Em 1975, Mato Grosso do Sul sequer existia no
imaginário de seu povo, fruto que foi dos conchavos políticos dos últimos
estratagemas do regime de exceção, na ânsia de prolongar sua anacrônica existência.
Não que esta nova unidade da federação fosse relevante o suficiente para, por
si mesma, prorrogar o fim do estado de intolerância e arbítrio instalado em
abril de 1964. Mas, com sua bizarra criação (feita a toque de caixa, apenas
para justificar propósitos tacanhos), o partido de sustentação do regime – a ARENA
(depois PDS, e parte deste PFL, hoje DEM), de triste memória –, que já dava
sinais de ter chegado à exaustão, ganhara, além dos senadores “biônicos”
(“eleitos indiretamente”, pelos representantes do núcleo do poder ditatorial)
por meio do fechamento do Congresso Nacional e da decretação do espúrio “Pacote
de Abril”, três senadores obedientes às ordens do Planalto. Até por conta
disso, dá para entender por que este estado exala ainda o fedor dos porões da
ditadura...
Mas, referi-me à época em que tive o primeiro
contato com a obra do eterno Eduardo Galeano (1940 – 2015), a célebre (e,
obviamente, desdenhada pelos bajuladores do status
quo) “As veias abertas da América Latina”, cuja leitura deveria ter sido amplamente
recomendada não fosse o servilismo dos concebidos intelectuais puxa-sacos dos
pretensos “donos do mundo”. Então, era a chamada imprensa alternativa a que
rompia o silêncio do medo à censura e à tortura, veiculando corajosamente o
contraponto da unanimidade imposta pelos autoproclamados defensores dos valores
ocidentais (entre eles, a “democracia”, de fachada, tal qual hoje fazem,
acreditando-se originais). Esta coerência norteou toda a vida de Galeano e sua
talentosa obra, até o último momento de sua fecunda existência.
Fundador e diretor da emblemática revista argentina Crisis, fechada durante a sanguinária
ditadura de Rafael Videla, esse generoso Jornalista e Escritor (com letra
maiúscula) uruguaio foi determinante para a construção da identidade
latino-americana durante a segunda metade do século XX, ao lado de Gabriel García
Márquez, Mario Benedetti, Julio Cortázar, Pablo Neruda, Octavio Paz, Carlos Fuentes,
Pablo González Casanova, José Donoso, Guillermo Cabrera Infante, Augusto Roa
Bastos, Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, José Lezama Lima, Jorge Icaza, Miguel
Ángel Asturias, Juan Rulfo, Juan José Arreola, César Vallejo, Juan Carlos
Onetti, Arturo Uslar Pietri, Néstor Taboada Terán, Sergio Almaraz Paz, René
Zavaleta Mercado, Domingo Laíno, León Pomer, Jorge Amado, Newton Carlos, Neiva
Moreira, Darcy Ribeiro, Beatriz Bissio, Celso Furtado, Paulo Freire, Cláudio
Abramo, Tarso de Castro, Martha Alencar, Júlio José Chiavenatto, Moema Viezzer,
Paulo Cannabrava Filho, Fausto Wolf, Fernando Morais e Plínio Marcos. Acrescente-se,
por uma questão de lealdade histórica, o nome do desde sempre traíra-mor Mario
Vargas Llosa, que por pura vaidade (e as trinta moedas) acabou virando membro-serviçal
da casa real espanhola...
Por que, aliás, com tanta gente boa em meio a povos
altivos e de dignidade inquestionável, não foi suficiente encontrar mecanismos
de empoderamento das nações situadas entre o norte do México e a Terra do Fogo
(Argentina), e finalmente realizar o sonho de Simón Bolívar, da Pátria Grande,
torpedeada desde os tempos de Pedro I e Pedro II e seus aliados, súditos ou
sabujos da rainha Vitória e seu longevo e nefasto reinado? O próprio Galeano
explicara, no paradigmático “As veias abertas da América Latina”: enquanto houver,
em nossa explorada e traída América Latina, elites servis aos interesses coloniais
e imperiais – como as nossas bizarras burguesia, pequena-burguesia e medíocres
intelectuais –, preconceituosas e identificadas com os “donos do mundo”, nossos
povos continuarão submetidos à genocida hemorragia que nos debilita há mais de
cinco séculos.
Falecido quase um ano depois da morte do Amigo e
contemporâneo Gabriel García Márquez, Galeano se foi no mesmo dia em que outro
indignado com os “senhores do mundo” de ascendência germânica partiu, Günter
Grass. Pois os dois, nos últimos anos de vida, ousaram unir suas vozes contra o
artífice das guerras genocidas no Oriente Médio, o Estado de Israel: Grass, em
4 de abril de 2012, quando publicou seu poema indignado (acintosamente
combatido pelo lobby sionista em todo
o mundo) “O que deve ser dito” (http://www.cartamaior.com.br/ ?/Editoria/Internacional/O- poema-da-controversia/6/24977) ;
Galeano, em 15 de abril de 2014, o seu “Pouca Palestina resta. Pouco a pouco,
Israel está apagando-a do mapa” (www.cartamaior.com.br/?/ Editoria/Internacional/ Galeano-Pouca-Palestina-resta- Pouco-a-pouco-Israel-esta- apagando-a-do-mapa%0A/6/31420) .
Os dois morreram no fatídico 13 de abril, como que condenados por afrontar os (sic) “intocáveis” do século XXI.
[E justiça seja feita à valorosa memória de García Márquez, quase 32 anos antes
de sua partida para a eternidade, também fizera um emblemático artigo,
intitulado “Begin e Sharon: Prêmio Nobel da Morte”, a propósito do tristemente
célebre Massacre de Sabra e Chatila, publicado em 3 de outubro de 1982,
conforme registra o professor e editor árabe-argentino Saad Chedid em sua
homenagem póstuma ao imortal criador de Macondo de “Cem Anos de Solidão” e de
uma dezena de outras obras não menos originais (http://www.rebelion.org/ noticia.php?id=183653).]
Nas palavras de Galeano: “Quem lhe presenteou o
direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel
está a executar a matança em Gaza? O governo espanhol não pôde bombardear impunemente
o País Basco para acabar com a ETA, nem o governo britânico pôde arrasar
Irlanda para liquidar a IRA. Talvez a tragédia do Holocausto implique uma
apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde vem da potência 'manda chuva'
que tem em Israel o mais incondicional dos seus vassalos? O exército israelense,
o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe quem mata. Não mata por erro. Mata
por horror. As vítimas civis chamam-se danos colaterais, segundo o dicionário
de outras guerras imperiais.” (Tradução de Mariana Carneiro para o
Esquerda.net.)
Nos versos de Grass: “Agora, contudo, porque o meu país, acusado uma e
outra vez, rotineiramente, de crimes muito próprios, sem quaisquer precedentes,
vai entregar a Israel outro submarino cuja especialidade é dirigir ogivas
aniquiladoras para onde não ficou provada a existência de uma única bomba, se
bem que se queira instituir o medo como prova… digo o que deve ser dito. Por
que me calei até agora? Porque acreditava que a minha origem, marcada por um
estigma inapagável, me impedia de atribuir esse fato, como evidente, ao país de
Israel, ao qual estou unido e quero continuar a estar. Por que motivo só agora
digo, já velho e com a minha última tinta, que Israel, potência nuclear, coloca
em perigo uma paz mundial já de si frágil?” (Tradução de Baby Siqueira Abrão,
jornalista brasileira no Oriente Médio.)
Nas iluminadas palavras de García Márquez: “Lo
más increíble de todo es que Menahem Begin sea Premio Nobel de la Paz. Pero lo es sin remedio aunque ahora cueste trabajo
creerlo desde que le fue concedido en 1978, al mismo tiempo que a Anwar Sadat,
entonces presidente de Egipto, por haber suscripto un Acuerdo de Paz separado
de Camp David. Aquella determinación espectacular le costó a Sadat el repudio
inmediato de la comunidad árabe y más tarde le costó la vida. A Begin, en
cambio, le ha permitido la ejecución metódica de un proyecto estratégico que
aún no ha culminado, pero que hace pocos días propició la masacre bárbara de
más de un millar de palestinos refugiados en un campamento de Beirut. Si
existiera Premio Nobel de la Muerte, este año lo tendrían asegurado sin rivales
el mismo Menahem Begin, y su asesino profesional, el general Ariel Sharon. […]
No le temo al chantaje del antisemitismo. No le he temido nunca al chantaje del
anticomunismo profesional, que andan juntos y a veces sueltos, y siempre
haciendo estragos semejantes en este mundo desdichado.”
A despeito de tanto ardil dos poderosos anestesiando
as nossas consciências, que a ira santa desses iluminados encontre acolhida nos
corações e mentes das novas gerações e que elas sejam capazes de compreender o
legado de cada um deles.
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