domingo, 7 de julho de 2019

SOMOS O QUE A VIDA NOS TORNA


Somos o que a Vida nos torna

Pura casualidade. Em um desses encontros fortuitos no centro comercial de Corumbá, dias atrás, eis que me deparo com Romildo, primo de outro grande Amigo de infância, Edson, o “Pelé”. Depois de nada menos que 51 anos de havermos sido colegas do 3º ano primário na saudosa Escola Paroquial Nossa Senhora de Caacupê, no prédio que hoje abriga a Casa dos Conselhos. Nossa professora era a Irmã Maria do Carmo (da Congregação Jesus Menino, creio eu), uma linda freira paulistana que permaneceu em Corumbá até o final do primeiro semestre de 1968.

“Pelé”, como Romildo, morava na vila da NOB, pois seus pais eram trabalhadores da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, estatal depois transformada em SR-10 da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A), privatizada em 1996 por Fernando Henrique Cardoso, o príncipe dos privatistas, que novamente assolam os destinos do Brasil. Hoje quase ninguém se lembra que o trem literalmente acabou depois da privatização. Em nação sem memória, malfeitor “bem nascido”, ainda que com rabo tão comprido quanto o comboio dos trens que trouxeram o progresso para o coração da América do Sul, acaba por ser reverenciado na Academia Brasileira de Letras.

O fato é que graças ao reencontro com Romildo fiquei sabendo que o franzino “Pelé”, na infância invencível jogador de futebol (daí o apelido), em fins da década de 1970 foi estudar Medicina na Bolívia, onde acabou por se casar e exercer a profissão de seus sonhos. Segundo o primo, depois do falecimento dos pais e avós, deixou de fazer suas esporádicas vindas à cidade-natal. “Tornou-se um boliviano esse meu primo”, conta com uma ponta de orgulho, porque ganhou o reconhecimento da população e das autoridades na cidade boliviana onde trabalha.

Devo confessar que tive vergonha de perguntar o nome completo dos dois, porque em nossa infância somente sabíamos o primeiro nome de cada colega, por mais Amigos fôssemos. E ele não se lembrara do nome da cidade em que o primo trabalha. Por tal razão, fico devendo o nome desse Amigo de infância e a cidade em que mora. Contudo, ficam a saudação pelo sucesso do Amigo “Pelé” e a lição dada por outro grande Amigo de infância, o saudoso Senhor Mohamad Bazzi (conhecido por “Abu Kamel”, “Pai do Kamel”, seu filho mais velho), simpático comerciante da “Casa das Flores”, no centro da Corumbá da segunda metade do século XX: “Somos o que a Vida nos torna.”

Uma entre tantas outras lições desse Amigo ancião, que herdei de meu saudoso Pai. Merecer a Amizade de pessoas mais velhas é, aliás, mais que um prêmio imerecido -- feito bilhete premiado de loteria --, uma graça, para usar termos mais recorrentes nestes tempos de religiosidade explícita. Desde a infância tenho tido a sorte de ganhar a Amizade de pessoas mais velhas, o que me permitiu certa, digamos, maturidade precoce. Insisto: não que merecesse, mas o fato é que fui presenteado, o que me incentivou saber manter os Amigos para toda a Vida.

Trata-se, sim, de uma obviedade. Contudo, em tempos de pós-verdade como estes em que vivemos, pode ter alguma serventia. Ao menos para aqueles cuja inquietude os tem deixado, no dizer do eterno poeta Fernando Pessoa, desassossegados. E não é para menos: as novas autoridades de plantão, ungidas aos mais elevados cargos da República mediante métodos nada ortodoxos (fake news, fake-ada, intolerância recorrente, ameaças de morte, manifestações castrenses extemporâneas, tentativas sucessivas de intimidação, execuções sumárias de agentes sociais e detentores de mandato como a eterna Marielle Franco no Rio, endeusamento de funcionários públicos que prevaricam e exorbitam de suas atribuições constitucionais para atender a apelos de ordem religiosa, partidária ou até mesmo criminosa), são a expressão mais eloquente de um desvario coletivo.

A lição dada por meu querido Amigo “Pelé” e verbalizada por Abu Kamel é uma sábia constatação da capacidade humana, de perseguir um sonho onde for, e fazer dessa conquista uma celebração coletiva, para benefício de si e dos outros. A despeito de uma imensa horda de “recalcados”, “mal-amados”, mal resolvidos que insistem em levar a humanidade aos descaminhos das trevas, e, pior, usando o nome das religiões para atingir suas ignóbeis intenções. A bem da verdade, a lição inclui, sim, esses seres bizarros, até por exclusão. Afinal, não foi a Vida a que os tornou, também, o que são?

Ahmad Schabib Hany

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