Dona Yoya, em seus dez anos de
eternidade
15
de junho de 2009, seis horas e cinquenta minutos, em um dos apartamentos do
hospital da Unimed de Campo Grande. Dona Yoya, nossa Mãe -- progenitora de nada
menos que nove filhos vivos: seis mulheres e três homens --, dá seu último
suspiro sobre o leito em que permaneceu por aproximadamente uma semana, da
mesma forma como viveu, estoica e discretamente. Uma mulher que não se valeu de
sua prole para justificar qualquer acovardamento: ao contrário, soube lutar com
toda a dignidade e coragem, até para despertar entre seus filhos a altivez com
que pautou sua Vida.
A
Irmã que a assistiu diuturnamente, por ser médica e bastante resiliente, disse
que esboçara um discreto sorriso, num misto de gratidão e alívio. Talvez fosse
o seu modo de se despedir e ao mesmo tempo induzir estímulo para continuar a
luta. Tanto para Dona Yoya como para Seu Schabib, nosso Pai, a Vida foi um
chamado à resistência, à luta, não para abocanhar vantagens ou conquistas
fáceis, mas para, com dignidade e ética, assumir grandes causas sem abandonar
as obrigações de Pais responsáveis (desses com letra maiúscula).
Nascida
em 11 de março de 1926, em plena Amazônia boliviana (San Joaquín de las Aguas
Dulces, no Departamento de Beni), Wadia Al Hany Ascimani, desde tenra idade
chamda de Yoya (tida por segunda mãe de seus Irmãos), era a segunda filha
nascida viva de dez filhos do casal constituído pelo dentista libanês Youssef
Al Hany e a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany, boliviana de Pai libanês.
Além do gosto pela costura e o cuidado com a Família, Dona Yoya herdara da Mãe
o autodidatismo, pois, com as limitações impostas às mulheres no início do
século XX, ler e escrever em casa era exigência mínima que se fazia às mulheres
emancipadas.
Dona
Guadalupe Ascimani de Hany, nossa saudosa Avó (com letra maiúscula), viveu
intensamente o século XX em todas as suas profundas transformações. Não sem
propósito, costumava advertir as filhas menores, que não tiveram sorte com seus
respectivos companheiros -- como foi o caso da Tia Nena, May Teresa Hany de
Paz, falecida há um ano e meio, a despeito de sua formação em odontologia,
igual ao nosso Avô Youssef Al Hany, num tempo em que ser dentista na Bolívia
profunda implicava em salvar vidas tal qual médico de campanha. Leitora de
clássicos da literatura universal, Dona Guadalupe questionava as filhas por não
terem sabido escolher bem seu pretendente: como eu, nascida e criada em um
povoado com menos de cinco mil habitantes, pude me casar com um Doutor jovem,
bonito e culto, enquanto vocês, com todos os estudos e currículo, só
encontraram seres medíocres, sem qualquer atributo e destituídos de companheirismo?
Além
da saúde física e psicológica para criar, educar e formar nove filhos em
condições adversas, Dona Yoya tirou de seu âmago uma capacidade de resistência
que se forjou numa luta interminável desde 1960, ano em que enfrentou
praticamente sozinha, uma crise econômica sem precedentes na Bolívia da
Revolução de Abril de 1952, quando já estava casada e com três filhos nascidos
e um por nascer (dois meninos e duas meninas). Como nosso Pai era perseguido
por sua atuação no jornalismo político e na intelectualidade de Cochabamba,
nossa Mãe ousou desafiar milícias xenófobas que ameaçavam mulheres sozinhas em
nome de um bizarro patriotismo, coisa que em nossos dias aflorou em território
deste país-continente, em que o ódio toma conta da racionalidade e a violência
sem precedentes toma conta de nosso cotidiano desesperador.
Primeiro
no Líbano, para onde partimos de trem e depois de barco no início da década de
1960 em oito irmãos (a caçula nascera no Líbano dois anos depois) com
nossos Pais, terra-natal do hoje saudoso Seu Schabib, mas que por razões de
sobrevivência precisou se deslocar para a África a fim de cobrir
jornalisticamente os movimentos de emancipação da Argélia, Líbia e Sudão (além
do Egito, então República Árabe Unida, liderada pelo saudoso líder pan-arabista
Gamal Abdel Nasser). Assim como na Bolívia de Victor Paz Estenssoro, no Líbano
de Fuad Chehab (sob influência de Camile Chamoun) Dona Yoya soube fazer frente
às investidas dos gendarmes que tentavam intimidar seu Companheiro e sua
Família: além de ter granjeado a amizade de familiares que só conheceu quando
foi para a terra dos ancestrais de seu Pai e do Pai de sua Mãe, os familiares de
seu cônjuge fizeram de tudo para que permanecêssemos lá, mas a acuidade
política de Seu Schabib já detectava a guerra civil fratricida que viria a
eclodir uma década depois para destruir o país.
A
escolha de Corumbá, no coração da América do Sul não foi casual: tratava-se de
lutar pela sobrevivência num novo país, mas sem perder os vínculos com a
Bolívia, em cujo território não só se encontravam vivos os Pais de Dona Yoya
mas também a conclusão dos estudos dos filhos mais velhos. No entanto, o ciclo
militar da história política da Bolívia (1964-1982), em que sucessivos golpes ensanguentaram
o povo boliviano, acabou provocando uma tragédia familiar, que foi a morte aos
25 anos, em circunstâncias não elucidadas, de nosso Irmão mais velho, Mohamed Schabib Hany. De todas
as adversidades enfrentadas em Vida, essa por certo foi a mais traumática e
irreparável, razão pela qual toda a nossa Família tem “nojo e ódio à ditadura”
(nas sábias palavras de Ulysses Guimarães).
A
maturidade precoce e uma sabedoria inesgotável fizeram de nossa Mãe a discreta
guerreira, determinada em seus generosos propósitos e ao mesmo tempo uma solidária
companheira em todos os momentos de sua prole, que a partir de meados da década
de 1980 dá início à segunda geração, com a chegada do(a)s neto(a)s ao longo de
duas décadas: Igor, Luana, Janen, Hanen, Neder, Pedro, Dunia, Omar e Sofia. Não
pôde conhecer a caçulinha dos netos e o primogênito dos bisnetos, o Nícolas
(Filho de Igor e Fernanda), mas cujo legado por certo guiará todos os
descendentes como fonte inspiradora de caráter inatacável, temperado na
incansável lide de emigrantes peregrinos que cruzaram oceanos, percorreram
continentes, abriram horizontes e semearam generosos ideais.
Com
Dona Yoya e Seu Schabib é que aprendemos desde tenra idade que a humanidade é
uma só, e que para o mundo se tornar melhor nós precisamos ser melhor desde
nosso interior. Mais que um exemplo concreto, eis uma razão de ser, sobretudo
nestes nada generosos tempos. Mas que os levaremos sempre conosco, como as
gratas recordações de sua presença em nossas vidas...
Ahmad Schabib Hany
2 comentários:
Eu tive o prazer e a felicidade de conhecer os seus pais, amigo Schabib Hany. Posso testemunhar: eram pessoas maravilhosas. Amavam o Brasil mais que muitos brasileiros. Amar que eu digo é ser generoso e solidário ao próximo. E os seus pais eram generosos e solidários. Grande abraço e tudo de bom para você e toda a sua família.
Obrigado, Amigo Taques, pelo generoso e espontâneo depoimento. O mesmo lhe desejo e a toda a sua querida Família, em especial para a querida Dona Maria e para a Doutora Regina. Grande abraço!
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