ATÉ
SEMPRE, PADRE PASCOAL!
Mais
que Sacerdote (com letra maiúscula) dedicado e laborioso, foi um cidadão do
mundo à frente de seu tempo, pautado pela justiça social, a humildade, o amor
ao próximo e a solidariedade. Um Mestre que fazia questão de aprender com seus
companheiros de diferentes jornadas com a mesma dignidade com que exercia sua
vocação pastoral, sem fazer distinção de classe social, grau de instrução,
nacionalidade, etnia, cor da pele, denominação religiosa ou convicção
filosófica ou ideológica...
Padre Pasquale Forin. Esse era
o nome de batismo do Missionário Salesiano de estatura física relativamente
pequena, mas de dimensão humana, ética e espiritual do tamanho de seu coração, generosidade
e abnegação. Chamado simplesmente de Padre Pascoal, foi, sem dúvida, um Cristão
ao pé da letra, para honra e felicidade dos que tiveram a sorte de privar de
seu convívio e Amizade em sua fecunda existência.
Em seus pouco mais de 32 anos de
permanência em Corumbá, como titular da Paróquia de São João Bosco ou como
Vigário-Geral da Diocese de Santa Cruz de Corumbá, Padre Pascoal se dedicou com
uma entrega impressionante ao povo humilde, aos mais fracos e excluídos sem
perder de vista sua vocação pastoral. Com a extraordinária experiência de ter
realizado em Campo Grande uma série de iniciativas, entre elas dois marcos da
cidadania no estado: o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Marçal de Souza Tupã-i
(CDDHMS), com o saudoso Doutor Ricardo Brandão, e o Centro de Documentação e
Apoio aos Movimentos Populares (CEDAMPO), com o incansável Haroldo Borralho.
Em Corumbá, sua vocação
missionária chegou antes dos hipertrofiados órgãos públicos e empresas privadas
remuneradas a peso de ouro... Ao contrário de autoridades que não punham o pé
na lama, Padre Pascoal conseguia chegar com a emblemática picape de cor
vermelha vinho aos lugares mais recônditos do Pantanal. Ou em sua resistente
lancha para atender famílias assentadas, pescadoras ou ribeirinhas (e depois
aos sobreviventes originários Guató ou Camba na identificação e no retorno à
Ilha Ínsua).
A Comissão Pastoral da Terra
(CPT) que ele estruturou na região, inicialmente com um casal de agentes de
pastoral apenas, desenvolvia um serviço multi e interdisciplinar, em que saúde,
educação, assistência, apoio técnico e espiritualidade estavam articulados à
solidariedade. Sua equipe, tão generosa e laboriosa quanto ele, nunca passou de
meia dúzia de grandes seres humanos, da estatura cidadã desse querido Amigo.
Ele, diferente de prefeitos e vereadores, tinha noção do tamanho de Corumbá e
da dignidade de seu povo.
Tive a honra de conhecê-lo logo
de sua chegada a Corumbá, em fins da década de 1980, quando da realização de
uma celebração ecumênica no antigo Auditório do então Centro Universitário de
Corumbá (CEUC, hoje CPAN). Mês de novembro, estávamos celebrando o Dia
Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino (dia 29), com a participação
do hoje saudoso Pastor Antônio Ribeiro de Souza, da Igreja Batista Missionária.
Não esqueço. É como se fosse
hoje. Aquele seu olhar atento, seu sorriso largo e seu jeito acolhedor. Parecia
tratar-se de um velho Amigo. E a Vida nos provou de que se tratava de grande e
verdadeiro Amigo. Incansável Companheiro de lutas honradas e generosas,
sobretudo nestes tempos tacanhos, em que o ódio disseminado vilipendia, ameaça
a espécie humana, em todos os quadrantes do planeta.
Meses antes, nesse mesmo
auditório, havíamos assistido à inesquecível fala do eterno e terno Dom Hélder
Câmara, Cardeal Arcebispo de Olinda e Recife. Ao final, meu querido e saudoso
Pai, já beirando os 80 anos, fizera questão de ir ao seu encontro para lhe
confidenciar o carinho e a admiração que nutria pelo “Cardeal rebelde” do Brasil
quando ele, imigrante libanês, ainda não morava no País. Como mensageiro de
boas novas, o já idoso Dom Hélder, respondera ao meu Pai algo como “Vocês terão
logo aqui um irmão que vai me superar, tenham fé”...
O primeiro encontro com o Padre
Pascoal, em novembro de 1988, me fez lembrar a fala profética de Dom Hélder.
Mas só cinco anos depois é que lhe confidenciei o que testemunhara ao lado de
meu Pai. Em 1989, tínhamos um casal de Amigos comuns, Geralda e Dionísio,
incansáveis agentes de pastoral, com os quais passei a conhecer o drama das
famílias instaladas sem qualquer infraestrutura nos projetos de assentamento de
Corumbá. Não havia falta de dinheiro nem de terras, mas sobrava má vontade,
preconceito e, sobretudo, a cultura da casa grande contra os trabalhadores sem
terra, cuja vinda não só assegurou aumento populacional para potencializar os
recursos do fundo de participação dos municípios como alavancar a
diversificação das atividades econômicas do campo, sobretudo da agricultura
familiar e agroecologia.
Graças ao querido Amigo Armando
Lacerda, que sugeriu a inclusão de meu nome em reunião preparatória para a
Segunda Semana Social Brasileira, em 1993, é que passei a compartilhar de
atividades mais amiúde com o Padre Pascoal, oportunidades que me permitiram
rever o querido e saudoso Dom José Alves da Costa, que espontaneamente, recém-chegado
à Diocese (1991), participara conosco da Primeira Semana da Cultura de Corumbá
(pela revitalização da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque). Assim, ao lado de
religiosos inesquecíveis, como a Irmã Antônia Brioschi, Irmã Zenaide Britto,
Padre Antônio Müller, Padre Amércio Rezende, Pastor Fernando Sabra Caminada e
Pastor Marcelo Moura da Silva, a cidadania corumbaense protagonizou a retomada
da história.
Com a efetiva participação dos
queridos Amigos Ernesto Cuellar, Fátima Garcia da Silva, Fabiana Figueiredo
Costa e Padre Ernesto Sassida, o Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da
Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida foi estruturado horizontalmente,
com seis coordenações setoriais. Dom José e Padre Pascoal, por unanimidade,
foram conduzidos para a coordenação-geral, abrindo três linhas de ação:
mapeamento das famílias mais necessitadas, mapeamento das iniciativas então
existentes (para não haver sobreposição de ações) e mapeamento das ações a
serem efetivadas pelos voluntários. Até mesmo depois de aposentado, Padre
Pascoal acompanhou as atividades, como titular na coordenação, focadas na
campanha Natal Sem Fome.
Além da emblemática
participação das comunidades católica, presbiteriana, batista, adventista e
espírita, também muitas instituições e empresas se deram as mãos, com destaque
para os funcionários do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Embratel,
Telems, Enersul, Sanesul, Urucum Mineração (estatal), Embrapa Pantanal,
CEUC/UFMS, INSS, Correios, Empaer, Corpo de Bombeiros, Polícia Federal, Receita
Federal, 2ª Brigada Mista, VI Distrito Naval, Prefeituras de Corumbá e de
Ladário, Genic, Santa Teresa, Tenir, CEAC/Cirandinha, Cidade Dom Bosco e São
Miguel, que voluntariamente doavam parte de seus vales-refeição ou organizaram
professores e estudantes para as atividades de voluntariado.
Mesmo com a implantação pelo
governo federal dos programas Fome Zero, Bolsa-Família e o Cadastro Único (Cadu),
do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), as atividades, ainda que bem
diminutas, eram conduzidas com extremo cuidado pelo Padre Pascoal. Só não neste
ano de pandemia, ainda mais ele acometido pela covid-19 desde meados de
dezembro. No entanto, o zelo e a atenção nunca deixaram de estar desde 1993,
quando, além de ter sido realizado o primeiro Censo da Fome da história de
Corumbá (dando conta da existência, então, de mais de 7.800 famílias abaixo da
linha da pobreza nesta região de abundância natural e de mesquinhez secular),
foram doadas mais de dez mil cestas básicas, além de roupas e brinquedos -
sendo vedada a exposição das famílias beneficiárias ou dos doadores, em
respeito à dignidade humana, uma questão de ética.
Com a promulgação da Lei
Orgânica da Assistência Social, em dezembro de 1993, foi criado em Ladário um
grupo de estudos que foi a fase embrionária do Fórum Permanente de Entidades
Não Governamentais de Corumbá e Ladário (Forumcorlad), por meio das queridas
Companheiras da Ação da Cidadania, então colegas de trabalho na Enersul, Dona
Vera, Dona Imaculada e Dona Elígia Assad, com apoio do então titular da
Paróquia Nossa Senhora dos Remédios, Padre Júlio Mônaco. Em menos de três
meses, já estava em pleno funcionamento, tendo sido o primeiro espaço público
para o controle social de políticas públicas do interior do estado. Até então
só havia congêneres de abrangência estadual, como revelaram na época as
assistentes sociais Gregória de Oliveira e Carmen Salatta, do Conselho Regional
de Serviço Social (CRESS/MS) quando da primeira eleição para a área não
governamental do Conselho Municipal de Assistência Social de Corumbá, sob a
fiscalização do Ministério Público.
A primeira coordenadora do
Forumcorlad foi a Irmã Antônia Brioschi, representante do Geniquinho. Na
sequência, pela entidade mantenedora do Asilo São José (Associação das Senhoras
Católicas da Diocese de Corumbá), a Senhora Cerize de Campos Barros, e como
coordenador-adjunto o Senhor Vergílio Alves de Moraes, do Sindicato dos
Trabalhadores de Instituições Federais de Saúde e Previdência (SINTSPREV). Com
a ampliação das plenárias setoriais (assistência social, saúde, direitos da
criança e do adolescente etc), entendeu-se que devesse ser constituída uma
coordenação colegiada, tendo como presidente de honra o Padre Ernesto Sassida,
emblemático fundador da Cidade Dom Bosco e de um conjunto de projetos pioneiros
de inclusão social.
Nesse meio-tempo, Dom José e o
Padre Pascoal se dedicavam à solução de conflitos de interesses em nossa região
de fronteira. Mediante um processo participativo, mais de 15 segmentos sociais
e categorias de atividades econômicas passaram a se reunir dentro de uma
dinâmica desenvolvida na Segunda Semana Social Brasileira e, por meio de um
manifesto, no dia 13 de junho era constituído o Pacto Pela Cidadania (camelôs,
artistas, feirantes, empresários de turismo, ferroviários, assentados,
pescadores, trabalhadores rurais, ribeirinhos, professores, estudantes,
taxistas, comerciantes, exportadores e transportadores rodoviários), também
denominado de Movimento Viva Corumbá.
Sob a coordenação de Dom José (tendo
o Padre Pascoal como adjunto), o Pacto Pela Cidadania realizou importantes
reuniões na Assembleia Legislativa e na Governadoria, em Guajará-Mirim
(Rondônia), Cuiabá e Cáceres (Mato Grosso), além de Brasília. Os governadores
Wilson Barbosa Martins e José Orcírio Miranda dos Santos receberam em agenda
oficial seus integrantes para debater uma agenda propositiva, em que projetos
eram objeto de debate, como Área de Livre-Comércio, reativação do Trem do
Pantanal, revitalização da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque, Programa
Monumenta (para o Patrimônio Histórico), passe-livre estudantil, terminal
pesqueiro para acabar com os atravessadores na pesca artesanal, Plano Diretor
do Município, turismo contemplativo e cultural etc.
Curiosamente, quando
neopetistas (ou melhor, petistas camaleônicos) passaram a dirigir os destinos
de Corumbá, tanto o Pacto Pela Cidadania como o Forumcorlad se tornaram objeto
de retaliação da administração local. No mesmo ano em que o Padre Ernesto se
eternizou, feitores locais começaram a perseguir membros não governamentais, alvo
de retaliações piores às do período de arbítrio. Da mesma forma, o Pacto Pela
Cidadania, depois da saída de Dom José da Diocese, por motivos de saúde, o
parlamentar que se dizia de todos, mas que não era de ninguém, ignorava
interlocutores reconhecidos com mais de oitenta anos de idade, até porque o
Movimento Viva Corumbá não se prestava à manipulação do lobby depois desvendado
de grupelhos empresariais predadores, sem qualquer respeito pela identidade
cultural e a biodiversidade regional.
Resultado: o incansável
batalhador de grandes causas, Padre Pascoal, preferiu se restringir à
articulação interna desses três espaços públicos, leal e solidariamente. Com a
peculiar generosidade que caracterizava sua atuação como cidadão do mundo e à
frente de seu tempo, referendou apoio para a participação dos membros do Pacto
Pela Cidadania e do Forumcorlad em diversos programas da rádio comunitária que
ajudara a fundar, a FM Pantanal, de Corumbá. Nesse meio-tempo, viu sua menina
dos olhos, a CPT ir minguando pela evidente falta de compromisso de autoridades
e de dirigentes locais. Tomava conhecimento de tudo, e não conseguia esconder
sua decepção. Mas de forma resignada e sábia, nos ensinou que o tempo é o
melhor conselheiro. Pena que não esteja fisicamente conosco neste processo de
retomada que haveremos de protagonizar.
Ainda que passássemos algum
tempo sem trocar mensagens ou opiniões sobre o rumo das políticas públicas em
razão do desmonte do Estado a partir de 2016, nosso reencontro era permeado de
trabalho, de atividades. É bem verdade que, em 4 de dezembro de 2012, o
telefonema dele não era para desenvolvermos alguma atividade, mas, com a voz
visivelmente embargada, me confidenciava que naquele instante recebera o
telefonema da Congregação a que pertencera Dom José, em Catanduva (SP), para
informar-lhe da eternização de nosso querido e sábio Amigo. Até porque sempre,
em tom de brincadeira, observávamos a coincidência de termos nascido na segunda
quinzena de abril, em dias muito próximos...
Enganam-se os que pensam que
ele desistiu da luta. Ao contrário, passou a se dedicar à Casa de Recuperação
Infantil Padre Antônio Müller (CRIPAM), fundada quando Dom José era titular da
Diocese de Corumbá, por meio de suas duas frentes, implantadas anos depois: a
Casa de Acolhimento Irmã Marisa Pagge (para 10 crianças de zero a 5 anos e 11
meses, vítimas de abandono ou agressão) e o Centro de Apoio Infanto-Juvenil (CAIJ),
para 600 crianças e adolescentes de 4 a 17 anos e 11 meses. Sábio, o Padre
Pasquale focou seus dias de maior maturidade para preparar as novas gerações,
com amor e formação integral, sobretudo nutricional e afetiva.
Nos últimos tempos, preferíamos
reunir-nos na hora do almoço, o que muito nos honrou poder desfrutar por
algumas oportunidades (poucas, pois gostaríamos que pudessem ter sido mais) com
nossas crianças, com as quais sempre dava um jeito de brincar. Neste dia 10 de
dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, tive a honra de receber seu “bom
dia” entusiástico, ao qual respondi com os cumprimentos pelo emblemático dia,
imediatamente retribuído por ele. Foi nosso diálogo derradeiro, que hoje deixei
gravado no computador. Na ânsia de que estivesse se recuperando, me atrevi a
lhe enviar duas breves mensagens, mas ele não teve condições de visualizá-las.
Parece até que o Poeta Bertolt
Brecht tivesse se inspirado nele quando profetizou o poema-oração de que: “Há
homens que lutam um dia, e são bons; / Há outros que lutam um ano, e são
melhores; / Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; / Porém há os
que lutam toda a vida -
esses são os imprescindíveis.”
Inspirados em seu exemplo de
humildade, resignação, disciplina e determinação, Padre Pascoal, não desistiremos
e pacientemente esperaremos sucumbir a horda desses seres mefistofélicos que usurparam
o porvir da humanidade, para podermos entregar às próximas gerações este
planeta que lhes pertence, com todo o legado civilizatório dos últimos milênios,
anônima e generosamente construído por pessoas como o senhor, que hoje o
recebem em outra dimensão, entre os quais por certo estão Dom José Alves da
Costa, Padre Ernesto Sassida e Doutor Ricardo Brandão.
Até sempre, querido Amigo, e
obrigado por ter existido!
Ahmad
Schabib Hany