ETERNAMENTE GUERREIRA
(EM MEMÓRIA DA PROFESSORA MARIA AUXILIADORA
FERREIRA)
Neste chuvoso fim-de-semana
chegou-nos a notícia do encantamento da querida Professora Maria Auxiliadora
Ferreira, incansável e altiva mestra de História desde os áridos tempos do
obscurantismo ditatorial. Desafiou e venceu grandes embates, mas na manhã deste
fatídico 17 de maio deixou de resistir, com o estoicismo que lhe era peculiar,
a um processo de metástase causado por um tumor naquela divina garganta que
irradiou saber e dignidade por décadas a fio.
Há exatos 40 anos tive a honra de
ser seu aluno por três anos no antigo Centro Educacional Júlia Gonçalves
Passarinho. Era março de 1974, quando a então jovem professora se apresentara
como titular de História Geral, esclarecendo que por razões curriculares
estabelecidas pela legislação vigente (a Lei 5.692/1971, de triste memória)
naquele ano a escola não ofereceria História do Brasil. Atitude corajosa, pois
naquele mês o regime de 1964 comemorava seu décimo ano de “desenvolvimento com
segurança” e todos os educandários do País tinham a obrigação de promover
concursos de redação e gincanas patrioteiras para manter o clima “democrático”
alardeado pelos estrategistas do “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Dona de um sorriso espontâneo que
explicitava o que não podia falar nos duros anos de chumbo, a Professora Maria Auxiliadora
poupara seus alunos do primeiro ano do então segundo grau da apologia forçada a
um momento da história bastante controverso mas que na época era inimaginável
esboçar-se qualquer questionamento. A inglória tarefa acabara ficando, em nossa
turma, para a titular de Organização Social e Política Brasileira, a também
querida Professora Elza, que no meio do ano se mudara para Cuiabá. Uma seleta
equipe de docentes dignos do maior reconhecimento, entre os quais os hoje
saudosos Professores Otaviano Gonçalves da Silveira Júnior, Augusto Alexandrino
dos Santos (Malah), Dilermando Luiz Ferra e Alcides dos Santos Mauro.
Instigante, generosa, reflexiva e
sobretudo libertária, a Professora Maria Auxiliadora dedicou os melhores dias
de sua Vida à formação das novas gerações na escola pública, como uma
verdadeira missionária, sem abrir mão de sua contagiante alegria e de suas
convicções inabaláveis por um mundo melhor. Ao lado de sua antecessora na
disciplina no antigo Ginásio, Professora Lourdes, ela despertou em todos os
seus alunos do ensino médio daquela geração o amor, o gosto, pela História (não
por acaso a maioria deles seguiu, em nível universitário, as ciências humanas
sem hesitação).
Com responsável discrição e
prudência, acompanhava o crescimento intelectual de seus alunos tal qual mãe a
velar pelos filhos. Ainda depois de nossa turma ter concluído o ensino médio em
1976, ela fazia questão de seguir, com a mesma atenção e generosidade, os
passos de seus ex-alunos – todos tratados como amigos, da maneira mais
respeitosa e cordial que já tivemos. Não posso esquecer que, ainda na década de
1970, ao lhe comunicar, diante da inexistência no estado do curso de
Jornalismo, sobre minha opção pelo curso de História em Campo Grande, o seu
entusiástico abraço de acolhida: “Isso mesmo, colega! Já conhecia sua vocação
para a História...”
Desde então não foram mais de dez
encontros de pouco menos de meia-hora com a agora saudosa Professora Maria Auxiliadora.
Em 2007, quando do funeral de uma tia sua, a igualmente guerreira Dona
Ernestina Araújo Ferreira, ficamos de nos rever com maior frequência, mas a
ironia da Vida nos manteve próximos apenas por esporádicos encontros fortuitos.
O último deles foi defronte a um supermercado, há pouco menos de um ano,
quando, em indisfarçável tom de despedida, ela disse estar se preparando para
fazer tratamento fora de Corumbá para combater um câncer na garganta, sempre
com aquele sorriso companheiro, instigante, apoiador...
Manteve até o derradeiro momento
de se despedir da Família, dos amigos e colegas a mesma discrição eloquente com
que pautou sua Vida e norteou seu sagrado ofício de Professora (com letra
maiúscula). A querida Professora Maria Auxiliadora fez, literalmente, História.
Agora, eternizada igual luz a abrir horizontes dos que virão depois de nós,
inspirará, entusiasmará e sobretudo conspirará (no melhor sentido) a juventude
à razão, ao compromisso e à evolução das sociedades humanas – hoje reféns dos
que se pretendem donos dos destinos da humanidade, mas que, a exemplo dos
impérios que desmoronaram ao longo da História, voltarão à insignificância da
qual jamais deveriam ter saído.
Até sempre, querida Professora Maria
Auxiliadora! Sua coerência e dedicação se multiplicarão nas mentes e corações
das novas gerações, para a felicidade da juventude que renasce todos os dias...
Schabib Hany
(Mensagem de 21 de maio de 2014)
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