Esta véspera
de Dia de Finados entra para a história de Corumbá como a data em que Ruiter
Cunha de Oliveira, um dos poucos prefeitos a conquistar três mandatos pelo voto
popular –- direta, secreta e democraticamente -–, teve interrompida a sua
existência humana. Data em que Corumbá se enluta e que doravante terá para
celebrar a memória de um de seus filhos mais queridos.
Ruiter não foi
apenas o primeiro prefeito petista na história bicentenária do município mais
antigo de Mato Grosso do Sul. Foi, sobretudo, o primeiro prefeito de origem
popular, um “filho do povo”, no dizer embolorado dos cultuadores de pedigree:
ele era filho do saudoso Oswaldo de Oliveira, o popular “Rolinha” da pequena
mas concorrida Drogaria Dom Bosco –- instalada, na Frei Mariano,
estrategicamente defronte à Farmácia Santa Maria, dos Irmãos Bertazzo, quase ao
lado da Farmácia Santo Antônio, do saudoso Heldo Delvizio.
Ruiter não foi
apenas eleito e reeleito pelo voto popular por conta da identificação com que o
povo o acolhera: ele não só trazia estampada no semblante a identidade da
miscigenação pantaneira, mas, sem qualquer dúvida, era a expressão da veia
afrodescendente no empoderamento tão caro e custoso na história da construção
da democracia étnica brasileira.
Nosso primeiro
contato com Ruiter foi durante o profícuo processo de fundação do Centro Padre
Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), entre 2000 e 2001. Na
residência do senhor Jorge José Katurchi e da agora saudosa Dona Anna Thereza,
que carinhosamente acolheram a ideia, os também saudosos Padre Ernesto Sassida
e o Doutor Salomão Baruki, ao lado de outros poucos Amigos, foram construindo
as bases daquilo que viria a ser o CENPER. Não por acaso a proposta do Senhor
Jorge, e logo apoiada pelo Doutor Salomão, de que o primeiro presidente da
entidade fosse Ruiter, que reunia os atributos para encabeçar a gênese da
entidade. Padre Ernesto, de pronto, assumiu com simpatia a proposta, e com a
aquiescência de Ruiter, acabou por acontecer.
Nessa
oportunidade, Ruiter deu provas de sua sensibilidade social, e logo explicitou
o gosto pelas políticas inclusivas emanadas de dois governos de forte perfil
popular: o do governador José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca, e o do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Independente de qualquer simpatia
ideológica, os dois primeiros mandatos de Ruiter tiveram a marca da inclusão
social plena, daí por que a ineludível simpatia de que gozava junto às camadas
populares em toda a região do Pantanal. Obviamente, a saudosa Helô Urt foi
determinante nesse direcionamento, que exigiu sempre do gestor municipal uma
convicção inarredável.
Podemos dizer
que fomos testemunha do compromisso de Ruiter, já fora da administração municipal,
quando, por acaso, ao lado do igualmente saudoso Professor Deusmar Espíndola, manifestou
sua preocupação com alguns procedimentos administrativos de seu então aliado e
sucessor, entre os quais o lamentável episódio com os bolivianos. Quando de sua
candidatura para deputado estadual, ainda em seu primeiro partido, tentou ser
um vaso comunicante entre as expressivas camadas populares e as instituições,
já em clima de fragmentação, sob a influência dos movimentos conservadores que
hoje permanecem inertes diante das comprovadas falcatruas cometidas pelos que
tomaram de assalto os destinos da nação.
Nosso
derradeiro encontro foi numa casual fila de banco, bem antes da deflagração da
campanha eleitoral de 2016. Na oportunidade trocamos algumas ideias sobre a
conjuntura nacional, e ele, sempre discreto, se manteve atento aos comentários
indignados que na ocasião emitíamos. Na verdade, até então, eu não acreditara
nas notícias de que sairia da agremiação que mais identidade tinha com seu
proceder enquanto cidadão e dirigente político. Desde os tempos da criação do
CENPER, Ruiter fazia questão de ouvir a todos com muita atenção, o que o tornou
popular e simpático para os amplos setores sociais na região.
Os primeiros
meses de seu terceiro mandato foram marcados por muitas dificuldades políticas,
financeiras e, sobretudo, institucionais. Não temos dúvida de que a opção pela
legenda com a qual se elegeu muito contribuiu para isso: partido de perfil
conservador e com profundos compromissos com um governador com precários
vínculos populares, as dificuldades acabaram por se ampliar. As suas
entrevistas derradeiras conformam esse contexto de cortes e cancelamentos de
compromissos, sobretudo do emblemático Festival América do Sul,
diferentemente dos generosos tempos anteriores.
Mas, a despeito
de eventuais equívocos que o tempo haverá de explicar, Ruiter
passa para a história como um dos mais queridos gestores de seu tempo e da
história de Corumbá. Pena que muitos de seus correligionários, atuais e
anteriores, não tivessem clareza ou generosidade para admitir tal fato e,
aceitando-o como realidade, transformar aquilo que hoje é adversidade em fator
de superação, sobretudo das condições sociais da imensa maioria da população
corumbaense.
Que este
modesto réquiem para Ruiter permita uma reflexão sincera, ainda que solitária e
tardia, àqueles que tiveram muito mais tempo e oportunidades de convivência com
um “filho do povo” cuja razão de ser, sem dúvida, foi sua cidade,
independentemente das opções por ele feitas.
Até sempre,
Ruiter! Que sua Família encontre forças e fé para superar este momento
doloroso, compartilhado por pessoas anônimas que sempre se identificaram com
seu semblante popular.
Ahmad Schabib Hany
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