quinta-feira, 15 de junho de 2006

MAIS QUE CONSERVAR O MEIO AMBIENTE, TRATA-SE DE PRESERVAR O ESTADO DE DIREITO

Mais que conservar o meio ambiente, trata-se de preservar o Estado de Direito

   

Schabib Hany (*)

Uma sociedade que se pretende democrática, baseada no princípio do convívio saudável entre a diversidade de interesses de seus inúmeros segmentos – muitas vezes antagônicos, mas nem por isso ilegítimos –, não pode abrir mão da estrutura jurídica do Estado de Direito, o qual, aliás, foi construído ao longo dos últimos séculos pelas sucessivas gerações que antecederam as contemporâneas.

Nesse sentido, a partir do Renascimento (processo histórico das sociedades ocidentais pelo qual se retomaram as significativas contribuições oriundas da Antigüidade Clássica, ao romper com o obscurantismo medieval), importantes pensadores do Ocidente resgataram o humanismo e seus valores universais – sobretudo o legado da convivência harmoniosa entre os contrários, pondo em xeque a intolerância feudal, que ainda teima em nortear os rumos da humanidade.

A despeito da expansão colonialista protagonizada pelas coroas portuguesa, espanhola, inglesa, francesa, holandesa e austro-húngara, é no auge do Iluminismo que se consolidam as idéias que dão as bases conceituais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em fins do século 18 (que trata dos direitos individuais, a primeira geração). E num processo evolutivo são acrescidas importantes contribuições, nos séculos 19 e 20 – quando são concebidos os direitos coletivos, de segunda geração –, que se transformam num marco histórico em 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova, em sua Assembléia-Geral, a Carta dos Direitos Humanos – a qual ganha maior dimensão com a inclusão de novos conceitos relativos aos direitos dos povos e da diversidade biológica e cultural, compiladas na Carta da Terra, em 1992, durante a realização, no Rio de Janeiro, da Cúpula da Terra, mais conhecida como Eco 92, cujo documento final ficou traduzido na Agenda 21.

Mais que mero protocolo de intenções, a Agenda 21 é um conjunto de novos conceitos e ações recomendados a todos os países-membro da ONU, a qual, no dizer do sociólogo americano Ignacy Sachs, em seu livro Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente (Editora Studio Nobel, São Paulo, 1993), “não foi um fim em si mesma; em vez disso, deve ser encarada como o início de um longo processo a ser percorrido mediante esforços e batalhas dos atores do desenvolvimento”. Cabe, portanto, aos respectivos governos nacionais, regionais e locais introduzir em suas políticas públicas novos parâmetros de desenvolvimento, levando em conta as cinco dimensões de sustentabilidade – social, econômica, ecológica, espacial e cultural.

No entanto, a partir da celebração do chamado Consenso de Washington, em 1989 – quando do início do desmoronamento do bloco soviético –, os sete países mais ricos do mundo capitalista decidiram desenvolver uma estratégia ousada na afirmação de sua hegemonia econômica, adotando o neoliberalismo em escala global – a chamada “globalização” –, as sociedades contemporâneas passaram a viver um dilema: a subordinação de sua estrutura jurídica às leis de mercado. Em outras palavras, na América Latina o Estado de Direito passou a ser corroído, de um lado, pelos cartéis e oligopólios transnacionais, e por outro, pelas quadrilhas do crime organizado, pois o recém-implantado regime democrático se revelou frágil perante as amplas camadas sociais nas garantias de direitos sociais e trabalhistas e no enfrentamento à expansão da miséria e do desemprego.

Assim, o ruidoso embate que tem como epicentro o projeto de implantação de indústria pesada no município de Corumbá (MS), no coração do Pantanal Mato-grossense, remete os cidadãos comprometidos com os reais interesses da sociedade a uma oportuna reflexão: detentor de uma extraordinária legislação ambiental, o Estado brasileiro pode transigir da legalidade em nome da geração de emprego e renda para uma população residente numa singular região do Planeta, cujos recursos naturais não renováveis têm um valor inestimável para toda a humanidade?

Qual o real custo-benefício sócio-ambiental dos projetos alardeados para a região, levando em consideração que o mercado impõe condições cada vez mais voláteis a toda iniciativa econômica, sujeita à própria sorte (a exemplo da crise que afeta a sojicultura, a pecuária e a avicultura, carros-chefe da economia do estado de Mato Grosso do Sul, vitimados pela especulação mercantil dos últimos meses)?

E a garantia de sustentabilidade desses megaprojetos, os quais envolvem elevados investimentos, em sua quase totalidade financiados por instituições públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou por instituições financeiras multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou o Banco Mundial (BIRD), dos quais o Estado brasileiro é membro e cujo aval é requerido nos casos de sediar projetos dessa magnitude?

Há de se observar também que, antes de se cair no discurso maniqueísta (do “bem” contra o “mal”), é preciso reunir dados jurídico-institucionais para compor o cenário local para a introdução de novos projetos de desenvolvimento, nos parâmetros do século 21, com ênfase às cinco dimensões do desenvolvimento sustentável, bem como a necessária observância ao Estatuto da Cidade, pelo qual toda cidade com mais de 50 mil habitantes é obrigada a construir o respectivo Plano Diretor do Município, além do que a administração estadual não pode deixar de realizar o Macrozoneamento Ecológico-econômico, nos termos da legislação pós-Agenda 21, como medidas preliminares para adoção de novos modelos de desenvolvimento.

Não é demais recordar que as três gerações dos Direitos Humanos (direitos individuais, sociais e econômicos e de solidariedade e meio ambiente) são complementares, embora apresentem, no cotidiano das sociedades hodiernas, aparentes conflitos entre os direitos individuais, coletivos e de solidariedade. Na realidade, a omissão do Estado, enquanto ente responsável pela aplicação estrita dos referidos direitos, induz os incautos a essa aparência, explorada de parte a parte pelos lados em conflito. Mais que a conservação da natureza, a preservação do Estado de Direito, construído nas últimas décadas com muito custo (inclusive com perda de vidas humanas) em toda a América Latina, implica na vigência do império da lei, sem o que a barbárie se instala no seio da sociedade, para o deleite das organizações criminosas que agem, inclusive, nas atividades políticas e econômicas, usando e abusando da fragilidade do tecido social, corroído por suas mazelas.

* É fundador e atual coordenador-executivo da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental sediada no coração do Pantanal (Corumbá, MS), e membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).

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