sábado, 21 de setembro de 2019

"A INSÓLITA DAMA DO PACAEMBU" (Homenagem a Irede A. Cardoso)

 “A INSÓLITA DAMA DO PACAEMBU”

Há textos que ficam gravados em nosso âmago para toda a Vida. “A insólita dama do Pacaembu”, da saudosa e querida (embora, lamentavelmente, não a tenha conhecido pessoalmente) Jornalista Irede A. Cardoso, da maneira mais sensível e profunda, nos apresenta uma belíssima senhorinha que, depois de ter servido a tradicionais famílias de quatrocentões paulistanos, vira moradora de rua, sem perder o afeto pelos, digamos, filhos de criação e todo o glamour do universo em que estava inserida, ainda que como serviçal descartável.

Publicada em 1982 (acredito que no mês de maio), a li, reli e “treli” como se eu mesmo a tivesse escrito. Aí decidi mostrá-la a colegas de curso para incluí-la como parte de um trabalho em grupo da disciplina de Antropologia Cultural I, ministrada pela querida Professora Iara Penteado, da Fadafi (Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras), da Fucmt (Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso). Para dar-lhe o ambiente que a temática exigia, escolhemos os versos imortais do saudoso compositor argentino Horacio Guarany eternizados na potente voz da imortal Mercedes Sosa, “Si se calla el cantor”: “Qué ha de ser la vida / si el que canta / no levanta su voz en las tribunas / por el que sufre, / por el que no hay ninguna razón / que lo condene a andar sin manta.”

Irede Cardoso fez parte de uma geração de Jornalistas que, mais que informar ou noticiar com talento, estilo e maestria, abriram horizontes e lapidaram almas com generosidade e originalidade, ainda nos tenebrosos anos de chumbo, e sem perder a ternura e a fé na humanidade. Então gente como Joyce Plagiasselman e assemelhados já existiam, mas só ganhavam notoriedade nas redações dos jornalões e revistonas com o ajutório de seus proprietários, que desde sempre foram coniventes com as ações de delinquentes dos regimes de exceção. Basta nos lembrarmos de Alexandre Garcia e Bóris Casoy, que para se tornarem “celebridades” tiveram que prestar seus inconfessáveis serviços à ditadura para depois ganhar o imprescindível “empurrão” da Rede Gloebbels de Conspiração ou de Senor “Sílvio Santos” Abravanel, que ganhou de presente a concessão que pertencera à Rede Tupi antes do fim do nefasto regime de 1964, mesmo sendo sócio da Record, o que a legislação proibia.

Mas esqueçamos desse (i)mundo fétido e podre, e retornemos ao ambiente saudável da Vida dos seres iluminados que fizeram história registrando ou analisando fatos que poderiam ter passado despercebidos não fosse o seu faro aguçado de repórteres e de cronistas de seu tempo.

É claro que há outras memoráveis crônicas dignas de citação, como a “Leila Roque Diniz”, em que o querido e saudoso Jornalista Tarso de Castro homenageia a inimitável, bela e irreverente Leila Diniz, a propósito dos cinco anos de sua eternização, quando ela, a primeira nudez de grávida a ilustrar capa de revista (e logo na imortal “Realidade”, fundada e dirigida inicialmente por Luis Carta, irmão de Mino Carta), retornava de uma premiação num festival de cinema em Nova Deli com saudades de sua rebenta e o avião da Varig em que viajava foi a pique antes de chegar ao Rio de Janeiro. Tarso de Castro, que privara da amizade da eterna musa do “Pasquim”, quando escreveu essa crônica, em 1977, estava, ao lado de Fortuna e Nelson Merlin, na “Folha de S.Paulo”, dirigindo a equipe de “Folhetim” e, simultaneamente, editando a “Ilustrada” durante a semana.

No tempo em que a revista “Veja” era dirigida por seu fundador e primeiro diretor, o talentoso e incansável Jornalista Mino Carta, reserva moral do Jornalismo contemporâneo, há uma centena de memoráveis edições de “Carta ao Leitor” assinada por ele (M. C.), entre 1968 e 1975. Inesquecível, no entanto, é a edição dedicada à apresentação da reportagem sobre a demissão do então ministro da Indústria e Comércio do general-presidente Ernesto Geisel, o grande brasileiro Severo Fagundes Gomes (eternizado ao lado de Ulysses Guimarães e suas respectivas esposas, semanas depois do impeachment de Fernando Collor, em outubro de 1992). Severo Gomes, segundo a inesquecível reportagem de “Veja”, fora demitido por não se submeter à pressão do empresariado antinacional que queria ver a CICA (Companhia Industrial de Conservas Alimentícias) entregue ao controle acionário de uma multinacional, como acabou acontecendo nos tempos de FHC. Ao não autorizar a entrega da emblemática empresa nacional, perdeu o cargo e o papel de escudeiro da indústria nacional, assediada pelo capital internacional desde os tempos do Coronel Belmiro Gouvêa, o pioneiro da indústria têxtil destruído, morto e difamado por ter ousado afrontar a multinacional britânica de algodão no início do século XX.

Em Corumbá, o então jovem repórter Edson Moraes (que assinava Edson de Moraes na época da saudosa “Folha da Tarde” dirigida por Daniel de Almeida Lopes e em cuja equipe trabalhava o saudoso Amigo Jornalista Luiz Gonzaga Bezerra, guru de muitos Jornalistas com letra maiúscula, entre os quais o Amigo Luiz Taques) tinha uma coluna chamada “No Bolso do Repórter”, em que esse querido Amigo, nos anos de chumbo, driblava a censura e antecipava com maestria fatos que viriam a assombrar o atento leitor dos jornais da década de 1970. Contemporâneo do igualmente querido Amigo Juvenal Ávila de Oliveira e do saudoso e querido Amigo Augusto Alexandrino dos Santos “Malah”, antes de se dedicar ao Jornalismo, foi radialista de projeção e fino trato, a ponto de veteranos da radiofonia do estado terem desaprovado seu abandono dos microfones ao optar pelo texto impresso.

Edson Moraes conquistou os leitores não apenas pelo estilo irretocável de seu texto, mas pela coragem e talento jornalístico. Quando um renomado policial civil atirou e matou, em plena luz do dia, um conhecido adolescente envolvido em pequenos furtos sem qualquer poder ofensivo, esse grande Jornalista deu uma verdadeira aula de Jornalismo ao desvendar, sem adjetivos ou sensacionalismo, os meandros do episódio. Ganhou o reconhecimento dos leitores e o respeito de seus colegas veteranos. Mas não demorou muito para ter que, contra a sua vontade, deixar Corumbá. Já dono de seu próprio diário, o inconfundível “O Tempo”, em sociedade com o saudoso tipógrafo Manoel de Oliveira, desvendou uma série de histórias mal contadas, cujo ápice foi a descoberta de um cemitério clandestino nas imediações da estação ferroviária de Urucum, no qual estavam sepultados jovens desaparecidos em circunstâncias nunca elucidadas. Resultado: teve que se desfazer da sociedade, dos equipamentos do jornal e sair às pressas para não ser o próximo da lista...

O saudoso e querido Amigo Jornalista Márcio Nunes Pereira, filho caçula do Jornalista Carlos Paulo Pereira (fundador do “Diário de Corumbá”), também coleciona crônicas, reportagens e manchetes antológicas que entraram para a história do Jornalismo. Não por acaso colecionou, também, o maior número de processos movidos por um único prefeito no exercício do cargo, 23 processos, ganhos todos pela competência jurídica do igualmente saudoso Advogado (com letra maiúscula) Joilce Viegas de Araújo. Ele é responsável, entre tantas denúncias, pela revelação de um estoque de diversas toneladas de feijão doado ao município pela CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento), durante o governo Itamar Franco, que acabou apodrecendo por estar mal conservado e ter permanecido muito mais tempo que o devido.

A mais emblemática de toda a produção jornalística de Márcio Nunes Pereira, no entanto, é a manchete com a qual o saudoso diretor do “Diário de Corumbá” estampou o final de uma administração municipal inúmeras vezes denunciada -- “Prefeito deixa a vida pública para entrar na privada” --, que muitos contemporâneos consideram uma profecia, pois desde então o referido político não mais teve sucesso em sua vida pública.

Com todo o respeito que merecem todas e, sobretudo, as mais novas gerações de Jornalistas com letra maiúscula, mas, seja em reportagens, em crônicas ou em ensaios jornalísticos, gerações de grandes talentos prepararam um repositório com o qual os atuais trabalhadores da imprensa dignos desse ofício precisam se encontrar, reconhecer-se e empreender novas pugnas.

Ahmad Schabib Hany

domingo, 15 de setembro de 2019

ATÉ SEMPRE, SEU ARIODÊ!


Até sempre, Seu Ariodê!

Ariodê Martins Navarro. Estatura física comparável à própria estatura moral: homem sincero e solidamente convencido, como católico praticante, de que a Vida, a existência digna, é o maior patrimônio que todo ser humano tem, ao lado de sua dignidade. Até porque tais condições, ou atributos, não são passíveis de serem encontrados em gôndolas de supermercados ou prateleiras de estandes de feiras por aí...

Conheci Seu Ariodê, como era afetuosamente chamado entre os resistentes membros dos conselhos de políticas públicas, em 2002, segundo ano do penúltimo mandato do prefeito José Francisco Mendes Sampaio, também já eternizado. Então, já sexagenário, ele era “calouro” do Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Ladário, representando a Pastoral da Criança, em substituição à sempre lembrada Dona Úrsula, esposa de um alto oficial de Marinha que, ao acompanhar o cônjuge, precisou renunciar ao cargo.

Convidado para participar de uma reunião de urgência dos membros não governamentais (usuários do SUS e trabalhadores em saúde) do CMS de Ladário na sede provisória do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (Forumcorlad), então em dependências do Colégio São Miguel, das Irmãs Franciscanas, encontro um senhor altivo, seguro de si mas discreto, com voz de locutor de FM e de uma paciência invejável. Aposentado da Marinha, Seu Ariodê era a prova inequívoca de que, sobretudo nestes tempos de intolerância explícita, um cristão consciente é capaz de mover montanhas sem procurar holofotes, sem o exibicionismo narcisista hoje reinante.

Admirável em suas atitudes, sempre imbuído dos melhores propósitos, sou testemunha da retidão de caráter e generosidade a toda prova. Essa primeira reunião, ainda como candidato a substituto na vaga de Dona Úrsula, foi uma sinalização da grande “aquisição” que a esposa de oficial de Marinha obteve, talvez não involuntariamente, para o controle social das políticas públicas de Ladário. Entrou como suplente, mas antes do final do mandato de conselheiro já era titular. Não demorou muito para ser o mais votado dos conselheiros no mandato seguinte e ter sido eleito por unanimidade para presidente do conselho no período posterior.

Casado com Dona Margareth Urt Navarro, grande Companheira de Vida, Seu Ariodê era orgulhoso de sua Família. Mas muito discreto. Não associava seu nome e sua atuação ao prestígio familiar. Ele era irmão do senhor Adelson Martins Navarro, que com a renomada Jornalista Clarimer Navarro, na década de 1970, integrou a célebre redação do glorioso Diário de Corumbá, então sob a direção do saudoso Jornalista Carlos Paulo Pereira Júnior. Cunhado do querido Amigo, Jornalista, Professor de História e mestrando Nelson Urt, reconhecido repórter e redator de publicações emblemáticas como a Placar, Diário Popular e O Estado de S. Paulo. Pai realizado de filhos que o orgulhavam, entre eles dois jornalistas consagrados, Andersen Navarro e André Navarro, por décadas repórteres e âncoras das diferentes emissoras da Rede Mato-grossense de Televisão e de diversas emissoras de rádio da região.

Na função de presidente do CMS, foi responsável pela adoção de uma rotina para aquele lócus, resultado de suas pesquisas e demandas em favor da emancipação dos conselhos de políticas públicas dos respectivos gestores. Não demorou muito para, com base em um TAC (termo de ajustamento de conduta do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul) proposto pelos também sempre lembrados Doutora Patrícia Cristina Peres da Silva e Doutor Ricardo Mello Alves, então sucessivos titulares da Quinta Promotoria da Comarca de Corumbá, obtivesse uma série de garantias para o funcionamento pleno daquele lócus, inclusive a sonhada sede para o funcionamento pleno dos conselhos.

Essa habilidade (e ao mesmo tempo coragem e determinação) fez com que, no interregno de dois anos entre cada segundo mandato no CMS de Ladário, fosse candidato a membro de outro conselho, como os de Assistência Social, dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Cidade, sempre em sua querida Ladário. Chegou a ser presidente do CMDCA (dos Direitos da Criança e do Adolescente), com total desenvoltura, pois estudava muito e procurava se informar em boas fontes, fosse na região ou Campo Grande ou Brasília. Aprendeu a lidar com destreza com o seu computador para não ficar para trás nas questões de que lidava, qualquer que fosse o conselho.

Quando, por ingerência política, foi tirado de uma entidade tradicional, na tentativa de silenciá-lo, tivemos a honra de vê-lo representar a aguerrida OCCA (Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente), da qual foi membro coordenador enquanto a entidade esteve em atividade, ao lado outros ladarenses incansáveis, como a também saudosa Helô (Heloísa Helena da Costa Urt) e o ex-prefeito Aurélio Quintiliano da Cruz, além dos aguerridos psicólogos Tânia Nozieres de Santana e Aguinaldo Rodrigues, que representavam com muita dignidade o Sindicato de Psicólogos de Mato Grosso do Sul.

Embora ambos tivessem formação militar, e precisamente da Marinha, Seu Ariodê e o também saudoso técnico de enfermagem (depois bacharel em Direito) José Batista de Pontes, o sempre lembrado Seu Pontes, tinham entendimentos diferentes no encaminhamento das questões de conselho (um em Ladário, outro em Corumbá, é claro). E digo isso como homenagem à autonomia e dignidade deles, pois, cada um procedia de acordo com as suas convicções e seus entendimentos, mas sempre à luz da lei e do interesse coletivo. Antes de tomar alguma decisão, Seu Ariodê conversava com os seus pares e ex-membros de conselhos, tanto em Ladário como em Corumbá, para poder fundamentar a decisão que devesse, com sabedoria e humildade.

Precisamente em Ladário, onde o Forumcorlad nasceu em 1993 como resposta eloqüente da cidadania ao processo de efetivação das leis pós-Constituinte, graças à iniciativa de Dona Elígia Assad, Dona Vera de Souza e Dona Imaculada da Silva, três incansáveis integrantes da Ação da Cidadania (à época funcionárias da extinta Enersul, ainda estatal, e membros da comunidade católica de Ladário) e ao apoio de Dom José Alves da Costa (saudoso Bispo Diocesano e coordenador geral da Ação da Cidadania e do Pacto pela Cidadania), do Padre Pasquale Forin (Vigário-geral e coordenador adjunto da Ação da Cidadania e do Pacto pela Cidadania) e do Padre Júlio Mônaco (pároco de Nossa Senhora dos Remédios e depois capelão da Marinha), essas experiência serviram de lastro legítimo e sólido para que fossem irradiadas pelo Brasil afora, como laboratório do Estado de Direito, que pode estar abalado, mas não sucumbirá aos desvarios destes momentos de apagão institucional.

Hoje isso parece soar como uma ficção, tamanha a intolerância reinante, em que iluminados surgidos do nada, aferrados a um fundamentalismo torpe, se pretendem os descobridores ou inventores da roda, da democracia e da verdade. Neste triste retrocesso que a História haverá de elucidar a seu tempo, temos a generosa e impoluta trajetória exemplar, mas despretensiosa, de homens e mulheres íntegros, como o querido e agora saudoso Seu Ariodê, protagonistas de um tempo em que cidadania e solidariedade norteavam as ações pioneiras dos que construíram a base do controle social no coração do Pantanal e da América do Sul.

Não posso esquecer do sucesso que fez ao participar de uma edição do programa semanal Cidadania em Ação, da OCCA, na pioneira FM Pantanal, também conhecida como Rádio Comunitária. Durante o tempo do programa, não só pelo vozeirão peculiar (tão grave quanto o do saudoso Hélio Ribeiro, da também saudosa Rádio Bandeirantes dos idos de 1970), mas pelas reflexões iluminadas de sua fala, diversos ouvintes ligavam para a emissora ou para nossos celulares para pedir informações de nosso ilustre e agora saudoso entrevistado. Tentamos novas entrevistas com ele, mas por conta da saúde (e, sobretudo, seu comedimento singular) não mais retornou ao estúdio da emissora.

A propósito, nada mais justo que a atual Casa dos Conselhos levasse o seu nome. Em outras palavras, que seja instituída a Casa dos Conselhos Ariodê Martins Navarro. Homenagem justa e oportuna, até para ficar na História de Ladário e da Cidadania. Afinal, qualquer pessoa com mais de 25 anos em Ladário (e Corumbá) sabe que ele é parte da história da efetivação do texto constitucional no cotidiano das pessoas simples e humildes de nosso torrão. Enfrentando incompreensões e tiranetes de plantão e até tirando dinheiro do próprio bolso, quando há detentores de cargos públicos, eletivos ou comissionados, auferindo dividendos de forma no mínimo questionável, como a crônica político-policial dos últimos anos tem constatado.

Com profundo pesar nos despedimos com um até sempre deste querido Companheiro de Cidadania, que generosamente ofereceu importantes momentos de sua Vida para o bem-comum, para a qualidade de vida de seus semelhantes e, sobretudo, para a concretização das conquistas da Constituição Cidadã. Humilde e discreto, firme e valoroso, foi um verdadeiro Mestre de Cidadania e verdadeiro Amigo que levaremos no peito para sempre, e que, não por acaso, nos deu a honra de ser, com Dona Margareth, Padrinho de casamento de minha Companheira, e que seu exemplo marcante de Pai, Esposo e Cidadão permanecerá para sempre em nossas memórias e corações.

“Que os sonhos que nos acalentaram renasçam em outros corações...” (Charles Chaplin)

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

MÃE NINGUÉM ENGANA (Luiz Taques)

                                           (Ilustração: Jacinto)

Mãe ninguém engana
Mulher e marido buscaram por justiça em toda parte
           Por Luiz Taques
Se um filho é morto, a sua existência se arrasta, dali por diante.
Assim me sentia, e, mal conseguindo me manter de pé, fui ao general, pedir que investigasse a misteriosa morte do meu primogênito.
Somente ele, detentor da mais alta patente do exército, na época do regime militar, poderia, numa cidade fronteiriça obediente aos quartéis, tomar providência eficaz, com a finalidade de elucidar aquele crime, já que a minha alma e o meu coração de mãe sustentavam “Não, não, não, general, meu filho não se matou, não”.
Ele não deu um tiro na cabeça, difícil de acreditar que atentaria contra a própria vida, toda a vizinhança sabia disso, apesar dessa sua interrogação contrariada no olhar, ao virar-se a todo instante pro meu marido, sentado ao meu lado, numa mudez consentida, porém, não pego de surpresa pelo meu desabafo.
Garanto-lhe, general, que, nem de longe, o meu marido pensa em me interromper.
Em casa, com outras palavras, e imbuída de mais ênfase, eu havia lhe dito, caso precisasse “Viraria cobra, rastejaria pelo chão de delegacia e de fórum, para esclarecer o que aconteceu ao meu menino”.
General, ele tinha apenas vinte e cinco anos, era bem relacionado, distribuía aos amigos seu sorriso largo e sincero, cursava Psicologia – perdoe-me a modéstia, tirava notas altas, de deixar os oito irmãos e professores orgulhosos.
Idealista e criativo, feito todo jovem da sua idade, prontificou-se ao imigrante italiano, projetista de trator que trafegaria sobre as águas dos pântanos, em ser o seu auxiliar, na oficina, então, o que quero dizer ao senhor, ao lhe contar todos esses fatos, é que nenhuma pessoa, em sã consciência e com toda essa garra e disposição de viver e de contribuir com o progresso da sua comunidade, arquitetaria a hipótese absurda de interromper uma trajetória promissora, horizonte novo à sua frente, ainda mais de maneira cruel, na pousada onde residia com a família, conforme matéria divulgada pela polícia e reproduzida por rádios e pelos jornais “Estudante universitário se fuzila em casa”.
Pode alguém fuzilar a si mesmo, general?
Além do mais, as notícias na imprensa causaram diversos transtornos a nós, pois informavam que não podíamos mandar celebrar sequer missa de sétimo dia – os suicidas, seguindo orientação do Vaticano, não teriam o privilégio de alcançar a bênção póstuma católica.
Confiscados pelos agentes em vinte e um de setembro, portanto, na mesma tarde daquele sombrio dia, não sabemos que fim deram ao revólver “Smith & Wesson” calibre 32 e ao relógio “Mido”, que estavam no quarto do meu filho, general, e nunca foram devolvidos à família ou periciados, tampouco, soubemos da realização do exame de balística na arma e qual foi a causa da morte.
Queremos saber: ele morreu em decorrência do certeiro ferimento a bala?
O corpo foi encontrado pelo mano mais novo, estava com o rosto coberto de sangue, estirado entre duas camas de solteiro, e, aí, com base apenas no depoimento de um adolescente de quinze anos, apavorado, sob forte impacto emocional, e, mais grave, desacompanhado de advogado ou de algum adulto, serviu de prova derradeira para direcionar e concluir de forma suspeita e prematura o inquérito policial.
Os seus subalternos devem ter pesquisado nos arquivos do governo e lhe avisado que a Bolívia estava fechada para ele, que era calouro do curso de Sociologia em La Paz, quando ocorreu um golpe militar por lá, seguido de intensa repressão a sindicalistas, religiosos, estudantes e docentes universitários.
O meu filho saiu, sim, às ruas, em defesa da democracia e em campanha pela soltura de presos políticos, e que, por causa dessa sua atuação como líder estudantil, durante dias consecutivos, ele foi capa do “Presencia” e “El Diario”, mas, folheando os dois jornais, o general entenderia que o rapaz que arriscou a integridade física pela liberdade coletiva na sua terra natal “Não seria ingrato de se matar no país que o acolhera com afeto e carinho”.
General, o destino do meu primogênito merecia ser longevo.
Ele sobreviveu a uma violenta crise institucional sem paralelo na história boliviana – acharam que ele tivesse sido atingido e morto durante o bombardeio ao restaurante universitário, junto a centenas de acadêmicos, e eu, desesperada e em luto, na companhia de outro filho, fui a La Paz para buscar o que restava do seu cadáver, após receber o dramático telegrama “Mis pésames. Chíchi falleció”.
Lembro que foram horas de trem e ônibus, eu chorava durante toda a viagem, mas, graças às orações que, no caminho, ia fazendo a Nossa Senhora de Copacabana, Padroeira da Bolívia, ao desembarcar em La Paz, decorridos cinco dias de incansável procura pela cidade, descobri que ele saíra ileso do massacre e encontrava-se em perfeito estado, vivinho da silva.
Retornamos o mais rápido que pudemos e o trouxemos conosco, para que ele tateasse logo o seu rumo por aqui, no aconchego do lar.
Ao abrirmos a porta da casa, o meu marido foi ao seu encontro e o abraçou “Viva o meu Lázaro”, numa referência ao personagem bíblico ressuscitado por Jesus Cristo.
Os olhos de meu marido estavam cheios de lágrimas.
Foi a primeira vez que o vi chorando!
General, não temos mais a quem apelar.
Inúmeras repartições percorremos – tudo em vão.
Penso que neste período agitado que vivemos, do ano de mil novecentos e setenta e quatro, cabe a um militar sereno, igual ao senhor, comandando próspero município de segurança nacional, ajudar esta sofrida mãe a encontrar a paz, ao esclarecer se o filho foi vítima de um crime ou de um acidente, por isso, viemos, meu marido e eu, à sua presença “Depositar a nossa última esperança”. Educado, o general aprumou o corpo, alinhou a farda, estendeu a mão e deu boa tarde, sinalizando que a audiência estava encerrada.
Daí, ele fez um gesto e um oficial nos acompanhou até à escadaria do quartel.
Na saída, ao ver aquele ajudante de ordem do general, de cara fechada, bater continência com severidade à sentinela, eu percebi que a nossa reunião não passara de simples despacho protocolar e que as autoridades “Jamais moveriam uma palha por nós”.
Luiz Taques dedica este conto à memória da senhora Yoya, mãe do seu grande amigo Schabib Hany. Jornalista e escritor, Taques escreveu o livro de contos “O casamento vai acabar com o poeta” (Editora Casa Amarela, 2002) e a novela “MULAS” (Editora Kan, 2019).
(Publicado originalmente no portal de cultura "Ensaio Geral", em 8 de setembro de 2019, disponível pelo link <http://ensaiogeral.com.br/noticias/cronica/mae_ninguem_engana#IDComment1080598874>.)

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Nem com milagre

Nem com milagre



Não há força capaz de vencer a frouxidão moral
Crônica de Luiz Taques


(Ilustração: Acir Alves)

(Ilustração de Acir Alves)

domingo, 1 de setembro de 2019

Politica Global: URGENTE: Testemunha ocular revela que condenação d...

Politica Global: URGENTE: Testemunha ocular revela que condenação d...: “No fim de 2012, Manolo Pichardo (foto), político da República Dominicana, participou de uma sinistra reunião na suíte de um hotel em Atl...