Tríade-texto da mesa do dia 31.03.2016
Num dia como hoje, 52
anos atrás, a então jovem democracia brasileira, nascida depois da promulgação
da Constituição Federal de 1946, era estuprada, violentada com a conivência
cínica de setores das elites brasileiras, representadas por organizações como a
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao lado da Sociedade Brasileira de Defesa
da Tradição, Família e Propriedade (TFP), e suas repetitivas edições da Marcha
da Família com Deus pela Liberdade. Cínica, sim, porque os conspiradores
juravam de pés juntos que não era golpe, era (sic) defesa da democracia e da
liberdade. E, por isso, toda a nação pagou 21 longos anos de censura,
repressão, arbítrio, cassações, supressão de direitos, prisões ilegais,
sequestros, tortura, desaparecimentos, assassinatos, perseguições, delações,
cooptações, medo, desesperança, corrupção e entreguismo.
Depois das importantes
reflexões em alto e bom tom da Professora Doutora Elisa Freitas, uma aula-magna
acerca da geopolítica global e a crise no Brasil, e do Professor Mestre
Fabrício Santiago, uma fecunda digressão sobre a gênese da democracia e sua
evolução ao longo da história ocidental, cabe a mim o óbvio: discutir com
Vocês, colegas professore(a)s e aluno(a)s, alguns aspectos conjunturais sobre
esta crise, que como bem disse o Professor Fabrício, se constitui em importante
momento de aprendizado e superação da sociedade como um todo.
Antes, porém, vou
reiterar o que tenho insistido com o(a)s aluno(a)s em sala: que o contexto histórico
é determinante para compreender qualquer fato histórico. Assim como na
História, também no Jornalismo, o contexto é fundamental, e omiti-lo se
constitui em crime, pois se trata de uma ação dolosa que pereniza o legado
nefasto de Joseph Goebbels, o homem da propaganda de Hitler, e seu princípio da
transferência; como se usássemos um programa de edição de imagens para recortar
uma inocente foto de um grupo de amigos dentro da universidade e o inseríssemos
num ambiente totalmente adverso – como um motel ou um prostíbulo, por dizer –
com o único afã de destruir a dignidade das pessoas deliberadamente vitimadas.
Ouso insistir, então,
que a importância do papel do historiador e do jornalista no registro dos fatos
está intrinsecamente vinculada ao relato honesto dos fatos e da análise do
processo rigorosamente articulado ao contexto, ao cenário, de que fazem parte,
sob pena de sua honrada labor cair na canhestra reprodução da funesta
engenharia publicitária de Goebbels e de sua cínica receita de que uma mentira
repetida inúmeras vezes vira uma verdade irrefutável, como a que a grande mídia
vem nos oferecendo irresponsavelmente com a ajuda de grupos empresariais,
dirigentes políticos e altos funcionários públicos dos diferentes poderes da
República.
A seguir, gostaria trazer
um dado importante no tocante à evolução da análise da história: em meados do
século XIX, precisamente em 1848, numa das inúmeras crises vividas pelo
capitalismo desde seu nascimento, Marx e Engels [data vênia, senhores, não
confundir com Hegel, por favor!] explicitam, por meio do Manifesto Comunista, o
que até então era inconcebível, porque não convinha aos “donos” do poder: que a
História evolui por meio da luta de classes, isto é, a legítima disputa de
interesses antagônicos, demandas ou objetivos opostos, entre os que exploram e
os que são explorados, ou seja, entre os poderosos empresários e os
trabalhadores da cidade e do campo, no atual contexto. Obviamente, uma
democracia contemporânea tem como razão de ser levar esse legado em conta, pois
é inadmissível que o que é bom para as elites tenha que ser bom para as camadas
populares, em pleno século XXI!
Que fique destacado,
então, que a compreensão de que toda sociedade possui interesses legítimos
antagônicos é contemporânea e que a democracia brasileira precisa ter isso em
conta, superando a visão positivista anacrônica, e que promover inversão de
prioridades para atender aos autênticos interesses de amplas camadas da
população não só é patriótica, pois assegura a soberania do povo, e é
profundamente justa, em razão de promover políticas públicas afirmativas de
caráter distributivo e de reparação, há séculos postergadas ou simplesmente
ignoradas.
E antes que alguém diga
que a compreensão dialética da História foi derrotada com o fim do chamado
socialismo real (o soviético), gostaria de trazer à lembrança que o capitalismo
só deu certo apenas e tão-somente para menos de um por cento da humanidade
(repito: menos de 1% da população humana), deixando um rastro trágico de
poluição, miséria, pirataria, quadrilhas organizadas, confrarias ilícitas,
injustiças, escravidão, fome, genocídios, infanticídios, etnocídios e guerras,
centenas de milhares de guerras, ao longo de sua hegemonia, ascensão e
decadência, que vem se arrastando por quase cinco séculos.
Aliás, o capitalismo só
tem se mantido e se renovado por meio de saques, pilhagens, escravidão,
massacres e guerras. Preciso dar exemplos? Como, então, Portugal, Espanha,
Inglaterra, França e Holanda se tornaram potências no ocidente, senão depois
das Cruzadas, do mercantilismo, das grandes navegações, a colonização e o
comércio de pessoas escravizadas da África? Como a Europa matou a fome e
combateu a miséria senão com a batata andina (que virou inglesa), o chocolate
asteca (que virou suíço), o milho e o tomate, a mandioca e o abacate, todos da
América? Em nome da fé, levaram a opressão aos povos originários da América,
África, Ásia e Oceania, impunemente: e como os mouros (árabes) é que são os
atrasados e intolerantes, quando entregaram de bandeja todo o conhecimento
existente na Antiguidade Clássica, permitindo o Renascimento ocidental? Em caso
de dúvida, então como explicar o apogeu cultural, antes do fim da Idade Média,
da Península Ibérica, cujos idiomas, culturas e religião cristã e a proteção
dos judeus sefarditas foram mantidos durante a ocupação dos mouros, de
trezentos anos em Portugal e de oitocentos anos na Espanha, diferentemente da
colonização eurocêntrica genocida em todos os territórios colonizados, seja por
Portugal e a Espanha, ou Inglaterra, França, Holanda e Turquia?
Se, por um lado, a
guerra cumpre um nefasto objetivo de extermínio de populações indesejáveis,
serve, por outro lado, para desovar estoque de arsenais de material bélico em
processo de obsolescência e obter um lucro desavergonhado com a morte de populações
indefesas. Ou o, então, que foram, entre outras, as guerras da Crimeia, do
Ópio, as Napoleônicas, da Secessão, da Tríplice Aliança, do Pacífico, do
Panamá, de Porto Rico, da Etiópia, as Italianas, a Franco-Prussiana, do Acre,
Primeira Guerra Mundial, do Chaco, da China, Segunda Guerra Mundial, da Coreia,
do Camboja, do Vietnã, da Palestina, da Argélia, do Kuwait, dos Seis Dias, de
Guatemala e Honduras, da Biafra, do Yom Kipur, do Líbano, da Eritreia,
Irã-Iraque, do Sudão, do Iraque, do Afeganistão, da Bósnia-Herzegovina, da
Líbia, da Síria, do Iêmen e mais recentemente da Ucrânia?
Por outra parte, como
explicar o acesso de verdadeiros arsenais de armas com sofisticada tecnologia por
organizações criminosas e grupos paramilitares e/ou terroristas se as poucas
indústrias de armamento bélico sofrem rigoroso controle das potências militares
ocidentais? Logicamente, porque há um mercado negro abastecido criteriosamente
pelos próprios falsos paladinos da civilização e do progresso, dentro de uma
estratégia em que o lucro desse comércio macabro coaduna com o abominável
propósito de deixar espalhar a guerra para atender aos mesmos propósitos
acordados desde os tempos de Thomas Malthus e sua teoria insana de entender
como “obstáculos positivos” para o crescimento da humanidade as guerras, a fome,
a desnutrição, as epidemias, os flagelos naturais, as doenças e as pragas, por
meio do aumento das taxas de mortalidade – cujos seguidores contemporâneos são
suspeitos de estarem empenhados no desenvolvimento de projetos macabros dessa
índole em pleno século XXI (em que epidemias causadas pelo ebola, zika, AIDS e
dengue, para muitos estudiosos latino-americanos não deixam de ter certa
mãozinha do “grande irmão do norte” e seus aliados terroristas por todos os
cantos do planeta).
Recorreremos, agora, ao
dado observado providencialmente pela Professora Elisa: tal qual a “primavera
árabe”, a crise brasileira iniciada em junho de 2013 com as mobilizações contra
o aumento das passagens de ônibus, têm sua origem fora do Brasil, dentro da
nova estratégia sobejamente estudada pelo historiador e cientista político
brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira em seu livro “A Segunda Guerra Fria”,
citado, analisado e exposto pela Professora Elisa nesta oportunidade. Obviamente,
o governo brasileiro deixou de merecer o status de “amigo” a partir do momento
em que o ex-presidente Lula e a presidenta Dilma se distanciaram da área de
influência dos EUA, tendo se empenhado na articulação da UNASUL (ampliação do
MERCOSUL), e sobretudo dado decisivos passos para a consolidação dos BRICS
(bloco formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e depois do
banco de desenvolvimento dos BRICS, cuja implementação ficou inviabilizada no
início do segundo mandato da presidenta por conta das pressões políticas que
vêm enfrentando desde a sua posse, em janeiro de 2015.
Segundo a lógica desta
nova Guerra Fria, a Rússia e a China têm uma conotação muito mais perniciosa
que o Irã, a Coreia do Norte e Cuba para o império em decadência. Não por
acaso, a aproximação com Cuba e o Irã enquadra-se na estratégia da “dominação
de espectro total”, nestes tempos de dificuldades financeiras e militares
estadunidenses, em que a China é a maior credora dos EUA (em 2009, os chineses
detinham nada menos que mais de 740 bilhões de dólares em papéis da dívida
estadunidense) e a Rússia repeliu a estratagema imperial contra a Síria e sua
ânsia de controlar todo o Oriente Médio e o Golfo Pérsico, tendo criminosamente
causado um inimaginável fluxo migratório humano de proporções abismais,
tornando o Mediterrâneo palco de mortes de inocentes que, sete anos antes,
esbanjavam uma vida saudável com excelente formação universitária e um nível de
vida de fazer inveja a muitos europeus e estadunidenses.
É, pois, de Moniz
Bandeira a grande revelação, em 2009, dessa nova estratégia desenvolvida pelos
estrategistas do Pentágono, em seu desesperado esforço de prorrogar o fim do
império estadunidense: trata-se da estratégia da “dominação de espectro total”,
em que armas convencionais não têm mais razão de ser, pois a mídia e a internet
passaram a cumprir um papel muito mais eficaz na consecução de seus propósitos
inconfessáveis. Instituições como a USAID (do governo estadunidense), NED (do
Congresso dos Estados Unidos), Fundação Soros (do banqueiro bilionário George
Soros), entre outras, são determinantes nas iniciativas para a desestabilização
de governos que não se submetem às prioridades de interesse dos EUA, da OTAN e
da União Europeia – como os governos de esquerda na América do Sul, países
nacionalistas na África, do Oriente Médio e da Ásia, além daqueles que foram
rotulados como os do “eixo do mal”, numa lógica maniqueísta extemporânea e bizarra.
Numa entrevista para o
brilhante Jornalista Luís Nassif, Moniz Bandeira adverte que um império em
decadência é muito mais perigoso que um em ascensão: o que se encontra em
ascensão costuma ser no mínimo cordial, na ânsia de obter apoio em seu processo
de conquista hegemônica; já um império em decadência, como o romano nos tempos
de Nero, costuma ser extremamente imprevisível e caótico, pois nada tem a
perder em seu desesperado esforço por prorrogar sua dominação: ou se mantém
hegemônico ou que vença o caos, a barbárie – a tese nefasta do quanto pior
melhor.
Nesse sentido, cabe a
todo(a)s nós, que nos pretendemos educadore(a)s e formadore(a)s de opinião,
enfrentar de com muito denodo e habilidade esse cenário de caos e barbárie para
preparar cidadãos, seres humanos, para a vida, e não mão de obra barata e
consumidores manipuláveis para o mercado – cuja deusificação é responsável pela
corrupção entranhada nas instituições desde a gênese do capitalismo, em que sua
acumulação ocorreu por vias tortuosas, como a pirataria, o saque, a escravidão,
o comércio negreiro e os genocídios dos povos colonizados e oprimidos em nome
de uma civilização que tem sido “generosa” na produção e reprodução de atos de
barbárie que vêm culminando com os sucessivos holocaustos dos séculos XVI,
XVII, XVIII, XIX, XX e XXI.
Para concluir, trago à
lembrança das novas gerações a célebre anotação de Marx em suas observações
sobre as teses de Ludwig Feuerbach (filósofo hegeliano), em 1845 (três anos do
emblemático Manifesto de 1848): “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo
de diferentes formas; a questão, porém, é transformá-lo.” Em outras palavras, é
fundamental que promovamos os estudos, os debates, as reflexões, mas sem perder
de vista a atuação, a transformação inerente ao acúmulo, o que é a própria
práxis.
Corumbá
(MS), 31 de março de 2016.
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Composição n.4 -- Óleo sobre tela de Wega Nery (1912 -- 2007),
de 1953, reproduzido como arte de capa do livro Geopolítica e política exterior: Estados
Unidos, Brasil e América do Sul, de Moniz Bandeira, editado pela Fundação
Alexandre de Gusmão (Ministério das Relações Exteriores), 2009. Wega Nery Gomes
da Silva é uma artista plástica vanguardista do século XX, nascida em Corumbá
(MT) e falecida em Guarulhos (SP), onde morou seus últimos anos de vida. É mãe
do renomado Jornalista Tão Gomes Pinto, que trabalhou nas maiores redações do
Brasil entre as décadas de 1970 e 2000. Desconhecida pela maioria da população
sul-mato-grossense, o Jornalista Luiz Taques produziu um videodocumentário em
2006 com a última entrevista por ela concedida, da qual o Jornalista Dary Jr.,
outro corumbaense, participou. (Disponível em: <https://collections.mfah.org/art/detail/74726?returnUrl=%2Fart%2Fsearch%3Fculture%3DBrazilian%257CBritish%26page%3D7>. )
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