10 DE OUTUBRO
Ao
longo de nossa existência, há situações, verdadeiras oportunidades, que nos
marcam, ou melhor, nos mudam para sempre. Não por acaso, somos o que a Vida nos
torna. Mesmo nas maiores adversidades, há momentos que nos tornam melhores,
mais dignos, que nos preparam, sobretudo, para estes nada generosos tempos.
Pois
foi num dia 10 de outubro de 1975, uma sexta-feira, horário que seria de aula
do genial Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Jr., logo depois do recreio,
não fosse alguma urgência que o fizera se ausentar da escola, que a Vida me
mostrou algo que me marcou para sempre, e que carrego comigo até hoje.
Um
ano antes, mais precisamente, em 21 de setembro de 1974, o meu Irmão mais velho
se havia eternizado, aos 25 anos e a um ano de concluir sua graduação em
Psicologia, e eu havia sido o primeiro a vê-lo inerte, todo ensanguentado.
Então com quinze anos e o tendo como meu principal “guru”, havia permanecido
perplexo, “no piloto automático”, todo aquele período.
Mais
que aptidão, o estudo se tornou refúgio, uma terapia silenciosa e solitária,
além da Amizade (com letra maiúscula) com os colegas de escola. Nessa época,
depois do trabalho em casa (modesta hospedaria para estrangeiros), era a escola
nosso espaço de interação e troca de ideias, experiências, angústias e
projetos. Amigos queridos como João de Souza Álvarez, Juvenal Ávila de
Oliveira, Benedito Jesus Silva da Cruz e a sempre discreta e atenta Soely
Ivaquia de Oliveira (uma das poucas meninas, talvez por timidez ou porque os tempos
eram assim), foram fundamentais, determinantes.
Foi,
aliás, num desses momentos em que nasceu o projeto de jornal estudantil (O Clarim Estudantil) que mudou nossa
concepção de mundo e de sociedade, com o incentivo do querido Professor
Otaviano, a ajuda na produção gráfica do querido Professor Augusto Alexandrino
dos Santos (o saudoso Malah) e, em casa, de meu saudoso e querido Pai, que,
ainda mais depois da ausência definitiva de meu Irmão, passou a se dedicar com
mais ênfase às crônicas e a artigos mais reflexivos sobre a existência humana.
Fruto
de um processo relativamente amplo de participação, na medida em que isso era
permitido por um controle discreto mas efetivo (afinal, o país vivia um período
de repressão ao movimento estudantil, e jornal interescolar, como proposto por
nosso grupo, era motivo de preocupação para os gestores escolares e, sobretudo,
para a sociedade local), os dois primeiros nomes do jornal foram, de imediato,
recusados, pois eram Jornalivre e A Voz da Razão, por serem muito
pretensiosos e, também, porque o
primeiro continha o termo “livre” e o segundo trazia a palavra “Voz”, pois logo
no início daquele ano o jornal do velho PCB, “Voz Operária”, havia sido tirado
de circulação, com a prisão de seu corpo editorial e o empastelamento de sua
gráfica).
A
verdade é que os anos eram de chumbo. Nesse período de trevas, o Jornalista
Vladimir Herzog e o sindicalista Manuel Fiel Filho estavam às voltas de serem
mortos, sob tortura, dentro dos porões da ditadura, e os jornais já começavam a
sair do silêncio imposto pela censura oficial. Jornais que em 1968 (início da
fase mais sanguinária do regime instalado em abril de 1964) participaram de
operações criminosas, como a nefasta Operação Bandeirantes (OBAN), entre eles o
Grupo Folhas, de Octavio Frias de Oliveira, passaram a escancarar os fétidos e
despudorados bastidores da política suja, agora sob a direção de pessoas
iluminadas, entre elas os saudosos Jornalistas Claudio Abramo, Alberto Dines,
Newton Carlos, Newton Rodrigues, Perseu Abramo, Tarso de Castro, Plínio Marcos,
Getulio Bittencourt, Oswaldo Peralva, José Reis e Sebastião Nery.
Em
meio a esse cenário lúgubre e de desesperança, como por encanto surge uma luz
no horizonte. A ausência lamentada do Professor Otaviano propiciara um momento,
uma centelha de esperança, no duro cotidiano de um jovem que, a partir de
então, despertou para o outro, o coletivo, abrindo mão de mesquinharias
próprias de uma sociedade de consumo, em que o que mais se consome é seu
semelhante.
Foi
abrindo mão de grandes anseios que aprendemos a praticar a generosidade, sem
autoflagelação. Não foi fácil, é verdade, mas foi o possível. Uma opção de
vida. Daí para empreender projetos coletivos foi um pulo: enquanto a maioria
dos colegas partia para as conquistas pessoais, nosso pequeno grupo se
embrenhava em solidárias experiências que propiciaram um amadurecimento
oportuno.
Quarenta
e quatro anos passados, ao viver e conviver em um contexto bastante adverso, dá
a curiosa sensação de haver enxugado gelo. Demos nossos melhores anos de nossas
vidas, com a melhor das intenções, para ver triunfar o de pior da barbárie, de
vândalos, da perversidade humana, rasteira e recalcada. Mas se não tivéssemos
ousado tentar, não teríamos sequer ajudado a transformar, ainda que
milimetricamente, uma realidade que, enquanto durou, permitiu a amplas camadas
populares ter acesso àquilo que era chamado de utopia, mas que pudemos provar
que pôde ter sido realidade.
Além
disso, ao sabermos da vitalidade e lucidez de nossa maior cúmplice, porque
força-motriz de sua gênese, no alto de sua idade madura com o mesmo poder de
sedução e entrega, temos, sim, plena convicção de que tudo valeu a pena, pois a
causa não foi pequena.
Ahmad Schabib Hany
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