O ofício de historiador e do professor
de História no contexto da globalização
Em primeiro lugar, quero agradecer ao Professor Doutor José Carlos
Ziliani, Amigo e Companheiro de décadas, pela honrosa oportunidade de
participar – diria que de forma lisonjeira – neste Encontro de Integração Dias
de História, aqui na UFGD, bem como, obviamente, aos demais organizadores,
sobretudo o(a)s Aluno(a)s que se empenharam na realização do evento. E
aproveito de, também, manifestar a alegria de reencontrar Amigos como os
Professores Doutores Paulo Roberto Cimó Queiroz e Eudes Leite, companheiros de
caminhada e de muita dignidade.
“Nada do que foi será de novo
do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará...” (Lulu Santos,
“Como uma onda”)
Inicio esta reflexão
coletiva lembrando algo que, em tempos do deus mercado e da ideologia da
competição desvairada e do sucesso a qualquer preço, que antes de sermos bons
profissionais precisamos ser acima de tudo bons cidadãos: não podemos ser
indiferentes ao que acontece em nosso entorno, em nossa volta, sobretudo quando
o nosso objeto de estudo, a nossa matéria-prima, é a história.
E como a História tem sido aviltada, sacrificada, nestes nada generosos
dias de globalização! Sobre isso, Josep Fontana (“A História depois do fim da
história”) adverte, Francis Fukuyama (aquele do “fim da história”) e Samuel
Huntington (o do “choque de civilizações”) não passam de dignos representantes
– ou melhor, mensageiros – dos pretensos “senhores do mundo” no pós-guerra fria,
com o desmoronamento da extinta União Soviética e da exaustão do chamado
socialismo real.
Peço licença aos historiadores e professores de História para dizer que,
como nunca, este sagrado ofício é dos mais relevantes, ainda mais na
atualidade. No entanto, a não casual “perda” de importância da ciência
histórica e de seu ofício fica explícita quando, numa paralisação, os professores
precisam passar meses em luta, enquanto categorias tão dignas mas, por certo,
menos estudadas, digamos assim, como padeiros e açougueiros, por exemplo, em um
ou dois dias conquistam as suas demandas, pois ninguém consegue ficar sem carne
ou o pão nosso de cada dia...
“Mudar é difícil, mas não impossível.”
(Paulo Freire)
A propósito, o
notável brasileiro chamado Paulo Freire, que deixou memoráveis obras para a
humanidade, por meio de seu emblemático método, nos ensinou a “aprender
ensinando e ensinar aprendendo”. Pois bem, o historiador ou educador que se
pretende como tal precisa ter isso bem claro: antes de pensarmos em superar
nosso companheiro de ofício (e não concorrente), temos que nos superar em
nossas próprias limitações, aí, sim, estaremos transpondo nossos próprios
limites – aí, sim, poderemos ser “vencedores” não de boca pra fora, mas em
nosso âmago.
Isto posto, vamos à questão central. Tal como a produção historiográfica,
o ensino de História, desde o início de sua oferta na escola brasileira, tem
estado submetido às condições econômicas, sociais, políticas e culturais
vigentes. O contexto histórico é, portanto, indissociável das condições materiais
e ideológicas para a completa compreensão do papel dos autores de livros
didáticos reconhecidos pela intelligentsia
e das propostas curriculares adotadas por determinada sociedade dentro de
determinado tempo e espaço. Não por acaso, durante o período de vigência do
regime civil-militar de 1964, o ensino de História sofreu um esvaziamento de
seu conteúdo (com a pulverização de disciplinas correlatas de viés ideológico
como Educação Moral e Cívica – EMC –, Organização Social e Política Brasileira
– OSPB – e Estudos Sociais), própria das motivações politicoideológicas que
nortearam os sucessivos governos de inspiração conservadora, no auge, aliás, da
Guerra Fria.
“É que narciso acha feio tudo
que não é espelho...”
(Caetano Veloso, “Sampa”)
Não é outra a nossa
pretensão senão partilhar de uma releitura do material didático e do conjunto
de normas emanadas pelo gestor nacional de educação e do sistema nacional de
ensino. Para isso, é necessário revisitar o processo histórico protagonizado
pela sociedade brasileira, os avanços e recuos ocorridos ao longo da segunda
metade do século XX, período em que se experimenta a grande transformação
decorrente da industrialização promovida durante a ditadura de Getúlio Vargas,
seja no contexto econômico, social, político e cultural, e seus impactos no
campo da educação.
Condicionada ao seu contexto histórico, a oferta da disciplina de
História na escola brasileira, na primeira metade do século XX, estava muito
direcionada para a afirmação da nacionalidade, dos valores republicanos e do
culto à brasilidade. Então, a tônica era a utilização maximizada do papel dos
personagens históricos, como paradigmáticos, para a formação do educando.
Nos anos de 1960, auge das grandes reformas do governo João Goulart, a
nova perspectiva da História ganha maior visibilidade, consoante ao contexto
político da época. Então ocorre verdadeira revolução na historiografia, com o
apoio das instituições criadas pelo Ministério da Educação e Cultura, e há um
salto ao serem propostos novos conceitos no livro didático: a história como
processo, e não mais como culto aos vultos pátrios ou como instrumento de
valorização da nacionalidade. Era o ápice da Guerra Fria, em que as duas
superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos e União
Soviética) disputavam a hegemonia politicoideológica do Hemisfério Sul, do qual
o Brasil sempre foi tido como uma potência regional importante.
O golpe militar de 1964 causa ao ensino de História um retrocesso
indisfarçável: a cassação dos coordenadores da política educacional do governo
Goulart; a restrição imposta a todas as atividades educativoculturais durante o
período mais crítico do regime; a instituição das reformas do ensino universitário,
médio e fundamental, resultantes do famigerado Acordo MEC-Usaid; o esvaziamento
do conteúdo de História e Geografia, e o surgimento de disciplinas como Estudos
Sociais, Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Educação Moral e
Cívica (EMC), Educação Artística e Programa de Saúde, além da disciplina Estudo
de Problemas Brasileiros (EPB) em nível universitário.
“A História é um carro alegre,
cheio de um povo contente, que atropela indiferente aquele que o tentar parar.”
(Pablo Milanés e Chico Buarque)
Com o fim do regime civil-militar,
em 1985, o primeiro governo civil promoveu profunda reforma educacional, que
ganhou corpo com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a aprovação da
Lei Federal nº. 9.294/1996, cujos debates ganharam maior dimensão por conta da
hegemonia atingida pelo neoliberalismo pós-Consenso de Washington e do fim da
bipolaridade da época da Guerra Fria. Sob a égide de um planeta dominado pela
doutrina do mercado, as conquistas sociais pós-1985 no Brasil começam a
arrefecer e a sofrer a iminente ameaça de serem extintas, sobretudo no campo da
Educação e das demais áreas sociais.
Em um levantamento, realizado no primeiro semestre de 2014, com os meus
alunos na disciplina Educação das Relações Etnicorraciais, constatamos que os
autores adotados durante os anos de chumbo – Joaquim Silva, em História do
Brasil do Programa de Admissão; Antônio
José Borges Hermida, em Compêndio de
História do Brasil; Victor Mussumeci, em História do Brasil; José Hermógenes de Andrade Filho, em Iniciação à Nossa História, e Armando
Souto Maior, em História do Brasil –,
além de reproduzir o discurso oficial do regime, prestaram o desserviço de
engendrar nos inocentes alunos do ensino fundamental e médio de várias gerações
uma bizarra representação da população brasileira, bem ao gosto dos anacrônicos
dos interesses coloniais, realimentados injustificavelmente.
Quando foi restabelecida a normalidade institucional, mesmo sob a
vigência do arcabouço jurídico oriundo do regime de arbítrio – tais como a Lei
Federal nº 5.540/1969 (conhecida como a Lei da Reforma Universitária) e a Lei
Federal nº 5.692/1971 (responsável pela adoção do ensino profissionalizante, na
perspectiva do legado da educação oferecida pelos Estados Unidos no pós-guerra
de 1945) –, o primeiro governo civil se preocupou em instituir normas
curriculares, ainda que transitórias, capazes de oferecer garantias mínimas de
um ensino menos contaminado pelo ranço da Doutrina da Segurança Nacional, sobre
a qual se fundamentara o regime instituído em 1964.
Contraditoriamente, tão logo foi promulgada a Constituição Federal de
1988 (a Constituição Cidadã), no
momento em que o Brasil conquista a plenitude da vida democrática, o mundo
passou por uma avalanche política decorrente da queda do Muro de Berlim e da
vitória do conservadorismo Reagan-Tatcher, consolidado com o chamado Consenso
de Washington (1989), fato que promoveu a chamada onda neoliberal que assola as
sociedades contemporâneas, no contexto da globalização, com raros processos de
autonomia, geralmente interrompidos com a mesma truculência do período
colonial, de triste memória.
“Teremos que insistir na
história dos homens, porque quase toda a ideologia se reduz ou a uma falsa
concepção da história, ou a uma abstração da mesma. A própria ideologia não é
mais do que uma das partes da história.”
(Karl Marx e Friedrich Engels,
“A ideologia alemã”)
Na primeira metade
do século XX, o ensino da disciplina, atrelado durante décadas a autores como
Joaquim Silva e Antônio José Borges Hermida, estava muito focado para a
afirmação da nacionalidade, dos valores republicanos, do culto à brasilidade,
para o que era indispensável a maximização do papel desempenhado por certos
personagens históricos do Brasil, até como exemplificação, como paradigma, para
a formação do educando – função, aliás, ainda recorrente em muitos
historiadores promovidos pelo mercado editorial, na ânsia de dar vazão à
produção livreira nacional.
A despeito da ditadura de Getúlio Vargas, de perfil fascistoide (por
conta da influência dos integralistas de Plínio Salgado), em fins da década de
1930 e meados dos anos 1940, foram muitos os intelectuais que contribuíram para
a formulação de novos conceitos inclusive na área de História, como Monteiro
Lobato e sua luta pelo desenvolvimento de um mercado editorial nacional (além
de sua memorável campanha pelo petróleo brasileiro e apesar de sua declarada
simpatia pela eugenia), Graciliano Ramos e sua luta pela preservação da memória
e do patrimônio cultural nacionais (graças a ele, a criação do então Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Barbosa Lima Sobrinho e sua luta pela
liberdade de pensamento e de imprensa, Oscar Niemeyer e sua luta pela criação
de uma escola nacional de arquitetura (além da vasta obra de vanguarda que
influenciou grandes arquitetos em todo o mundo) e Anísio Teixeira e sua luta
pela escola pública de qualidade no Brasil. E no campo da historiografia
nacional, sem dúvida, os importantes aportes de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda e de Caio Prado Júnior.
No pós-guerra de 1945, com a deposição de Vargas, é convocada uma Assembleia
Constituinte, que promulga a Constituição Federal de 1946, com perfil
liberal-progressista e de inédita amplitude democrática institucional – é na
verdade a primeira carta magna do país que se ateve à educação (antes, somente
a de 1934, recusada por Vargas). Por conta das inovações introduzidas no texto
legal, o parlamento somente em 1961, treze anos depois de ter sido enviado o
projeto de lei pelo Executivo, aprovou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei Federal nº. 4.024/1961, com extraordinárias conquistas, e depois
de intensas disputas entre estatistas e privatistas.
Considerada marco legal da política educacional
brasileira, a referida lei apresenta estas características: maior autonomia aos
órgãos estaduais, diminuindo a centralização do poder no MEC; regulamenta a
existência dos Conselhos Estaduais de Educação e do Conselho Federal de
Educação (depois denominado Conselho Nacional de Educação); garante o empenho
de 12% do orçamento da União e 20% dos municípios com a educação; dinheiro
público não exclusivo às instituições de ensino públicas; obrigatoriedade de
matrícula nos quatro anos do ensino primário; formação do professor para o
ensino primário no ensino normal de grau ginasial ou colegial; formação do
professor para o ensino médio nos cursos de nível superior; ano letivo de 180
dias; ensino religioso facultativo, além de permitir o ensino experimental.
É no início da década de 1960, auge das grandes reformas do governo do
presidente João Goulart, que a nova perspectiva da História ganha maior visibilidade,
em consonância com o contexto político da época – então, Nélson Werneck Sodré,
Luiz Werneck Vianna, Edgard Carone, Emília Viotti da Costa, entre outros não
menos importantes, promovem verdadeira revolução na historiografia e com o
apoio das novas instituições criadas no âmbito do Ministério da Educação e
Cultura (MEC) dão um salto ao propor novos conceitos consignados no livro
didático: a história como processo, e não mais como culto aos vultos pátrios ou
como reles instrumento de valorização da nacionalidade.
Isso ocorria no ápice da chamada Guerra Fria, entre as duas
superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial – Estados Unidos e União
Soviética –, que disputavam a hegemonia politicoideológica do Hemisfério Sul,
do qual o Brasil sempre foi uma potência regional importante. Como nunca, a
disputa ideológica esteve em franca ascensão, ainda mais na escola, na academia
e na produção editorial, com expoentes de grande formação – com destaque, em
todos os matizes, para intelectuais como Gustavo Corção (ultraconservador),
Gilberto Freyre e Hélio Jaguaribe (conservadores), Pedro Calmon, Austragésilo
de Athayde e Sobral Pinto (liberais), Alceu de Amoroso Lima e Sérgio Buarque de
Holanda (progressistas), Darcy Ribeiro e Celso Furtado (da esquerda nacional) e
Paulo Freire, Milton Santos, Josué de Castro, Caio Prado Júnior, Nelson Werneck
Sodré, Luiz Werneck Viana, Florestan Fernandes e Wladimir Pomar (da esquerda
engajada).
Foi um período de muita fecundidade intelectual e de grandes projetos
efetivados para mudar o perfil da sociedade brasileira: depois do esforço
redobrado do então ditador Getúlio Vargas de industrializar o Brasil,
finalmente no início da segunda metade do século XX o país deixava de ser uma
sociedade rural com base na monocultura de exportação (o café) e passava a
competir com países latinoamericanos como a Argentina, o Chile e o México o
mercado industrial de base – siderúrgicas, metalúrgicas, automotivas e
eletroeletrônicas com respeitável nível tecnológico. Daí a diversidade de correntes
de pensamento, correspondendo com o então incipiente cosmopolitismo brasileiro,
como com heterogêneo caldo de miscigenação étnica, cultural, ideológica,
política, filosófica e religiosa: a cultura brasileira começava a merecer o
respeito das demais comunidades científicas da América Latina, do Ocidente e do
Oriente.
“A maneira como formulamos ou representamos o passado molda
nossa compreensão do presente.” (Edward Said, “Imperialismo e cultura”)
Contudo, foi um
período, do mesmo modo, efêmero. Com a implantação do regime de exceção instalado
pelos golpistas de 1964, o ensino de História sofreu um retrocesso
considerável: a cassação dos direitos políticos de intelectuais que coordenavam
a nova política educacional do governo federal e a restrição imposta a todas as
atividades educativoculturais durante o período mais crítico do regime – entre
1968 e 1973, quando foram instituídas as reformas do ensino universitário,
médio e fundamental (com a adoção da Lei Federal nº. 5.540/1969 e da Lei
Federal nº. 5.692/1971, resultantes do Acordo MEC-Usaid, isto é, entre o gestor
nacional da educação e a Agência Estadunidense de Ajuda ao Desenvolvimento
Internacional) e esvaziado o conteúdo de História e Geografia, fazendo surgir
disciplinas como Estudos Sociais, Organização Social e Política Brasileira
(OSPB), Educação Moral e Cívica (EMC), Educação Artística, Educação Física e
Programa de Saúde, além da disciplina Estudo de Problemas Brasileiros (EPB) em
nível universitário.
As principais características da Lei Federal nº. 5.692/1971 são: núcleo
comum para o currículo de primeiro e segundo graus e uma parte diversificada
por causa das peculiaridades locais; inclusão da Educação Moral e Cívica,
Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde como matérias
obrigatórias do currículo, além do ensino religioso facultativo; ano letivo de
180 dias; ensino de primeiro grau obrigatório dos 7 aos 14 anos; educação à
distância como possível modalidade do ensino supletivo; formação preferencial
do professor para o ensino de primeiro grau, da 1ª à 4ª séries, em habilitação
específica no segundo grau; formação preferencial do professor para o ensino de
primeiro e segundo grau em curso de nível superior ao nível de graduação;
formação preferencial dos especialistas da educação em curso superior de
graduação ou pós-graduação; dinheiro público não exclusivo às instituições de
ensino públicas; os municípios devem gastar 20% de seu orçamento com educação,
não prevê dotação orçamentária para a União ou os estados; progressiva
substituição do ensino de segundo grau gratuito por sistema de bolsas com
restituição, e permite o ensino experimental.
Foram 21 anos de censura e resistência à produção historiográfica
nacional e ao ensino da História em todos os níveis. Num primeiro momento
(entre 1968 e 1973), autores de livros didáticos da disciplina como José
Hermógenes de Andrade Filho, Victor Mussumeci, Heródoto Barbeiro e Armando
Souto Maior deram o tom, bem ao gosto da Doutrina da Segurança Nacional, a
linha-mestra da ideologia de plantão. No contraponto, Raimundo Campos, Edgar
Carone, José Jobson Andrade Arruda, Maria Victória Benevides, Carlos Guilherme
Motta, Jacob Gorender e Júlio José Chiavenato, entre outros.
Esgotado o ciclo militar, resultante de um conjunto de fatores nacionais
e internacionais – inclusive a grande mobilização social intensificada em
meados da década de 1970 e que atingiu a culminância em meados dos anos de 1980
e na qual estudantes e professores desempenharam papel relevante, o
recém-eleito primeiro presidente civil, Tancredo Neves, assegurara, em janeiro
de 1985, uma profunda reforma educacional como um dos primeiros atos de seu
governo (inspirada no processo participativo das Reformas de Base pré-1964,
abortado com a imposição do regime de arbítrio). José Sarney, sucessor
imediato, viu-se na obrigação de resgatar o compromisso assumido, e, antes
mesmo de a Assembleia Constituinte elaborar a nova Constituição Federal, enviou
ao Congresso Nacional um conjunto de novas legislações pontuais que aos poucos
foram responsáveis pela mitigação dos malefícios do regime anterior.
Mas foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, cujos artigos constantes
do título da Ordem Social preconizam o ensino público e gratuito de qualidade,
com respectivo fundo para financiamento nas três esferas de governo e a
participação pública na sua gestão, que a educação no Brasil viveu uma guinada
qualitativa. Ao ser aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB), Lei Federal nº. 9.394/1996, depois de longo processo
de discussão dos diferentes setores da sociedade e de sucessivos avanços e
recuos sobre o parlamento nacional, é que foram de fato e de direito
consolidadas conquistas históricas.
Assim, na relatoria do então senador Darcy Ribeiro (ex-ministro de
Goulart responsável pela articulação política das Reformas de Base no
efervescente período pré-1964), a influência do ex-vice-presidente conservador
Marco Maciel e a pressão do ex-ministro da Educação de perfil neoliberal Paulo
Renato de Souza, a LDB ficou com as seguintes características: gestão
democrática do ensino público e progressiva autonomia pedagógica e
administrativa das unidades escolares; ensino fundamental obrigatório e
gratuito; carga horária mínima de oitocentas horas distribuídas em duzentos
dias na educação básica; núcleo comum para o currículo do ensino fundamental e
médio e uma parte diversificada em razão das peculiaridades locais; formação de
docentes para atuar na educação básica em curso de nível superior, sendo aceito
para a educação infantil e as quatro primeiras séries do fundamental formação
em curso Normal do
ensino médio; formação dos especialistas da educação em curso superior de
pedagogia ou pós-graduação; a obrigatoriedade do mínimo de 18% do orçamento
anual destinados à educação pela União, e de 25% dos orçamentos dos estados e
municípios na manutenção e desenvolvimento do ensino público; financiamento com
recursos públicos de escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, e
criação do
Plano Nacional de Educação.
As medidas do Consenso de Washington, de 1989, balizadoras do
neoliberalismo de Ronald Reagan e Margareth Thatcher (Estados Unidos e
Grã-Bretanha) em escala global, associadas ao fim da bipolaridade dos primeiros
50 anos do pós-guerra de 1945 (com o fim da União Soviética), fizeram com que o
processo de redemocratização do Brasil ficasse reduzido. Isso ficou evidente na
promulgação da LDB, cujo projeto discutido e votado por amplos setores da
sociedade acabou desfigurado, sobretudo, durante a implementação das políticas
públicas inerentes a esse texto legal.
O mercado ganhou maior ênfase em todas as atividades da sociedade
contemporânea, sobretudo na Educação. E a repercussão desse fenômeno no ensino
de História é imediata. Embora existisse um leque de correntes de pensamento da
Educação e da História, até por decorrência do elevado nível de liberdade
vivido no Brasil pós-1985, o grau de direcionamento exigido pelos setores
hegemônicos da sociedade não permite ao educador comprometido com uma concepção
inclusiva e transformadora do ensino de História.
“Os filósofos têm apenas
interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é
transformá-lo.” (Karl Marx, contraditando as teses de Feuerbach)
Se, por um lado, a
partir de 1989, há uma evidente quebra de paradigmas no pensamento histórico em
escala planetária, não por acaso teses como a do “fim da História”, de Francis
Fukuyama, e do “choque de civilizações”, de Samuel Huntington, ganham destaque
e um curioso (ou suspeito?) apoio por fundações estadunidenses que inundam o
mercado editorial mundial como que tais teses fossem absolutas, irrefutáveis,
conclusivas.
No entanto, pensadores contemporâneos de formação marxista, como Eric
Hobsbawm, Josep Fontana (estes dois historiadores), Noam Chomsky, Michel
Chossudovsky, Ignacy Sachs e Edward Said mantêm um intenso e fecundo debate
dentro e fora da academia, expondo a fragilidade dessas correntes midiáticas
sem qualquer transcendência acadêmica, fruto do ranço ideológico estadunidense.
Reverter o status quo, caracterizado pela preponderância
de valores ambíguos e voláteis como o próprio mercado, mediante adoção de novos
parâmetros didático-pedagógicos para propiciar ao educando papel de agente
social, protagonista da história presente, é um desafio digno de Freire (1992,
p. 92), que ponderou: “A compreensão
da história como possibilidade e não determinismo se sente incompatível com ele
e, por isso, o nega”.
Portanto, trata-se de,
enquanto educador e agente social inserido num contexto de interesses diversos
e até paradoxais, proporcionar ao educando a oportunidade de se enxergar nesse
contexto, ter apropriada a sua identidade, o seu protagonismo ou, melhor, o seu
pertencimento. Ainda mais quando a sociedade globalizada tende a eliminar – ignorar
acintosamente – as diferenças, impondo uma truculenta “uniformidade” de
autenticidade duvidosa, senão fictícia. Para
esse paradigmático pensador,
Somente quando os oprimidos
descobrem, nitidamente, o opressor e se engajam na luta organizada por sua
libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência”
com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente
intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja
a mero ativismo, mas esteja associadas a sério empenho de reflexão, para que
seja práxis. (FREIRE, 1987, p. 52).
Freire (1996, p. 136) também ensina, com sábias palavras de educador
visionário, que:
Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes
sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou a menina pobre, a
menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a
mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as
escuto, não posso falar com eles, mas a eles de cima para baixo. Sobretudo me
proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja,
recuso-me a escutá-lo ou escutá-la. O deferente não é o outro a merecer
respeito, é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.
Esta questão ganha
relevância diante do avassalador processo de globalização que se vive neste
início do século XXI, quando são desenvolvidos mecanismos, sobretudo no âmbito
da educação formal, em que a formação do aluno é destinada para a acirrada
competitividade determinada pelo mercado e a tecnologia é fator de exclusão
social planetária. Isto, aliás, foi antevisto de modo completo pelo educador
brasileiro que revolucionou a educação do século XX: “O discurso da
globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e
não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente, se
optamos, na verdade, por um mundo de gente.”
(FREIRE, 1996, p. 144-5).
No momento que se criam
instrumentos de protagonismo para o cidadão, no âmbito do Brasil, voltados para
a América Latina, é oportuna a reflexão de Freire (1996, p. 94-5) sobre a
obsessiva busca pela excelência no mercado, enquanto a discriminação, a
exclusão e a exploração continuam a fustigar os mais fracos:
Que excelência é essa que pouco ou quase nada luta
contra as discriminações do sexo, de classe, de raça, como se negar o
diferente, humilhá-lo ou ofendê-lo, menosprezá-lo, explorá-lo fosse um direito
sobre dos indivíduos ou das classes, ou das raças ou de um sexo em oposição de
poder sobre o outro. Que excelência é essa que registra nas estatísticas,
mornamente, os milhões de crianças e, se mais resistentes, conseguem
permanecer, logo do mundo se despedem.
“Está em nossas mãos recomeçar
o mundo outra vez.” (Tom Payne apud Josep Fontana)
A instigante
reflexão sobre a produção historiográfica, o ensino da História e o ofício de
professor permite um primeiro passo na perspectiva de uma docência desafiadora
e, sobretudo, transformadora, ainda mais em um momento da humanidade em que a
globalização impõe uma uniformidade prepotente. Até porque são indissociáveis a
produção historiográfica e o ensino da História com seu contexto histórico
(econômico, social, político e cultural), além dos impactos inerentes ao
inesgotável debate travado nessa temática.
Indiscutivelmente, a democracia vivida nos últimos 29 anos contribuiu
efetivamente para a perceptível evolução conceitual do tema e a diversidade de
propostas inovadoras, ainda que sob a égide nada generosa da imposição
mercadológica de correntes de pensamento com tendências totalitárias,
empobrecedoras do valor maior das ciências humanas – a inesgotável reflexão do
todo.
Assim, entende-se oportuna a provocação inserida nesta despretensiosa discussão,
inspirada na produção reflexiva de um dos maiores educadores do século XX,
Paulo Freire, ao lado de um historiador da estatura de Josep Fontana,
incansável contraponto do pensamento histórico pós-moderno. Compreendendo-se
que a história do homem não é determinista, e que, portanto, é possível
transformá-la com bases sólidas, éticas e legítimas, nas quais as novas
gerações se identifiquem e deixem sua apatia infindável para trás, é possível
ousar a práxis de uma História viva, ativa, desmistificadora e vívida.
Finalmente, a compreensão da evolução do processo didático-pedagógico
constitui-se em condição indispensável para dar legitimidade ao conteúdo, no
atual contexto curricular, e fazer da História um dos pilares da consciência
cidadã requerida neste conturbado tempo de sociedade globalizada, quando velhas
práticas corroem valores vitais para a sobrevivência da humanidade. Mais que
apenas bons profissionais para o mercado, o mundo prescinde de bons cidadãos
para a humanidade.
“Um mais um é sempre mais que
dois.”
(Beto Guedes, “O sal da Terra”)
Referências
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