Professor Otaviano, garimpador de talentos
Otaviano Gonçalves da Silveira Júnior. Era esse seu nome completo. Professor de Língua Portuguesa e Literatura. Em plena maturidade (aos 42 anos), procedente da capital de São Paulo, chegara a Corumbá, então estado de Mato Grosso, em 1974. No auge do período mais crítico da ditadura que se abatera sobre o Brasil e toda a América do Sul. Com sua jovem esposa, de aproximadamente 25 anos de idade, o Professor Otaviano chamava a atenção por sua desenvoltura, erudição e cordialidade. Eu o conheci aos 15 anos, no então Centro Educacional Júlia Gonçalves Passarinho (mais tarde Escola Estadual Júlia Gonçalves Passarinho, ou JGP), que distava apenas meia quadra de sua modesta casa, localizada na mesma rua da escola, defronte à sede provisória de assistência médica do então Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).
Dizem que era filho de um influente oficial da Polícia Militar de São Paulo (criada pelo regime militar, em substituição à Polícia do Exército, e executora do serviço repressivo institucional), coronel Otaviano Gonçalves da Silveira. Dizem também que fora diretor do Colégio Judaico de São Paulo no período anterior à sua saída da capital paulista. O fato é que se tratava de um profundo conhecedor das disciplinas que ministrava (Língua Portuguesa e Literatura), aliás, com bastante desenvoltura, a ponto de dispensar a adoção de livros didáticos, muito comum naquele período em que havia controle absoluto daquilo que era ensinado. O máximo que se permitia, para facilitar a vida dos alunos, preocupados com o vestibular, era a reprodução de um material que se assemelhava a uma apostila, de sua própria autoria, com um resumo esquemático dos temas que estava abordando em sala de aula.
Se ele era colaborador do regime ou simpatizante do sionismo, nunca deixou explícito e muito menos insinuou, nem agia como tal. O Professor Otaviano era, isso sim, generoso em seu ofício de professor. Além de árabe sem qualquer dissimulo, eu era declaradamente simpatizante do socialismo, posições que nunca me questionou nas diversas dissertações (redações escolares em que podíamos expressar nosso ponto de vista), muitas vezes elogiadas e lidas por ele para os colegas. Nos dois anos em que atuou em Corumbá e nos anos seguintes, que antecederam à instalação do novo estado (1979), em que troquei intensa correspondência com ele (ao ponto de enviar e receber três cartas por semana), era extremamente meticuloso nas questões idiomáticas, jamais tendo emitido qualquer juízo de valor sobre os temas que eu abordava, a despeito de minha despreocupada manifestação de pensamento (fosse sobre a questão do Oriente Médio, a Guerra Fria ou a situação da América Latina e do Brasil).
Além de ter proposto interpretação de poemas de Chico Buarque (“Roda Viva”) e Vinícius de Moraes (“Rosa de Hiroshima”), exaustivamente discutidos em sala de aula com total liberdade, o Professor Otaviano incentivou a organização de um jornal estudantil (o qual acabou ganhando a dimensão de meio interescolar), apesar da posição contrária do então diretor da escola, um medíocre vereador da Arena (partido de sustentação do regime) que mais tarde se afastara para tentar sua reeleição. A um reduzido grupo de alunos, com os quais tratava do jornal e de outras atividades extracurriculares, revelara que quando estudante fora revisor e repórter da Folha de S.Paulo, onde também trabalhava sua tia, a crítica de televisão Helena Silveira (titular da coluna “Helena Silveira vê TV”, na Folha Ilustrada).
Depois de ter lecionado na famosa escola campo-grandense MACE (Moderna Associação Campo-grandense de Ensino), ele foi chamado pelo então reitor da UEMT (Universidade Estadual de Mato Grosso), João Pereira da Rosa, para ser seu chefe de gabinete. Quando, em 1979, me mudei para Campo Grande, tendo trocado Letras por História, ele havia sido transferido para Dourados, onde assumira a direção do CEUD (Centro Universitário de Dourados). Nesse período eu perdi o contato com ele, pois enquanto eu dava vazão à ânsia juvenil de entrar para o movimento estudantil, ficara sabendo que ele, como diretor do CEUD, havia chamado a polícia para os estudantes do curso de Agronomia que, em greve, reivindicavam a contratação de professores para o curso. Isso, para mim, foi uma ducha de água fria.
Mas, acredito que em 1984, como repórter de um diário de Campo Grande, eu o procurara para que me desse informações relativas ao CCHS (Centro de Ciências Humanas e Sociais da agora UFMS, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), de cuja direção era titular, e aproveitamos de conversar rapidamente. Era fim do mandato do reitor Edgar Zardo e havia uma intensa articulação que culminou com a eleição do reitor Jair Madureira, que havia conseguido um amplo arco de alianças na Universidade Federal, reunindo professores da esquerda à direita, refletindo o momento que antecedeu à Nova República em nível nacional.
Algum tempo depois, acredito que em 1985, quando eu retornara a Corumbá como correspondente de outro diário de Campo Grande, encontrei-o na rua Frei Mariano, perto da avenida General Rondon. Então responsável pela Comunicação Social da UFMS, o Professor Otaviano estava em serviço e aproveitava as horas que antecediam o horário de partida do trem noturno para matar saudades de Corumbá e do imponente rio Paraguai. Eu estava em companhia da querida Amiga Sílvia Maria Costa Nicola, agrônoma, a primeira pesquisadora e primeira mestra da Embrapa Pantanal (à época CPAP, ou Centro de Pesquisas Agropecuárias do Pantanal), e conversáramos por alguns minutos. Ele estava cheio de planos para a Comunicação Social da UFMS, e eu lhe falara rapidamente dos projetos que me motivavam então. Foi o nosso diálogo derradeiro.
Uma década depois, soube por amigos que ele se aposentara por ter sofrido sérias lesões causadas por dois AVC (acidentes vasculares cerebrais), havendo ficado preso a uma cadeira de rodas. Havia sido visto por ex-colegas circulando solitário pelas ruas centrais da capital, motivo pelo qual fora socorrido, em fins de 1997, por sua Mãe e levado para morar com ela em São Paulo. Em 1999 permaneci alguns meses naquela cidade e tentei por todos os meios entrar em contato com o Professor Otaviano, mas não tive sucesso. Algum tempo depois, quando estava trabalhando em Campo Grande, tive a sorte de falar com o também querido Professor Altevir Alberton, compadre seu, e foi ele e a esposa que me deram a triste notícia de seu falecimento um ano antes (em 5 de junho de 1998), em São Paulo, aliás, meses antes de sua Mãe, que o cuidou até os últimos momentos de vida.
A única homenagem existente em Mato Grosso do Sul ao brilhante Professor Otaviano é a Escola Estadual Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Júnior, no Lar do Trabalhador, em Campo Grande. Na Universidade Federal, nada: nem na capital e muito menos em Corumbá, por onde chegou ao estado. Já passa da hora de resgatar a sua memória pelo seu generoso legado, independentemente de quaisquer divergências políticas ou ideológicas que possam ter ocorrido ao longo daquele período de embates intensos. O fato é que, mais que Professor (desses com letra maiúscula), foi um garimpador de talentos, que com muita generosidade soube lapidar sem exercer qualquer influência, em termos ideológicos, sobre os inúmeros alunos de orientou quase paternalmente.
Há pouco mais de três anos, construímos um blog, o “Alunos do Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Júnior” (http://alunosdoprofotaviano.b logspot.com.br/) para iniciar um movimento de resgate de sua memória. Decorrido todo esse tempo, retomo esta temática para “cutucar” a consciência adormecida de seus ex-alunos e amigos que deixou nesta terra de tanta ingratidão para que se faça algo em sua memória, pois quem esquece seus mestres não merece conhecer nem aquilo que recebeu daqueles cujos nomes sequer guardou em seu cérebro.
Ahmad Schabib Hany
(Mensagem de 6 de outubro de 2013)
Um comentário:
Mensagem da querida Amiga Sueli Soloaga, que me pediu para postá-la nos comentários:
Sou administradora do grupo "JGP ON-LINE" no Facebook e também abri um grupo no whatsapp dos Ex-alunos do JGP.
Fiquei muito triste de saber do triste final da vida do nosso tão querido professor de português Otaviano.
Muitas vezes ele foi e ainda é lembrado por nós. Quando ele começava a ditar a matéria, sempre tinha um retardatário que dizia: "Peraí, fessor!" E ele sempre respondia: "Tô perando."
Essa é uma das tantas lembranças boas que ele deixou para gente!!!!!!
Sueli Soloaga
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