sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

"NI MODO..."


“Ni modo”

Por certo a perda mais impactante em minha infância/adolescência foi a de meu Irmão-guru Mohamed Schabib Hany, o querido e saudoso “Chíchi” (pronuncia-se igual ao apelido do técnico do Corinthians e depois da Seleção, “Tite”), eternizado abruptamente, aos 25 anos de uma Vida intensa e benfazeja: aluno brilhante, mas não “cdf”; filho e irmão generoso e solidário, e, sobretudo, Amigo e colega leal e abnegado. Um cidadão a toda prova.

Não que antes não tivesse experimentado essa inevitável sensação nada aprazível de perder um ser querido, o que nos dá a noção exata de nossa total impotência e nos faz uma chamada precisa para a nossa real insignificância.

A linda jovem e muito querida Prima Mshiroh (“Imchiróh”) Schabib, Mãe da querida Najeh (“Najéh”) Schabib, uma de minhas primeiras Amigas do peito, se eternizou aos 23 anos e, antes de virar saudade, pedira à minha querida Mãe que cuidasse dessa Priminha, de minha idade. E o saudoso e igualmente querido “Abuelito”, nosso Avô José (Yussef) Al Hany, Pai de minha saudosa Mãe, se encantara aos 67 anos. Ambos levados por uma longa doença, na época sem cura (creio que a leucemia). Isso ocorrera na primeira metade da década de 1960.

Mohamed, o “Chíchi”, se encantou traumática e repentinamente, em 21 de setembro de 1974, em meio a uma cortina de mistérios que a saudade jamais silenciou. Num tempo em que nada, absolutamente nada, podia se esperar das “otoridades” policiais. Nem recorrendo ao juiz de Direito ou ao general da Brigada, como os meus saudosos Pais, levados pelo desespero, foram orientados a fazer. Em vão. Nem perícia, nem laudo, nem inquérito. Decretaram que tivesse sido suicídio, e ponto final -- danem-se os familiares e a memória do falecido...

Basta dizer que, seis meses antes, na madrugada do dia de aniversário de 48 anos de minha Mãe (11 de março de 1974), feito jagunços, seis atiradores, que depois se identificaram como policiais, haviam disparado mais de trinta tiros contra a parede lateral da moradia de minha Família, felizmente construída nos anos 1930/40 como fortaleza de pedras e madeira de lei. E o pretexto era que “alguém” (que supunham ser meu Irmão) -- e por isso teria que ser executado assim, crivado de balas, e sem direito a investigação prévia e julgamento justo, à luz da lei -- andava atirando pedras no telhado de um bar noturno frequentado por explorados peões de fazenda ansiosos por saciar suas necessidades sexuais. Na verdade, tratava-se de uma retaliação contra meu Pai, que liderara, a pedido da vizinhança, a subscrição de um abaixo-assinado, ao final do ano anterior, reivindicando das autoridades limites legais para o funcionamento de diversos bares noturnos, por causa da violência que ameaçava aumentar na ex-Feira Boliviana, como então se denominava aquele perímetro de Corumbá situado nas imediações da Estação Ferroviária Internacional, inaugurada em maio de 1968.

Além de ter sido uma flagrante ameaça a toda a nossa Família, com clara finalidade de intimidação, esse atentado que felizmente não matou nem feriu ninguém -- até porque fez meu saudoso Pai revidar oportuna e corajosamente com cinco tiros quase certeiros (pois, além de ter sido campeão de tiro ao alvo em sua juventude na Amazônia, ele tinha arma registrada com porte legalizado) --, aquele episódio foi um ultraje, uma humilhação para todos nós, sobretudo para o “Chíchi”, estudante de Psicologia quase concluinte e um jovem idealista que cultivava a solidariedade e a paz em suas relações, fosse com a vizinhança ou clientes da modesta pousada e os colegas e amigos do então Centro Pedagógico de Corumbá, um dos campi da extinta Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), criada havia poucos anos.

Desde tenra idade Mohamed se revelara um líder natural. Não por ser o mais velho de uma prole de nove filhos, mas por seu comportamento, espontaneamente. É o que contavam meus saudosos Pais, e seus Amigos de infância assim o confirmaram, em depoimentos espontâneos, enviados tão logo souberam de sua eternização, 45 anos atrás. E sua marca era a lealdade e o afeto mesclado a uma alegria infinita. Nos momentos tensos, costumava contar anedotas, para aliviar a tensão. Quando, em casa, recebia uma repreenda de nosso Pai, por algum motivo (inevitável nas relações entre Pais e filhos), ele costumava procurá-lo, mais tarde, para se explicar. E quando o choque era de opinião, seu bordão inesquecível era um marcante “ni modo”, em espanhol (isto é, “fazer o quê?”).

Quando tomei consciência de minha inserção numa família numerosa, pude perceber uma relação leal e solidária entre meus Irmãos mais velhos, sobretudo os três maiores: Mohamed, Wadia e Muslim, que ao voltarmos do Líbano, ficaram para morar e estudar com a minha querida e saudosa “Abuelita” (Avó materna), Dona Guadalupe Ascimani de Hany, uma segunda Mãe para todos os netos, viúva aos 58 anos e que se eternizou aos 73 anos, também por uma doença incurável que a deixou prostrada por um longo tempo, mas sem perder a lucidez e a vontade de viver. Por conta das idas e vindas entre o Líbano e a Bolívia, Mohamed e Muslim acabaram estudando na mesma série, apesar da diferença de dois anos entre eles, mas sem qualquer sentimento de competição ou recalque. Lembro-me da festa de formatura do ensino médio, em 1967, em Cochabamba, no então imponente Colégio Nacional Daniel Sánchez Bustamante, em que o “Chíchi” recebeu anel de honra ao mérito por ter sido o melhor aluno nos três anos seguidos. E no dia seguinte à festa, a apresentação ao Serviço Militar (na época, os estudantes faziam o “pré-militar”, uma espécie de prática de tiro), em que os dois irmãos cumpriram com responsabilidade, tendo sido promovidos a “dragoniante”, como registra a sua carteira de reservista do Exército boliviano.

“Chíchi” decidira cursar Engenharia Civil, que na época somente era oferecida na Bolívia pela Universidade Mayor de San Andrés (UMSA), em La Paz, quando se distanciou do Muslim, que optara por Medicina, na Universidade Mayor de San Simón (UMSS), em Cochabamba (onde um ano depois Wadia ingressaria no curso de Arquitetura). Eram anos de repressão e resistência, tanto para universitários como para os trabalhadores. Os dois irmãos foram líderes estudantis espontaneamente, mas cada qual ligado à sua universidade e ao seu contexto. Em La Paz, sede de governo boliviano, a visibilidade de Mohamed se deu de forma meteórica. Em 1970, quando o efêmero governo do general Rogelio Miranda promoveu uma intensa repressão a intelectuais, sindicalistas, religiosos e docentes universitários, tendo sido levados ao temido Panóptico de San Pedro, os estudantes tomaram a Bastilha boliviana, e “Chíchi”, por dois dias seguidos, esteve na capa dos jornais “Presencia” e “El Diario”, de maior circulação do país, para explicar os motivos da iniciativa dos universitários pela libertação dos presos políticos. Os meus Pais, temerosos, ao receber os jornais com a foto dele, passaram a ver com preocupação esse grau de exposição, como que antevissem o que viria a seguir.

Naquele ano ele trocara Engenharia por Sociologia, e seu engajamento político já era explícito. Era um quadro orgânico socialista e sua atuação como líder estudantil o expunha excessivamente. O sangrento golpe militar encabeçado pelos coronéis Andrés Selich e Hugo Banzer, em agosto de 1971, tinha como alvo principal dos líderes sanguinários fascistas a cidade universitária da UMSA, em plena área central de La Paz, para impedir que a resistência civil, liderada por sindicalistas, intelectuais, universitários e religiosos, pudesse de alguma forma conter o avanço dos golpistas, cujo epicentro era Santa Cruz de la Sierra, palco de uma sangrenta batalha campal no perímetro urbano da então terceira maior cidade da Bolívia.

Não demorou muito, e um telegrama enviado de Cochabamba pelo Tío “Yoco” (José Tamim Hany Ascimani), Irmão de minha Mãe -- com um lacônico “Mis pésames. Chichi falleció.” --, fez toda a família cair em pranto. Pouco depois, desesperadamente, minha Mãe e meu Irmão Muslim, que passava as férias em Corumbá, viajaram para La Paz. Estávamos de luto. Amigos e vizinhos vinham prestar solidariedade. Foram pelo menos cinco dias de sofrimento até ficarmos sabendo que ele estava ileso. Erroneamente o nome dele constava de uma lista de mortos no Restaurante Universitário da UMSA, um dos locais da resistência ao golpe sanguinário e alvo de bombardeio aéreo e de atiradores de elite das tropas golpistas. Ele, como dirigente estudantil, estava em uma frente ampla, fazendo isolamento ao Palácio Quemado, para impedir a destituição do Presidente Juan José Torres e repelir as investidas fascistas dos coronéis Selich e Banzer em sua ânsia pela tomada do poder.

Uma semana depois, “Chíchi” finalmente estava entre nós, com minha Mãe e Muslim. Alivado e feliz, meu Pai o chamara de Lázaro, o personagem bíblico, por ter sobrevivido à morte anunciada. Desde então, ele não mais retornara à Bolívia, cujas universidades tiveram decretado um recesso compulsório por mais de três anos. Tanto Mohamed como Muslim fizeram vestibular no Brasil para continuar os estudos -- como Sociologia era um curso banido das universidades brasileiras naquele período da história, ele se matriculara no curso de Psicologia, a partir de 1972. Amigos queridos, como Marlene Terezinha Mourão (“Peninha”), José El-Haje (“José Lata”), Pastor Cosmo Gomes de Souza, o Senhor Lincoln Gomes e os Professores Valmir Batista Corrêa, Lúcia Salsa Corrêa e Gilberto Luiz Alves, nos contaram sobre alguns momentos de convívio ou de encontro no Centro Pedagógico durante sua passagem pela UEMT, como sua presença assídua na biblioteca do CPC e sua participação em algumas atividades acadêmicas, mas sempre discreto (em nada lembrava o líder estudantil que atuou ativamente na resistência democrática em seus derradeiros anos de Vida na Bolívia).

Mas nem por isso sua permanência em Corumbá foi infeliz, pois, soube, sabiamente, cercar-se de Amigos, de todas as camadas e classes sociais, nacionalidades e confissões religiosas. Mohamed viveu intensamente, estudando e conhecendo o Coração da América do Sul em sua breve estada na enigmática Corumbá dos anos de chumbo, em que (sic) forças não tão ocultas sentenciavam sorrateiramente o destino dos que não agradassem aos regimes de arbítrio e opressão implantados a ferro e fogo em nossa triste América Latina, ao gosto e sabor do império do norte. Ainda que a contragosto de meu Pai, dedicou bom tempo (creio que mais de ano) a trabalhar com o imigrante italiano Alfredo Buonnocore em sua “Ital-Mecânica Corumbaense”, em frente ao recém-inaugurado Centro Educacional Júlia Gonçalves Passarinho, do outro lado da Cadeia Pública (anos depois, Pró-Sol e Casa do Artesão). Seu Buonnocore (“bom coração”, em italiano), então, lhe mostrou seu projeto de “trator-anfíbio do Pantanal”, projeto que depois levou para a Ilha do Marajó, no Pará. Aqui não contara com o apoio necessário -- em Corumbá conseguiu construir duas unidades, além do protótipo --, mas na Amazônia fez dezenas de unidades, e no final da Vida acabou vendendo seu projeto para a Volkswagen do Brasil, que guardou o projeto para a posteridade.

Com outros senhores igualmente mais velhos que meu Pai, como os queridos e saudosos Abu Kamel (Mohamad Bazzi) e Kablan Hamdan, ambos socialistas (um libanês e outro palestino), costumava conversar sobre política internacional e as investidas do império no Oriente Médio, como a suspeitíssima morte nunca elucidada de Gamal Abdel Nasser, líder pan-arabista egípcio que criou a República Árabe Unida (RAU), contribuiu para a descolonização da África das potências coloniais europeias e participou ativamente da fundação do Movimento dos Países Não-Alinhados, ao lado de Jawaharlal Nehru, Broz Tito e Chu En-Lai. E como ficaram abalados quando souberam da trágica eternização de “Chíchi”, tendo ficado ao lado de meu Pai todo o tempo de seu luto, como verdadeiros Irmãos.

O querido e saudoso Senhor Inácio Ramos da Silva, nascido em 1904, também era um dos Amigos dele. Além de conversar sobre a Corumbá do tempo das charqueadas (antes de ser carpinteiro, Seu Inácio foi magarefe, uma especialidade que desapareceu depois da decadência da indústria da carne em nossa região), “Chíchi” desempenhava com ele alguns trabalhos de marcenaria, como aprendiz. Levava-me junto nessa empreitada, confeccionando casas para os cachorros, estantes para os livros, móveis simples para objetos da casa e até estrados para as camas da pousada de meus Pais, que precisavam se modernizar para os novos tempos dos “colchões de mola”, periodicamente renovados para atender aos clientes. Criativo e habilidoso, confeccionou uma estrutura para espetinhos que eu vendia na infância e para venda de cachorro-quente, que lamentavelmente não teve tempo de colocá-la em funcionamento.

Não tinha preconceito de ninguém, tanto que estudava diversas disciplinas com alguns militares da Marinha que vieram servir e estudar na região. Alguns deles depois se tornaram professores nossos no ensino médio, como os sargentos Uberlândio Passos e Chevalier da Silva, Amigos que herdei de suas relações. Inclusive com os colegas de todas as minhas Irmãs mais velhas, ensinando disciplinas como Matemática, Física, Química e Biologia. Com os meus Amigos João de Souza Álvarez, Juvenal Ávila de Oliveira e Benedito Jesus Silva da Cruz também estudava e conversava sobre os mais diversos temas. Certa vez a um deles, que lhe dissera ter passado de uma para outra denominação religiosa por falta de identificação, “Chíchi” observara que a fé é “de dentro para fora”, isto é, não importa a denominação, o importante é a prática de suas concepções. Tempos depois de meu Irmão ter se eternizado, esse querido Amigo me disse que não ter esquecido “essa lição” que ouvira dele.

Entre outros Amigos assíduos estavam o neto de Seu Inácio, o também saudoso Mário da Mota e Silva (que morara no Rio de Janeiro, onde passou a compreender a realidade brasileira em pleno regime de 1964), Don Virgilio (um Amigo boliviano cujo sobrenome não lembro, pai da América e outras três filhas, um socialista que fez questão de deixar um depoimento emocionado para o meu Pai quando “Chíchi” se eternizou) e o “Carioca” (desse Amigo, que retornou para o Rio de Janeiro em 1978, não me lembro seu nome, mas era uma excelente pessoa, grande vendedor de amendoim, tendo inventado um aquecedor a carvão com alça que o carregava como balde). Esses eram alguns de seus Amigos, que acabei por herdar dele, e com os quais pude conhecer melhor o meu guru que se eternizara quando eu era apenas um adolescente.

Por isso tudo, chega a ser inconcebível para quem, como eu, que conviveu e o conheceu profundamente, aceitar a sentença imediata, sem maiores investigações nem a devida perícia básica -- como o exame de balística --, de que nosso querido Irmão “Chíchi” se suicidara. Fui eu, aliás, quem o encontrou inerte, ao retornar de uma saída para adiar a entrega de trabalho escolar à professora de Biologia, ao lado dos Amigos João de Souza Álvarez, Juvenal Ávila de Oliveira e Benedito Jesus Silva da Cruz, com quem almoçáramos juntos, e nossa imagem derradeira desse jovem alegre, cheio de planos, jamais tinha qualquer motivação drástica como a autoeliminação.

Toda a minha Família tem presente aquele sábado, 21 de setembro de 1974, feriado municipal de fundação da cidade, quando todos os alunos participavam do desfile cívico-militar, à exceção daquele ano, em razão do luto decorrente do acidente aéreo em que todos os membros do Comando da 9ª Região Militar, com sede em Campo Grande, haviam falecido dias antes. Meu saudoso Pai estava em jejum pelo Ramadan, mês sagrado muçulmano, desde a alvorada até o pôr-do-sol. Na hora do café da manhã, todos nós nos reunimos, à exceção de meu Pai, e “Chíchi”, brincalhão como sempre, substituíra o sal pelo açúcar na hora de adoçarmos o café. Mais tarde, quando coube a mim a recepção da pousada, registrei apenas dois hóspedes, precisamente às 10 horas da manhã: dois jovens bolivianos, bem altos, cabelos e barba feitos e de características europeias. Eram os únicos hóspedes naquele dia, pois todos os que pernoitaram haviam viajado bem cedo, ou para Campo Grande ou para Santa Cruz de la Sierra. Permaneci até o final do almoço na recepção, quando fui rendido por uma de minhas Irmãs.

Tínhamos o hábito de nos reunir para almoçar todos juntos depois de atender aos comensais no refeitório da pensão. Na companhia de meus Amigos, com os quais saí logo após o almoço, nos despedimos dele e de minha Mãe, que permaneceram à mesa, conversando. Não passava de uma da tarde quando saímos para nos dirigirmos à casa de nossa professora de Biologia, mas devagar, até porque fazia um calor típico daquela estação do ano. No centro, antes de irmos ao Edifício IOSA, onde residia nossa professora, passamos pelo saudoso Café Castelinho, e conversamos longamente até aproximadamente as três da tarde. Somente então nos dirigimos ao apartamento da professora, que conversou conosco sem qualquer pressa. Lembro que saímos do edifício quase às quatro e meia da tarde, e a seguir adentramos ao saguão do Cine Tupi, situado no andar térreo do imponente prédio, para ver os cartazes dos filmes em exibição. Precisamente às cinco horas, meus três Amigos seguiram para as suas casas, e eu retornei para casa depois de comprar os exemplares da “Folha de S. Paulo” e do “Jornal do Brasil” que Seu Natércio Pinheiro guardava para meu Pai.

Ao chegar em casa, às cinco e meia da tarde, cumprimentei três amigas de uma de minhas Irmãs que estudavam para uma prova e deixei os exemplares dos jornais na mesa da recepção da pousada. Logo, me dirigi ao quarto, em que deixara a máquina de escrever com parte do trabalho de Biologia datilografado, pois tínhamos o compromisso de entregá-lo à professora na segunda-feira. Mas ao adentrar, me deparei com a porta entreaberta (quando eu havia deixado fechada, com a chave na porta), a luz acesa, a máquina com os papéis datilografados e manuscritos delicadamente colocados sobre uma das camas, e “Chíchi” estendido no chão, entre as duas camas, sob um manto avermelhado. Tomado por uma estranha sensação de pânico, forcei a vista e percebi que o que aparentava ser um manto era na verdade o que não queria admitir: era o seu sangue, que cobria todo o seu rosto e parte de seu corpo. Fiquei inerte por alguns segundos, tendo contido o impulso de ir ao encontro dele, para sacudi-lo. Não consegui. Contive a vontade de sair correndo.

Fui à procura de meu Pai que, por causa do jejum, descansava enquanto esperava pelo pôr-do-sol para poder saciar a sede e se alimentar. Com muito custo, consegui chamá-lo: “Papai, vem ver o que ‘Chíchi’ fez...” Ao me ver tenso e pálido, Papai se assustou, mas acreditou que se tratasse de futrica de adolescente, e me aconselhou a conversar com meu Irmão. Não conseguindo falar, peguei meu Pai pelo braço, e o levei ao encontro daquela cena trágica. Foi quando o vi pela primeira vez chorar incontida e desesperadamente, chamando por seu nome e se perguntando por quê. Uma cena que jamais sairá de minha memória. O pranto de meu Pai chamou a atenção das duas Irmãs que estavam em casa e das Amigas que estudavam com elas. Elas, desesperadas, vieram ao nosso encontro, além das duas senhoras que trabalhavam na pensão naquele horário (a camareira e a cozinheira). Uma das senhoras, bem forte, acudiu meu Pai e lhe deu um copo de água com açúcar, enquanto a outra tentava acalmar as minhas Irmãs, que também desabaram a chorar, ao lado das Amigas, que não sabiam o que fazer.

Como minha Mãe havia ido à verduraria de Seu Manuel Avelino, a menos de cem metros da hospedaria, para comprar verduras para o jantar (oportunidade que tinha para conversar e tomar um café com a esposa dele, a saudosa Dona Lídia Avelino), fui à sua procura, depois de passar pela quitanda de Seu Brotinho, a quem pedi que fizesse o favor de ligar para a polícia e a ambulância para atender a um chamado na pensão (nessa época, não havia telefone público e poucas eram as moradias e comércios com telefone privativo, fosse em Corumbá ou na chamada ex-Feira Boliviana). Ao chegar na verduraria de Seu Manuel, chamei com uma voz trêmula por minha Mãe, e Dona Lídia, uma pessoa muito espiritualizada, se assombrou com minha palidez, e disse à minha Mãe: “Vai, Dona Yoya, que não é notícia boa que esse menino traz! Depois eu vou...” Mamãe não escondeu o susto, e insistiu comigo para saber de que se tratava. Não conseguia falar, apenas a levava pelo braço, para chegar o mais rápido possível. Ao passarmos pelo prédio da Embratel, deu para ver a multidão se formando em frente da pousada e a chegada das viaturas da polícia e da ambulância. Foi então que Mamãe se desesperou e começou a correr no sentido de casa, já em pranto.

Quando cheguei com Mamãe, minhas Irmãs e algumas Amigas a acudiram: por elas é que ficou sabendo quem havia falecido. Fui ao encontro de Papai, que mal conseguia falar com os policiais e os socorristas. Ao constatar que meu Irmão havia falecido, a ambulância se foi. Depois de o Senhor Soares, conhecido fotógrafo, ter registrado a cena do ocorrido, o corpo de “Chíchi” foi levado na Veraneio da Polícia Civil (a companhia da Polícia Militar seria instalada em Corumbá três anos depois, em 1977, ano em que Mato Grosso fora dividido, quando o corumbaense Cássio Leite de Barros era vice-governador e depois o último governador de Mato Grosso uno). Entre os policiais que levaram o corpo de meu Irmão estavam alguns dos envolvidos no tiroteio do dia 11 de março contra minha Família, e eu tive a impressão de que ele era levado como um troféu, o que me doeu ainda mais. Como então não havia IML, o corpo foi deixado no necrotério, localizado aos fundos do Hospital de Caridade (terreno em que foi construído o hemocentro local), para onde retornei depois de fazer o único depoimento dado em todo o processo, na delegacia situada nas imediações do Aeroporto Internacional.

O único depoente fui eu, de 15 anos de idade e desacompanhado de qualquer pessoa maior de idade. Ainda tomado de susto pelo que presenciara, não conseguia ouvir (e muito menos entender) as perguntas feitas, sobretudo se ele se suicidara mesmo. Naquele momento eu simplesmente não sabia o que era suicídio, mesmo assim me fizeram assinar um documento, que acabou sendo o único a embasar o processo de investigação (que, a rigor, não houve), como não houve exame de balística e o revólver levado junto, um “Smith & Wesson” 1940 com cabo em madrepérola, simplesmente desaparecera com o relógio “Mido” que ganhara de meu Pai ao ingressar na universidade. Além do mais, foi muito sugestivo o teor liberado para a imprensa, conforme noticiado, na segunda-feira, dia 23 de setembro, pelo rádio e, na terça-feira, dia 24, pelos jornais, de que (sic) “estudante universitário se fuzila em casa”.

Depois de ter permanecido pelo tempo que representou para mim uma eternidade na delegacia de polícia e de ter passado por essa verdadeira sessão de tortura, me deixaram no necrotério, onde aguardei pelo traslado do corpo de meu Irmão pela funerária que o prepararia. Outra cena que jamais esquecerei: na penumbra, o corpo inerte de meu Irmão sobre uma mesa de mármore, o pequeno quarto com a porta entreaberta, sem uma cadeira ou banco para sentar-se. Foi outra eternidade, mas, ao contrário da Polícia, os agentes funerários foram mais sensíveis e me deixaram num fusquinha em casa, pois demorariam para levar o caixão para o velório, que ocorreu nas dependências da pensão, como quiseram meus Pais.

Nem bem nos repusemos do baque, tivemos que visitar todas as redações de jornais e rádios locais para tentar amenizar os termos utilizados pelo setor de divulgação da delegacia, além de tentar restaurar a verdade. Vali-me da companhia dos Amigos Juvenal Ávila de Oliveira, então radialista, e João de Souza Álvarez, repórter fotográfico, para sensibilizar os meios a mostrar o “outro lado” da notícia. Que eu me lembre, o único jornal que publicou a versão da família da vítima com igual espaço e destaque em sua edição seguinte foi o “Diário de Corumbá”. O fundador, Jornalista Carlos Paulo Pereira, era Amigo de meu Pai e sempre dera um espaço para que ele escrevesse seus comentários sobre o Oriente Médio (razão pela qual eu, desde cedo, assumi a revisão de seus textos publicados pelo jornal). Depois da eternização de meu Irmão Mohamed, Papai passara a publicar rigorosamente três vezes ao ano um artigo de conteúdo espiritualista que foi ganhando adesão de muitos leitores, tendo sido o mais reconhecido (e republicado em outros jornais no Brasil e na Bolívia) o artigo intitulado “De onde viemos, para onde vamos e por quê?”, de 1976.

Na tentativa de esclarecer e até de sair de dúvidas que consumiam toda a Família, meus Pais recorreram, orientados por Amigos, ao juiz de Direito da Vara Criminal e ao general da Segunda Brigada Mista, que encaminharam expedientes ao então delegado regional de polícia, bacharel Élio Marsiglia, nosso ex-professor de Matemática e de Educação Moral, Social e Cívica, e o mesmo que, como delegado de políica, recebera o abaixo-assinado do final do ano anterior e a reclamação pelo tiroteio contra a moradia de nossa Família, o que não dera em nada. Nem devolução de revólver e relógio, nem elucidação do crime (ou acidente) ocorrido com “Chíchi”. Três anos depois, o Jornalista Edson Moraes, ex-repórter da “Folha da Tarde” e mais tarde fundador e diretor de “O Tempo”, precisou fechar seu jornal e se mudar definitivamente para Campo Grande depois de ter publicado uma série de reportagens em que denunciava a existência de um cemitério clandestino na estação de Urucum, cuja responsabilidade era atribuída aos órgãos de repressão.

Não bastasse a iniciativa solidária dos colegas do curso de Psicologia de Mohamed, que, por meio do saudoso Senhor Lincoln Gomes (que entoara durante a celebração belíssimos hinos sacros), solicitaram autorização ao bispo diocesano para realizar missa de sétimo dia em sua memória (então, as pessoas sepultadas como suicidas não podiam ter celebração póstuma, por entendimento do Vaticano), membros da União Espírita Corumbaense, por meio de Dona Elza (esposa de Seu Brotinho), convidaram meus Pais para participarem de uma sessão espírita reservada em que, após a realização, receberam mensagem de que “Chíchi” não era suicida, o que tirou um fardo das costas de toda a Família.

Como se isso tudo não tivesse sido suficiente, por pura coincidência, um investigador de ascendência nipônica, de uma grande companhia multinacional de seguros (“Argos”), de São Paulo, se hospedara, a trabalho, na modesta pousada de meus Pais por duas semanas, e ao longo do tempo do convívio inevitável com os adultos da pensão, acabou por saber do ocorrido com nosso Irmão. Com muita discrição, aquele senhor cujo nome não lembro, pediu que meu Pai contasse em detalhes o episódio, perguntou sobre o comportamento de Mohamed (sobretudo nos seus últimos dias), sobre seu desempenho na universidade e a relação com os colegas e Amigos. Perguntara se havia sido feito exame de balística e outros exames de corpo de delito, e diante da resposta negativa de meu Pai ficou visivelmente contrariado, mas  sem manifestar absolutamente nada. Como no decorrer de sua fala meu Pai falara do registro fotográfico de Seu Soares, perguntou se podia ver as cópias das fotos entregues por ele para Papai, por conta da amizade entre eles. Dois ou três dias antes de ir embora, o investigador pediu para meu Pai chamar minha Mãe, e a sós com eles descartou qualquer hipótese de suicídio. Disse que não poderia afirmar que se tratasse de acidente ou de assassinato por não ter mais dados, e que a não realização de exame de balística ele considerava um ato criminoso. Isso, aliás, foi o que motivou meus Pais a insistirem no acompanhamento do inquérito policial, que nunca deu em nada.

Meus Pais sabiam que os tempos eram de chumbo não só na Bolívia. Como eram estrangeiros no Brasil, insistiram até o limite da legalidade, ou melhor da frágil institucionalidade, mas acabaram levando para a eternidade uma angustiante dúvida, decorrente da acintosa (sic) “negligência” do delegado regional de polícia, nomeado sem concurso por suas relações familiares com membros da Arena, o partido de sustentação do regime de 1964, que, depois da denúncia do Jornalista Edson Moraes (ameaçado de morte pela série de reportagens), acabou abreviando sua carreira policial. Curioso é que um ex-colega secundarista, caricaturista do saudoso “Clarim Estudantil” (jornal interescolar criado pelos alunos do Centro Educacional Júlia Gonçalves Passarinho), em pleno regime democrático (precisamente em 2008), propôs homenagear o ex-delegado e ex-professor com uma comenda dos Direitos Humanos quando ele (o ex-caricaturista) residia em Brasília e dizia atuar em uma organização social de defesa dos Direitos Humanos.

Ahmad Schabib Hany