PADRE ERNESTO: CENTENÁRIO DE
NASCIMENTO
No
Dia do(a) Professor(a) deste 2019, o Padre Ernesto Sassida estaria comemorando
100 anos de nascimento, sempre ao lado das crianças e adolescentes assistidos
pelo seu projeto inovador, a Cidade Dom Bosco, fundada no início da década de
1960. Para homenagear sua memória, a União dos Ex-alunos da Cidade Dom Bosco
realizou um singelo, mas emblemático ato, em torno do jazigo do Cemitério Santa
Cruz, em Corumbá. Precisamente no ano em que o inovador e consolidado projeto educacional
enfrenta a sua primeira ameaça iminente de sobrevivência, decorrente da decisão
unilateral da Secretaria de Estado de Educação de desativar o seu período
noturno, sob alegação de redução de custos e existência de vagas ociosas. Costuma
ser assim: primeiro, desativação do período noturno; no ano seguinte, do
vespertino, e aí, o inevitável, com o matutino, desmonta-se toda uma história
de um projeto de educação interdisciplinar pioneiro, que articulou, já na
década de 1960, inclusão social, saúde, cultura, esportes, formação
profissional, assistência social e educação com amor, muito amor.
Nestes
tempos adversos para a sociedade brasileira -- sobretudo para a educação,
escolhida pelos atuais inquilinos do Planalto como bode expiatório de seu extremismo
político (ou melhor, da ausência de projeto de governo) --, o ato teve uma
simbologia singular, oportuna. Até parece ter sido uma iniciativa do veterano
sacerdote de formação conservadora, mas de uma práxis arrojada e inovadora,
pois, embora sempre dissesse que precisou sair do fascismo de Benito Mussolini,
que na época aviltava a soberania eslovena, e ter combatido o totalitarismo
stalinista já como salesiano brasileiro, as duas décadas derradeiras de sua
Vida foram de profunda convivência com setores da chamada esquerda, como ele
mesmo reconhecia nas inúmeras confidências com pessoas que não pensavam como
ele, mas que com as quais fazia questão trocar experiências, pontos de vista e,
sobretudo, caminhar junto.
O
Padre Ernesto, na verdade, sempre soube conviver na diversidade: a própria
Cidade Dom Bosco é fruto de um profícuo convívio com pessoas de diferentes
concepções filosóficas e denominações religiosas nas décadas de 1950 e 1960.
Ele revelara, quando do processo de constituição do Centro Padre Ernesto de Promoção
Humana e Ambiental (CENPER), que essa iniciativa surgira graças à insistência
de um amigo pouco mais velho que ele, o saudoso senhor João Gonçalves Miguéis,
um dedicado benfeitor que se dedicara desde a juventude aos estudos do legado
de Alan Kardec, o fundador da doutrina espírita. Participante da criação do
CENPER, o senhor João Gonçalves Miguéis, ao confirmar esse fato, lembrou das
dificuldades quando de sua participação, com o Padre Ernesto, da Legião
Mato-grossense dos Amigos da Criança (LEMAC), entidade precursora da que mais
tarde viria a ser a imponente e pioneira Cidade Dom Bosco.
Anos
depois, outro de seus infatigáveis colaboradores era o técnico protético e
pastor evangélico senhor Hernán Guerrero Ledesma, testemunha das grandes
transformações introduzidas ao cotidiano de uma população hospitaleira e
laboriosa, porém vítima da concentração de renda e ausência de políticas
públicas de inclusão, num tempo em que falar dessas coisas era passível de ser
preso, sob a acusação de subversão. Por essa razão o Padre Ernesto utilizava
eufemismos para não melindrar as elites econômicas e políticas, pois foi assim
como conseguiu erigir literalmente um megaprojeto de inclusão social cujo
financiamento e voluntariado vieram da Itália, por meio da Operação Mato
Grosso, nos idos de 1968, o ano que, segundo o Jornalista Zuenir Ventura, não
terminou, e como a história também o confirma.
Até
sírios, libaneses e palestinos (e descendentes) estiveram, lado a lado, como os
senhores Jorge José Katurchi (desde os tempos de seus pais, Dona Amélia Abraham
Katurchi e o senhor José Katurchi), Salim Kassar, Domingos Sahib, Armando
Anache, Salomão Baruki, Fadah Scaff Gattass, Márcio Toufic Baruki, Ale Hamie, Antar
Mohamed e Roberto Mustafa, compartilhando da trajetória dignificante do eternamente
jovem esloveno que o Brasil revelou missionário de transcendência para a educação
salesiana -- aquela do sistema preventivo de Dom Bosco, acrescida dos legados
de Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, que ele conhecia, ainda que
não os exibisse, até por conta do ranço antieducação existente nas camadas mais
aquinhoadas --, sendo o Brasil um celeiro de educadores/as e de pensadores da
educação, mas, paradoxalmente, não consegue implantar uma política de Estado,
consistente, permanente, capaz de atravessar décadas, de modo a poder constatar
a sua efetividade.
Muitos
apoiadores do Padre Ernesto mantiveram, por toda a Vida, discrição e reserva,
razão pela qual, em respeito a esse pacto celebrado entre pessoas que não estão
mais entre nós, devemos respeitar a vontade deles e não declinar os seus nomes.
Mas muitas famílias tradicionais pantaneiras deram sua contribuição no decorrer
das incansáveis atividades desenvolvidas pelo educador salesiano, fosse no
início de sua obra como em seus momentos derradeiros, mas com generosidade e companheirismo.
Quando da constituição do CENPER e do Clube dos Amigos do Padre Ernesto, na
primeira década do século XXI, pudemos testemunhar esse nível de cumplicidade,
a toda prova. Obviamente, dois nomes que não podemos omitir, tamanho o grau de
cooperação desenvolvido: o do ex-deputado e ex-conselheiro do Tribunal de
Contas de Mato Grosso, Amigo de primeira hora, Professor José Ferreira de
Freitas, biógrafo e relator oficial do Padre Ernesto, e o pecuarista Lino
Viegas, responsável de muitas iniciativas solidárias em todos os momentos.
Entre
seus incontáveis colaboradores, de todas as camadas e classes sociais e
nacionalidades, havia também os discretos senhores Assunção do Carmo Vieira,
também fundador da Corporação de Patrulheiros Mirins e da Associação de
Aposentados, Pensionistas e Pessoas Idosas de Corumbá e de Ladário, e Carlos
Urquidi, criador de diversos projetos premiados de inclusão de adolescentes em
situação de vulnerabilidade social e saudoso pai do Professor João Carlos
Urquidi, sempre lembrado ex-diretor da Escola Estadual Júlia Gonçalves
Passarinho. Além das então jovens professoras Camila Rosalina Souza de Pontes e
sua prima, Norma de Souza, pioneiras ainda do tempo do barraco de Dona
Catarina, onde tudo começou, no início da década de 1960. E não esqueçamos das
colaboradoras no setor de projetos, como as então assistentes Margarida Garrido
Duarte, Ana Maria Hellensberg, Nildete Dias e Lindivalda Gonçalves dos Santos,
que o acompanharam ao longo das últimas décadas de sua Vida longeva.
Eis
que o País que ofereceu para o mundo tão generosos pensadores de diferentes
posições ideológicas e com sensibilidade social na área da educação (Anísio
Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, entre tantos outros) tem todas as condições
de atender os anseios sociais de um povo acolhedor e, sobretudo, laborioso para
promover a verdadeira inclusão cidadã por meio da educação. Pois, como sincera
homenagem e reconhecimento, as autoridades façam da educação uma verdadeira
prioridade e façam o possível e o impossível para que as verbas da educação
sejam mantidas nos valores de 2016 para que a Cidade Dom Bosco não vire
saudade, ainda mais no ano do centenário do emblemático educador salesiano que
se incomodou com a abundância natural e a miséria, geradora da exclusão social
injustificável, para realizar uma obra imortal e permanente no coração do Pantanal
e da América do Sul.
O
Padre Ernesto, aliás, ao lado de outros sacerdotes católicos como os saudosos
Padres Emilio Zuza Nena e Antônio Müller e Dom José Alves da Costa (Bispo Diocesano
de Corumbá entre 1991 e 1999, generoso incentivador e coordenador-geral do
Pacto Pela Cidadania e da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela
Vida em Corumbá e Ladário, eternizado em 2012), fizeram a antítese ao mito da
absurda “maldição” do Frei Mariano de Bagnaia, ao constatar que a atuação generosa
de pessoas de fé (independente de qual denominação seguissem) foi responsável pelas
transformações ocorridas nas terras da imorredoura nação Guató. Talvez num dia
não tão distante a população pantaneira possa testemunhar o reconhecimento, tal
como hoje ocorre com a Irmã Dulce -- aliás, Santa Dulce dos Pobres --, de sacerdotes
que ofereceram seus melhores dias para a inclusão social de seus irmãos corumbaenses
e ladarenses, uma causa tão justa e louvável que despertou o reconhecimento de
ultramar.
Ahmad Schabib Hany
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