sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

SEU JORGE KATURCHI, EXEMPLO A SEGUIR...

SEU JORGE KATURCHI, EXEMPLO A SEGUIR...

Do alto de seus 94 anos bem vividos, o Senhor Jorge José Katurchi se preparou nesta sexta-feira, 29 de janeiro, para se vacinar. Mas qual não foi sua decepção ao saber que Corumbá ainda não tinha definidas a data e a estratégia de imunização para as pessoas maiores de 80 anos...

Cena de emocionar até os mais durões, como sempre me pretendi: o Senhor Jorge José Katurchi, 94 anos, o corumbaense por opção mais apaixonado pelo coração do Pantanal e da América do Sul, acordou às cinco horas da madrugada da última sexta-feira de janeiro para se preparar para o encontro com a vacina que imunizará a humanidade da pandemia de covid-19.

Testemunha partícipe das oito últimas décadas, o nonagenário mais informado e ativo da região pantaneira se sentiu frustrado quando se deparou com o fato de que Corumbá ainda não tinha data e estratégia definidas para o grupo de pessoas maiores de 80 anos. Ficou incrédulo, pois acompanhou toda a evolução das campanhas de vacinação ao longo do século XX, sobretudo a partir da década de 1970.

Seu Jorge Katurchi tem consciência de que seu gesto incentivará as pessoas hesitantes que duvidam da ciência por conta da sórdida campanha de desinformação nunca antes vista no País. Mais que mero gesto de ser vacinado, trata-se de uma sincera declaração de amor pelo povo generoso e acolhedor que o viu crescer, constituir Família, firmar-se como um dos mais antigos comerciantes da região e atuar como verdadeiro influenciador em sua amada Corumbá, sejam entidades filantropias, clubes de serviço, entidades de defesa de direitos ou espaços públicos não estatais.

Viúvo há quase cinco anos, Seu Jorge chegou no vapor Argentina, aos 5 anos, em 1932, em companhia de sua progenitora, Dona Amélia Abraham Katurchi, e sua irmã mais velha, a saudosa Dona Rosa Maria Katurchi, uma segunda Mãe para ele, para reencontrar seu Pai, Seu José Katurchi. Ele não se cansa de dizer que é muito feliz por ter contado com tantas mulheres fortes e solidárias, como a saudosa Companheira de mais de 60 anos, a querida Dona Anna Thereza de Copacabana Maldonado Katurchi, e a sua única Filha, a Procuradora de Justiça Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner, primeira Corregedora-geral do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Aluno e Amigo de emblemáticos salesianos, como Dom Miguel Alagna e o saudoso Padre Ernesto Sassida, Seu Jorge herdou de seus Pais uma longa Amizade com religiosos católicos, ainda que seu José Katurchi fosse membro da Igreja Cristã Ortodoxa Síria, cujo Patriarca, em fins da década de 1950, esteve visitando a outrora pujante Corumbá da primeira metade do século XX. Ainda jovem, ele participou da criação da União dos Ex-alunos de Dom Bosco (UEDB) e, quatro décadas depois, do Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), quando abriu mão de ser seu primeiro presidente para indicar o falecido ex-prefeito Ruiter Cunha de Oliveira.

Além de empresário coroado pelo êxito, tendo sido representante regional e para a Bolívia de empresas como a 3M do Brasil, a Cia. Fermentos Fleischmann & Royal S/A e a Cia. Vidraria Santa Marina Ltda., Seu Jorge canalizou seu prestígio junto à população local e autoridades estaduais e federais no voluntariado em entidades como a Sociedade de Beneficência Corumbaense (mantenedora do Hospital de Caridade), da qual foi vice-presidente em seus áureos tempos, e do Lions Clube de Corumbá, cuja gestão mereceu o reconhecimento como a melhor gestão do clube entre os países de língua portuguesa.

No entanto, hoje ele se sente realizado ao dizer que, como coordenador-adjunto do Pacto Pela Cidadania (sendo titular o saudoso Padre Pasquale Forin), obteve do então governador José Orcírio Miranda dos Santos a liberação de recursos financeiros para a execução do projeto do Cristo Rei do Pantanal pela artista plástica e escultora Izulina Gomes Xavier. Como o Pacto Pela Cidadania é um espaço público e não dispõe de CNPJ, pediu ao seu colega de clube e então presidente, o hoje também saudoso Carlos Alberto Machado, a intermediação dos recursos para um dos maiores atrativos turísticos da fronteira dos últimos 15 anos.

Pois esse encantador jovem nonagenário faz da imunização um manifesto de cidadania. Mais um gesto espontâneo de Seu Jorge Katurchi, do alto de seus quase 100 anos, para reiterar a inesgotável gratidão de imigrante acolhido pelo generoso povo corumbaense em uma sincera história de amor que se encontra na terceira geração. Bem ao seu modo charmoso, Seu Jorge faz da vacina uma declaração de amor pela Vida, pelo próximo e pelo progresso da humanidade, do qual a ciência é a mola propulsora.

Ahmad Schabib Hany

PS: No final da tarde da sexta-feira a Secretaria Municipal de Saúde divulgou uma nota dando conta da vacinação, neste sábado, 30 de janeiro, de pessoas maiores de 89 anos, pelo sistema drive thru, em local situado ao longo da Avenida General Rondon, das 8h ao meio-dia. Seu Jorge estará, por certo, para dar seu testemunho participante e exemplar em mais um gesto eloquente de afirmação de sua cidadania universal.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O QUE HÁ POR TRÁS DO SOMBRIO REINO DO LEITE CONDENSADO

 O QUE HÁ POR TRÁS DO SOMBRIO REINO DO LEITE CONDENSADO

 

Pobre país cujas elites recalcadas pariram um monstrengo e hoje fingem surpreender-se com seu bizarro comportamento de predador compulsivo...

Embora indignante, a escandalosa prática de “corrupção formiga” (em todos os sentidos) em que se desvia dinheiro público em, digamos, “conta-gotas” (sic) não surpreende nem os mais desavisados habitantes do sombrio reino do leite condensado.

Mas, claro, as elites dir-se-ão estupefatas. Logo elas que, por puro recalque anacrônico que as remeteu ao século XIX (auge da escravatura), cravaram o punhal traiçoeiro na frágil, mas efetiva, democracia conquistada por generosas gerações ao longo de décadas no século XX.

Cínicas, insistirão em seu mantra de que “fizeram esse sacrifício” para salvar o país da anarquia iminente - como que anarquia fosse dar voz e vez aos milhões de brasileiros que não só engordaram suas fortunas ao aquecer o mercado interno para, pela primeira vez na história, ter acesso a bens de consumo antes produzidos para o exterior, dentro da ignóbil lógica do “exportar é o que importa”.

Retornando, agora, ao indigesto escândalo da compra em mais de 15 milhões de reais de latas de leite condensado por 162 reais a unidade, nada surpreende vindo de onde vem.

Ainda que não fosse de conhecimento público e notório o esquema de “rachadinhas” que enriqueceu a famigerada dinastia dos desatinados membros do baixo clero parlamentar desde o primeiro quinquênio posterior à promulgação da Constituição Cidadã (contra a qual, aliás, a horda de patéticos saudosistas do regime de arbítrio se levantou inúmeras vezes), a reiterada prática do rola-bosta é por demais reconhecida em todos os meios.

Por questão de princípio e para não ofender os roedores que prestam relevantes serviços dentro da cadeia alimentar (que por quase um século tiveram na figura emblemática de Mickey Mouse o “american way of life”), usaremos o termo coprófagos, alusivo aos chamados come-bosta que infestam todos os quadrantes do planeta, esta conduta predadora, própria de monstrengos saídos da caixa de pandora da casa grande.

Já dizia o arguto Doutor Ulysses Guimarães que as hienas sorriem para as suas presas enquanto selam seus destinos sem qualquer compaixão. Desde que os pseudodemocratas liderados por Aécio Neves, Geraldo Alckmin, José Serra e Roberto Freire decidiram deter o processo democrático em 2016 - na ânsia de encontrar um atalho para o tão sonhado retorno às gordas tetas do erário -, a imersão da então promissora potência pacifista ao sombrio reino medieval era iminente.

Miguel Michel Temer Lulia não vem ao caso; é a mais exata tradução da vil e lúgubre pinguela do pandemônio, mordomo mefistofélico. O monstro mesmo veio via eleitoral, feito um voraz e sórdido estupro ao Estado Democrático de Direito. Desde o fatídico dia em que seu sorriso de lagarto matreiro veio à tona em uma mórbida sessão de pajelança neopentecostal liderada por Magno Malta, depois regada a café passado pelo anfitrião com pãozinho de sal e, pasmem, leite condensado (sic), era previsível a sucessão de idas e vindas rumo a lugar algum, ao nada - não, rumo às centenas de milhares de vidas ceifadas por genocidas ávidos, feito “papa-defuntos”...

A bem da verdade, em Nioaque, segundo o genial Professor Altevir, ele não gozava de muita amizade e seu apelido entre os desafetos era “Conde Nado”, coisa que até hoje jura que é intriga. Segundo esse Amigo Professor, desde então era chegado ao comércio formiga, época de ouro dos videocassetes “quatro cabeças”.

Conhecidíssimo ele já era. Sobretudo para essas elites “cançadas” (com “c” cedilhado, mesmo) dos aeroportos lotados, os shoppings entulhados de “povinho” e, pior, com as domésticas cheias de direitos, tendo uma lei só para elas... Isso é demais na cabeça de penico de uma elite que vive de um passado que, a rigor, nunca teve, pois, no tempo do império, vivia das migalhas da corte. Ou, como se costuma dizer, “come farofa e arrota caviar”!

Se não foi golpe mesmo, que o Tribunal de Contas da União, tão implacável com Dilma Rousseff, cumpra com sua missão: além do leite condensado, há cloroquina e muitas outras “inas” a serem rastreadas, e que o Congresso Nacional pare de brincar com o Estado Democrático de Direito que assegurou esse superemprego aos seus mais de 500 membros e fiscalize de fato e de direito os evidentes desvios de função cometidos inúmeras vezes pelos declaradamente inimigos da Democracia, esta construída com o sacrifício de muitas vidas ao longo do século passado.

Afinal, a história aboliu a política do café com leite há quase um século, e as gordas tetas do erário produzem tudo, menos leite condensado...

Ahmad Schabib Hany

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

ATÉ SEMPRE, PADRE PASCOAL!

 


ATÉ SEMPRE, PADRE PASCOAL!

 

Mais que Sacerdote (com letra maiúscula) dedicado e laborioso, foi um cidadão do mundo à frente de seu tempo, pautado pela justiça social, a humildade, o amor ao próximo e a solidariedade. Um Mestre que fazia questão de aprender com seus companheiros de diferentes jornadas com a mesma dignidade com que exercia sua vocação pastoral, sem fazer distinção de classe social, grau de instrução, nacionalidade, etnia, cor da pele, denominação religiosa ou convicção filosófica ou ideológica...

Padre Pasquale Forin. Esse era o nome de batismo do Missionário Salesiano de estatura física relativamente pequena, mas de dimensão humana, ética e espiritual do tamanho de seu coração, generosidade e abnegação. Chamado simplesmente de Padre Pascoal, foi, sem dúvida, um Cristão ao pé da letra, para honra e felicidade dos que tiveram a sorte de privar de seu convívio e Amizade em sua fecunda existência.

Em seus pouco mais de 32 anos de permanência em Corumbá, como titular da Paróquia de São João Bosco ou como Vigário-Geral da Diocese de Santa Cruz de Corumbá, Padre Pascoal se dedicou com uma entrega impressionante ao povo humilde, aos mais fracos e excluídos sem perder de vista sua vocação pastoral. Com a extraordinária experiência de ter realizado em Campo Grande uma série de iniciativas, entre elas dois marcos da cidadania no estado: o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Marçal de Souza Tupã-i (CDDHMS), com o saudoso Doutor Ricardo Brandão, e o Centro de Documentação e Apoio aos Movimentos Populares (CEDAMPO), com o incansável Haroldo Borralho.

Em Corumbá, sua vocação missionária chegou antes dos hipertrofiados órgãos públicos e empresas privadas remuneradas a peso de ouro... Ao contrário de autoridades que não punham o pé na lama, Padre Pascoal conseguia chegar com a emblemática picape de cor vermelha vinho aos lugares mais recônditos do Pantanal. Ou em sua resistente lancha para atender famílias assentadas, pescadoras ou ribeirinhas (e depois aos sobreviventes originários Guató ou Camba na identificação e no retorno à Ilha Ínsua).

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) que ele estruturou na região, inicialmente com um casal de agentes de pastoral apenas, desenvolvia um serviço multi e interdisciplinar, em que saúde, educação, assistência, apoio técnico e espiritualidade estavam articulados à solidariedade. Sua equipe, tão generosa e laboriosa quanto ele, nunca passou de meia dúzia de grandes seres humanos, da estatura cidadã desse querido Amigo. Ele, diferente de prefeitos e vereadores, tinha noção do tamanho de Corumbá e da dignidade de seu povo.

Tive a honra de conhecê-lo logo de sua chegada a Corumbá, em fins da década de 1980, quando da realização de uma celebração ecumênica no antigo Auditório do então Centro Universitário de Corumbá (CEUC, hoje CPAN). Mês de novembro, estávamos celebrando o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino (dia 29), com a participação do hoje saudoso Pastor Antônio Ribeiro de Souza, da Igreja Batista Missionária.

Não esqueço. É como se fosse hoje. Aquele seu olhar atento, seu sorriso largo e seu jeito acolhedor. Parecia tratar-se de um velho Amigo. E a Vida nos provou de que se tratava de grande e verdadeiro Amigo. Incansável Companheiro de lutas honradas e generosas, sobretudo nestes tempos tacanhos, em que o ódio disseminado vilipendia, ameaça a espécie humana, em todos os quadrantes do planeta.

Meses antes, nesse mesmo auditório, havíamos assistido à inesquecível fala do eterno e terno Dom Hélder Câmara, Cardeal Arcebispo de Olinda e Recife. Ao final, meu querido e saudoso Pai, já beirando os 80 anos, fizera questão de ir ao seu encontro para lhe confidenciar o carinho e a admiração que nutria pelo “Cardeal rebelde” do Brasil quando ele, imigrante libanês, ainda não morava no País. Como mensageiro de boas novas, o já idoso Dom Hélder, respondera ao meu Pai algo como “Vocês terão logo aqui um irmão que vai me superar, tenham fé”...

O primeiro encontro com o Padre Pascoal, em novembro de 1988, me fez lembrar a fala profética de Dom Hélder. Mas só cinco anos depois é que lhe confidenciei o que testemunhara ao lado de meu Pai. Em 1989, tínhamos um casal de Amigos comuns, Geralda e Dionísio, incansáveis agentes de pastoral, com os quais passei a conhecer o drama das famílias instaladas sem qualquer infraestrutura nos projetos de assentamento de Corumbá. Não havia falta de dinheiro nem de terras, mas sobrava má vontade, preconceito e, sobretudo, a cultura da casa grande contra os trabalhadores sem terra, cuja vinda não só assegurou aumento populacional para potencializar os recursos do fundo de participação dos municípios como alavancar a diversificação das atividades econômicas do campo, sobretudo da agricultura familiar e agroecologia.

Graças ao querido Amigo Armando Lacerda, que sugeriu a inclusão de meu nome em reunião preparatória para a Segunda Semana Social Brasileira, em 1993, é que passei a compartilhar de atividades mais amiúde com o Padre Pascoal, oportunidades que me permitiram rever o querido e saudoso Dom José Alves da Costa, que espontaneamente, recém-chegado à Diocese (1991), participara conosco da Primeira Semana da Cultura de Corumbá (pela revitalização da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque). Assim, ao lado de religiosos inesquecíveis, como a Irmã Antônia Brioschi, Irmã Zenaide Britto, Padre Antônio Müller, Padre Amércio Rezende, Pastor Fernando Sabra Caminada e Pastor Marcelo Moura da Silva, a cidadania corumbaense protagonizou a retomada da história.

Com a efetiva participação dos queridos Amigos Ernesto Cuellar, Fátima Garcia da Silva, Fabiana Figueiredo Costa e Padre Ernesto Sassida, o Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida foi estruturado horizontalmente, com seis coordenações setoriais. Dom José e Padre Pascoal, por unanimidade, foram conduzidos para a coordenação-geral, abrindo três linhas de ação: mapeamento das famílias mais necessitadas, mapeamento das iniciativas então existentes (para não haver sobreposição de ações) e mapeamento das ações a serem efetivadas pelos voluntários. Até mesmo depois de aposentado, Padre Pascoal acompanhou as atividades, como titular na coordenação, focadas na campanha Natal Sem Fome.

Além da emblemática participação das comunidades católica, presbiteriana, batista, adventista e espírita, também muitas instituições e empresas se deram as mãos, com destaque para os funcionários do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Embratel, Telems, Enersul, Sanesul, Urucum Mineração (estatal), Embrapa Pantanal, CEUC/UFMS, INSS, Correios, Empaer, Corpo de Bombeiros, Polícia Federal, Receita Federal, 2ª Brigada Mista, VI Distrito Naval, Prefeituras de Corumbá e de Ladário, Genic, Santa Teresa, Tenir, CEAC/Cirandinha, Cidade Dom Bosco e São Miguel, que voluntariamente doavam parte de seus vales-refeição ou organizaram professores e estudantes para as atividades de voluntariado.

Mesmo com a implantação pelo governo federal dos programas Fome Zero, Bolsa-Família e o Cadastro Único (Cadu), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), as atividades, ainda que bem diminutas, eram conduzidas com extremo cuidado pelo Padre Pascoal. Só não neste ano de pandemia, ainda mais ele acometido pela covid-19 desde meados de dezembro. No entanto, o zelo e a atenção nunca deixaram de estar desde 1993, quando, além de ter sido realizado o primeiro Censo da Fome da história de Corumbá (dando conta da existência, então, de mais de 7.800 famílias abaixo da linha da pobreza nesta região de abundância natural e de mesquinhez secular), foram doadas mais de dez mil cestas básicas, além de roupas e brinquedos - sendo vedada a exposição das famílias beneficiárias ou dos doadores, em respeito à dignidade humana, uma questão de ética.

Com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social, em dezembro de 1993, foi criado em Ladário um grupo de estudos que foi a fase embrionária do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (Forumcorlad), por meio das queridas Companheiras da Ação da Cidadania, então colegas de trabalho na Enersul, Dona Vera, Dona Imaculada e Dona Elígia Assad, com apoio do então titular da Paróquia Nossa Senhora dos Remédios, Padre Júlio Mônaco. Em menos de três meses, já estava em pleno funcionamento, tendo sido o primeiro espaço público para o controle social de políticas públicas do interior do estado. Até então só havia congêneres de abrangência estadual, como revelaram na época as assistentes sociais Gregória de Oliveira e Carmen Salatta, do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS/MS) quando da primeira eleição para a área não governamental do Conselho Municipal de Assistência Social de Corumbá, sob a fiscalização do Ministério Público.

A primeira coordenadora do Forumcorlad foi a Irmã Antônia Brioschi, representante do Geniquinho. Na sequência, pela entidade mantenedora do Asilo São José (Associação das Senhoras Católicas da Diocese de Corumbá), a Senhora Cerize de Campos Barros, e como coordenador-adjunto o Senhor Vergílio Alves de Moraes, do Sindicato dos Trabalhadores de Instituições Federais de Saúde e Previdência (SINTSPREV). Com a ampliação das plenárias setoriais (assistência social, saúde, direitos da criança e do adolescente etc), entendeu-se que devesse ser constituída uma coordenação colegiada, tendo como presidente de honra o Padre Ernesto Sassida, emblemático fundador da Cidade Dom Bosco e de um conjunto de projetos pioneiros de inclusão social.

Nesse meio-tempo, Dom José e o Padre Pascoal se dedicavam à solução de conflitos de interesses em nossa região de fronteira. Mediante um processo participativo, mais de 15 segmentos sociais e categorias de atividades econômicas passaram a se reunir dentro de uma dinâmica desenvolvida na Segunda Semana Social Brasileira e, por meio de um manifesto, no dia 13 de junho era constituído o Pacto Pela Cidadania (camelôs, artistas, feirantes, empresários de turismo, ferroviários, assentados, pescadores, trabalhadores rurais, ribeirinhos, professores, estudantes, taxistas, comerciantes, exportadores e transportadores rodoviários), também denominado de Movimento Viva Corumbá.

Sob a coordenação de Dom José (tendo o Padre Pascoal como adjunto), o Pacto Pela Cidadania realizou importantes reuniões na Assembleia Legislativa e na Governadoria, em Guajará-Mirim (Rondônia), Cuiabá e Cáceres (Mato Grosso), além de Brasília. Os governadores Wilson Barbosa Martins e José Orcírio Miranda dos Santos receberam em agenda oficial seus integrantes para debater uma agenda propositiva, em que projetos eram objeto de debate, como Área de Livre-Comércio, reativação do Trem do Pantanal, revitalização da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque, Programa Monumenta (para o Patrimônio Histórico), passe-livre estudantil, terminal pesqueiro para acabar com os atravessadores na pesca artesanal, Plano Diretor do Município, turismo contemplativo e cultural etc.

Curiosamente, quando neopetistas (ou melhor, petistas camaleônicos) passaram a dirigir os destinos de Corumbá, tanto o Pacto Pela Cidadania como o Forumcorlad se tornaram objeto de retaliação da administração local. No mesmo ano em que o Padre Ernesto se eternizou, feitores locais começaram a perseguir membros não governamentais, alvo de retaliações piores às do período de arbítrio. Da mesma forma, o Pacto Pela Cidadania, depois da saída de Dom José da Diocese, por motivos de saúde, o parlamentar que se dizia de todos, mas que não era de ninguém, ignorava interlocutores reconhecidos com mais de oitenta anos de idade, até porque o Movimento Viva Corumbá não se prestava à manipulação do lobby depois desvendado de grupelhos empresariais predadores, sem qualquer respeito pela identidade cultural e a biodiversidade regional.

Resultado: o incansável batalhador de grandes causas, Padre Pascoal, preferiu se restringir à articulação interna desses três espaços públicos, leal e solidariamente. Com a peculiar generosidade que caracterizava sua atuação como cidadão do mundo e à frente de seu tempo, referendou apoio para a participação dos membros do Pacto Pela Cidadania e do Forumcorlad em diversos programas da rádio comunitária que ajudara a fundar, a FM Pantanal, de Corumbá. Nesse meio-tempo, viu sua menina dos olhos, a CPT ir minguando pela evidente falta de compromisso de autoridades e de dirigentes locais. Tomava conhecimento de tudo, e não conseguia esconder sua decepção. Mas de forma resignada e sábia, nos ensinou que o tempo é o melhor conselheiro. Pena que não esteja fisicamente conosco neste processo de retomada que haveremos de protagonizar.

Ainda que passássemos algum tempo sem trocar mensagens ou opiniões sobre o rumo das políticas públicas em razão do desmonte do Estado a partir de 2016, nosso reencontro era permeado de trabalho, de atividades. É bem verdade que, em 4 de dezembro de 2012, o telefonema dele não era para desenvolvermos alguma atividade, mas, com a voz visivelmente embargada, me confidenciava que naquele instante recebera o telefonema da Congregação a que pertencera Dom José, em Catanduva (SP), para informar-lhe da eternização de nosso querido e sábio Amigo. Até porque sempre, em tom de brincadeira, observávamos a coincidência de termos nascido na segunda quinzena de abril, em dias muito próximos...

Enganam-se os que pensam que ele desistiu da luta. Ao contrário, passou a se dedicar à Casa de Recuperação Infantil Padre Antônio Müller (CRIPAM), fundada quando Dom José era titular da Diocese de Corumbá, por meio de suas duas frentes, implantadas anos depois: a Casa de Acolhimento Irmã Marisa Pagge (para 10 crianças de zero a 5 anos e 11 meses, vítimas de abandono ou agressão) e o Centro de Apoio Infanto-Juvenil (CAIJ), para 600 crianças e adolescentes de 4 a 17 anos e 11 meses. Sábio, o Padre Pasquale focou seus dias de maior maturidade para preparar as novas gerações, com amor e formação integral, sobretudo nutricional e afetiva.

Nos últimos tempos, preferíamos reunir-nos na hora do almoço, o que muito nos honrou poder desfrutar por algumas oportunidades (poucas, pois gostaríamos que pudessem ter sido mais) com nossas crianças, com as quais sempre dava um jeito de brincar. Neste dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, tive a honra de receber seu “bom dia” entusiástico, ao qual respondi com os cumprimentos pelo emblemático dia, imediatamente retribuído por ele. Foi nosso diálogo derradeiro, que hoje deixei gravado no computador. Na ânsia de que estivesse se recuperando, me atrevi a lhe enviar duas breves mensagens, mas ele não teve condições de visualizá-las.

Parece até que o Poeta Bertolt Brecht tivesse se inspirado nele quando profetizou o poema-oração de que: “Há homens que lutam um dia, e são bons; / Há outros que lutam um ano, e são melhores; / Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; / Porém há os que lutam toda a vida - esses são os imprescindíveis.”

Inspirados em seu exemplo de humildade, resignação, disciplina e determinação, Padre Pascoal, não desistiremos e pacientemente esperaremos sucumbir a horda desses seres mefistofélicos que usurparam o porvir da humanidade, para podermos entregar às próximas gerações este planeta que lhes pertence, com todo o legado civilizatório dos últimos milênios, anônima e generosamente construído por pessoas como o senhor, que hoje o recebem em outra dimensão, entre os quais por certo estão Dom José Alves da Costa, Padre Ernesto Sassida e Doutor Ricardo Brandão.

Até sempre, querido Amigo, e obrigado por ter existido!

Ahmad Schabib Hany