Até sempre, Seu Ariodê!
Ariodê
Martins Navarro. Estatura física comparável à própria estatura moral: homem
sincero e solidamente convencido, como católico praticante, de que a Vida, a
existência digna, é o maior patrimônio que todo ser humano tem, ao lado de sua
dignidade. Até porque tais condições, ou atributos, não são passíveis de serem
encontrados em gôndolas de supermercados ou prateleiras de estandes de feiras
por aí...
Conheci
Seu Ariodê, como era afetuosamente chamado entre os resistentes membros dos
conselhos de políticas públicas, em 2002, segundo ano do penúltimo mandato do
prefeito José Francisco Mendes Sampaio, também já eternizado. Então, já
sexagenário, ele era “calouro” do Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Ladário,
representando a Pastoral da Criança, em substituição à sempre lembrada Dona
Úrsula, esposa de um alto oficial de Marinha que, ao acompanhar o cônjuge, precisou
renunciar ao cargo.
Convidado
para participar de uma reunião de urgência dos membros não governamentais
(usuários do SUS e trabalhadores em saúde) do CMS de Ladário na sede provisória
do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário
(Forumcorlad), então em dependências do Colégio São Miguel, das Irmãs
Franciscanas, encontro um senhor altivo, seguro de si mas discreto, com voz de
locutor de FM e de uma paciência invejável. Aposentado da Marinha, Seu Ariodê
era a prova inequívoca de que, sobretudo nestes tempos de intolerância
explícita, um cristão consciente é capaz de mover montanhas sem procurar
holofotes, sem o exibicionismo narcisista hoje reinante.
Admirável
em suas atitudes, sempre imbuído dos melhores propósitos, sou testemunha da
retidão de caráter e generosidade a toda prova. Essa primeira reunião, ainda
como candidato a substituto na vaga de Dona Úrsula, foi uma sinalização da
grande “aquisição” que a esposa de oficial de Marinha obteve, talvez não
involuntariamente, para o controle social das políticas públicas de Ladário. Entrou
como suplente, mas antes do final do mandato de conselheiro já era titular. Não
demorou muito para ser o mais votado dos conselheiros no mandato seguinte e ter
sido eleito por unanimidade para presidente do conselho no período posterior.
Casado
com Dona Margareth Urt Navarro, grande Companheira de Vida, Seu Ariodê era
orgulhoso de sua Família. Mas muito discreto. Não associava seu nome e sua
atuação ao prestígio familiar. Ele era irmão do senhor Adelson Martins Navarro,
que com a renomada Jornalista Clarimer Navarro, na década de 1970, integrou a
célebre redação do glorioso Diário de
Corumbá, então sob a direção do saudoso Jornalista Carlos Paulo Pereira
Júnior. Cunhado do querido Amigo, Jornalista, Professor de História e mestrando
Nelson Urt, reconhecido repórter e redator de publicações emblemáticas como a Placar, Diário Popular e O Estado de
S. Paulo. Pai realizado de filhos que o orgulhavam, entre eles dois
jornalistas consagrados, Andersen Navarro e André Navarro, por décadas
repórteres e âncoras das diferentes emissoras da Rede Mato-grossense de
Televisão e de diversas emissoras de rádio da região.
Na
função de presidente do CMS, foi responsável pela adoção de uma rotina para
aquele lócus, resultado de suas pesquisas e demandas em favor da emancipação
dos conselhos de políticas públicas dos respectivos gestores. Não demorou muito
para, com base em um TAC (termo de ajustamento de conduta do Ministério Público
do Estado de Mato Grosso do Sul) proposto pelos também sempre lembrados Doutora
Patrícia Cristina Peres da Silva e Doutor Ricardo Mello Alves, então sucessivos
titulares da Quinta Promotoria da Comarca de Corumbá, obtivesse uma série de
garantias para o funcionamento pleno daquele lócus, inclusive a sonhada sede
para o funcionamento pleno dos conselhos.
Essa
habilidade (e ao mesmo tempo coragem e determinação) fez com que, no interregno
de dois anos entre cada segundo mandato no CMS de Ladário, fosse candidato a
membro de outro conselho, como os de Assistência Social, dos Direitos da
Criança e do Adolescente e da Cidade, sempre em sua querida Ladário. Chegou a
ser presidente do CMDCA (dos Direitos da Criança e do Adolescente), com total
desenvoltura, pois estudava muito e procurava se informar em boas fontes, fosse
na região ou Campo Grande ou Brasília. Aprendeu a lidar com destreza com o seu
computador para não ficar para trás nas questões de que lidava, qualquer que
fosse o conselho.
Quando,
por ingerência política, foi tirado de uma entidade tradicional, na tentativa
de silenciá-lo, tivemos a honra de vê-lo representar a aguerrida OCCA
(Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente), da qual foi membro coordenador
enquanto a entidade esteve em atividade, ao lado outros ladarenses incansáveis,
como a também saudosa Helô (Heloísa Helena da Costa Urt) e o ex-prefeito
Aurélio Quintiliano da Cruz, além dos aguerridos psicólogos Tânia Nozieres de
Santana e Aguinaldo Rodrigues, que representavam com muita dignidade o
Sindicato de Psicólogos de Mato Grosso do Sul.
Embora
ambos tivessem formação militar, e precisamente da Marinha, Seu Ariodê e o
também saudoso técnico de enfermagem (depois bacharel em Direito) José Batista
de Pontes, o sempre lembrado Seu Pontes, tinham entendimentos diferentes no
encaminhamento das questões de conselho (um em Ladário, outro em Corumbá, é
claro). E digo isso como homenagem à autonomia e dignidade deles, pois, cada um
procedia de acordo com as suas convicções e seus entendimentos, mas sempre à
luz da lei e do interesse coletivo. Antes de tomar alguma decisão, Seu Ariodê
conversava com os seus pares e ex-membros de conselhos, tanto em Ladário como
em Corumbá, para poder fundamentar a decisão que devesse, com sabedoria e
humildade.
Precisamente
em Ladário, onde o Forumcorlad nasceu em 1993 como resposta eloqüente da cidadania
ao processo de efetivação das leis pós-Constituinte, graças à iniciativa de
Dona Elígia Assad, Dona Vera de Souza e Dona Imaculada da Silva, três
incansáveis integrantes da Ação da Cidadania (à época funcionárias da extinta
Enersul, ainda estatal, e membros da comunidade católica de Ladário) e ao apoio
de Dom José Alves da Costa (saudoso Bispo Diocesano e coordenador geral da Ação
da Cidadania e do Pacto pela Cidadania), do Padre Pasquale Forin (Vigário-geral
e coordenador adjunto da Ação da Cidadania e do Pacto pela Cidadania) e do
Padre Júlio Mônaco (pároco de Nossa Senhora dos Remédios e depois capelão da
Marinha), essas experiência serviram de lastro legítimo e sólido para que
fossem irradiadas pelo Brasil afora, como laboratório do Estado de Direito, que
pode estar abalado, mas não sucumbirá aos desvarios destes momentos de apagão
institucional.
Hoje
isso parece soar como uma ficção, tamanha a intolerância reinante, em que
iluminados surgidos do nada, aferrados a um fundamentalismo torpe, se pretendem
os descobridores ou inventores da roda, da democracia e da verdade. Neste
triste retrocesso que a História haverá de elucidar a seu tempo, temos a
generosa e impoluta trajetória exemplar, mas despretensiosa, de homens e
mulheres íntegros, como o querido e agora saudoso Seu Ariodê, protagonistas de
um tempo em que cidadania e solidariedade norteavam as ações pioneiras dos que
construíram a base do controle social no coração do Pantanal e da América do
Sul.
Não
posso esquecer do sucesso que fez ao participar de uma edição do programa
semanal Cidadania em Ação, da OCCA,
na pioneira FM Pantanal, também conhecida como Rádio Comunitária. Durante o
tempo do programa, não só pelo vozeirão peculiar (tão grave quanto o do saudoso
Hélio Ribeiro, da também saudosa Rádio Bandeirantes dos idos de 1970), mas
pelas reflexões iluminadas de sua fala, diversos ouvintes ligavam para a
emissora ou para nossos celulares para pedir informações de nosso ilustre e
agora saudoso entrevistado. Tentamos novas entrevistas com ele, mas por conta
da saúde (e, sobretudo, seu comedimento singular) não mais retornou ao estúdio
da emissora.
A
propósito, nada mais justo que a atual Casa dos Conselhos levasse o seu nome.
Em outras palavras, que seja instituída a Casa dos Conselhos Ariodê Martins
Navarro. Homenagem justa e oportuna, até para ficar na História de Ladário e da
Cidadania. Afinal, qualquer pessoa com mais de 25 anos em Ladário (e Corumbá)
sabe que ele é parte da história da efetivação do texto constitucional no
cotidiano das pessoas simples e humildes de nosso torrão. Enfrentando incompreensões
e tiranetes de plantão e até tirando dinheiro do próprio bolso, quando há
detentores de cargos públicos, eletivos ou comissionados, auferindo dividendos
de forma no mínimo questionável, como a crônica político-policial dos últimos
anos tem constatado.
Com
profundo pesar nos despedimos com um até sempre deste querido Companheiro de
Cidadania, que generosamente ofereceu importantes momentos de sua Vida para o
bem-comum, para a qualidade de vida de seus semelhantes e, sobretudo, para a
concretização das conquistas da Constituição Cidadã. Humilde e discreto, firme
e valoroso, foi um verdadeiro Mestre de Cidadania e verdadeiro Amigo que
levaremos no peito para sempre, e que, não por acaso, nos deu a honra de ser,
com Dona Margareth, Padrinho de casamento de minha Companheira, e que seu
exemplo marcante de Pai, Esposo e Cidadão permanecerá para sempre em nossas
memórias e corações.
“Que
os sonhos que nos acalentaram renasçam em outros corações...” (Charles Chaplin)
Ahmad Schabib Hany
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