engravatadinhos e cheios de salamaleque -, permanece na dialética da Vida, com cheiro, não de cavalos, mas do povo, esse herói que tem sob seus pés rachados o motor da História. E com seu sorriso banguela dá gostosas gargalhadas, debochadas, quando consegue enxergar as fétidas nádegas dos tiranetes, selando assim o destino dos canalhas que vivem de sua desgraça...

É verdade que o saudoso semanário, sempre à frente de seu tempo, não só mexia com nossa pauta política, mas com nossos hormônios também: integrado por uma plêiade de musas generosamente libertas do preconceito patriarcal da casa-grande, as parceiras de redação, e de galhofa, como a saudosa e belíssima Leila Diniz, permitiam ao irreverente jornal a desconstrução do falso-moralismo oficioso. Como nenhum outro, O Pasquim abriu literalmente nossas cabeças, nossos horizontes.

Aliás, esse tipo de Jornalismo libertário, aparentemente franco-atirador, tinha balizas bastante sólidas que o tempo constatou serem elaboradas e que fizeram escola, até na à época chamada “grande imprensa” - caso do Folhetim, suplemento semanal da Folha de S.Paulo (sob direção do Jornalista Claudio Abramo e equipe, que contratou ex-membros de O Pasquim, entre eles, Tarso de Castro, Fortuna, Martha Alencar, Paulo Francis e Sérgio Augusto), empresa uma década antes serviçal do regime de 1964, disponibilizando sua logística (sic) e até uma publicação inteira (a finada Folha da Tarde) para a Oban (Operação Bandeirante) e demais organizações terroristas ligadas à linha-dura.

Logística (destacada não por acaso), obviamente, hoje nos remete à inépcia e patacoada do Pantaleão Patoaparte, que em sua santa ignorância comete a proeza de confundir Amazonas com Amapá. Mas nos anos de chumbo a logística, na mão do temido delegado Sérgio Paranhos Fleury, era sinônimo de morte sob tortura. Então, a frota de caminhões “Ford” que o grupo “Folhas” (com “s”, por causa das três edições: matutina, vespertina e noturna) havia recentemente adquirido com recursos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, ainda sem o “Social”, incluído pelo general Ernesto Geisel em 1974, ao tomar posse como o quarto presidente militar) era disponibilizado para as ações paramilitares sob a sugestiva alcunha de “Operação Bandeirante” (Oban).

Na Campo Grande da transição para a Novacap (nas palavras, com uma pitada de ironia, do saudoso Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Júnior), publicações de vanguarda tentaram adaptar o cosmopolitismo dessa escola, mas com resultados frustrantes, como no caso das memoráveis Grifo, da Edimat (Jornalistas que dispensam adjetivos: Mário Ramires, Márcio Licerre e Marília Leite, e equipe, com destaque para a querida Peninha e sua Maria Dadô), Tribuna (do Jornalista e então Deputado Sérgio Cruz, em sociedade com o empresário B. de Paula, com equipe bem enxuta, mas combativa e competente: Edson Moraes, Luiz Gonzaga Bezerra e Kojak, entre outros), o efêmero O Jornal (de um grupo de Jornalistas novos, mas que acabaram cedendo aos anseios políticos de um até então oposicionista que acabou aderindo ao regime, Valdir Cardoso), o combativo Jornal do Povo (do Jornalista e Deputado Sérgio Cruz, em cuja equipe de grandes Jornalistas estavam Edson Moraes, José Eustáquio, Ivan Pacca, Lúcia Santos e Kátia Seleguin, entre outros) e finalmente o Jornal da Cidade (que teve duas fases inovadoras e memoráveis, a primeira com o saudoso Luca Maribondo e a segunda com Edson Moraes e Margarida Galeano e respectivas equipes, com os Jornalistas Luiz Taques e Roberto Chamorro).

Corumbá também conheceu o Jornalismo de vanguarda no período anterior à divisão de Mato Grosso e imediatamente posterior à criação de Mato Grosso do Sul, entre eles o Diário de Corumbá (desde o Jornalista Carlos Paulo Pereira, fundador da segunda fase, a redação contou com expoentes, como Jorcêne José Martinez, Montezuma Cruz, Clarimer M. Navarro, Ronei Nunes Pereira, Adolfo Rondon Gamarra, Carlos Paulo Pereira Jr., Roberto Hernandes, Valdir Nunes Pereira, Adelson M. Navarro e Márcio Nunes Pereira), Folha da Tarde (Renato Báez, Feliciano Batista Neto, Daniel de Almeida Lopes, Luiz Gonzaga Bezerra, Pedro Gonçalves de Queiroz e Edson Moraes), O Tempo (diário fundado em 1976 por Edson Moraes, em sociedade com o tipógrafo Manoel de Oliveira), A Gazeta (diário fundado em 1980 por Márcio Nunes Pereira e Roberto Hernandes, que em sua breve existência tirou o sono das elites locais), Tribuna Livre (semanário fundado pelos Professores Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa, em 1987, dirigido inicialmente por Manoel Vicente e depois por João Carlos Urquidi), Ética (semanário fundado em 1993 por Celso Pereira, de vida efêmera, responsável por uma série de inovações, sobretudo pelas charges de Amilton Evangelista) e Correio de Corumbá (fundado em 1960 por Vicente Bezerra Neto, nas décadas de 1970 e 1980 passou por duas linhas editoriais bem conservadoras com os então vereadores Walmir Coelho e Airton Pereira, mas sob a brava direção de Farid Yunes Solomini retomou sua orientação de vanguarda política com as memoráveis charges do saudoso Augusto Alexandrino dos Santos, o querido “Malah”, que levavam o pânico aos novos inquilinos do poder).

O saudoso Malah contava com orgulho que certa feita os inquilinos do poder tentaram processá-lo por causa de uma charge alusiva ao carnaval que repercutiu muito entre os leitores, mas o processo não prosperou porque simplesmente os acusadores cometeram um engano fatal com o nome do chargista. Não sabiam esses afoitos inquilinos que, desde os mais remotos tempos, Jornalistas e Chargistas de verdade contam com uma inexplicável proteção que os mais antigos atribuíam aos mártires do ofício...

Ahmad Schabib Hany