domingo, 4 de janeiro de 2015

Imigrantes que habitaram a Corumbá da segunda metade do século XX


Don Menéndez’ e a Corumbá da segunda metade do século XX
Qualquer corumbaense ou ladarense com mais de 50 anos de idade vai se lembrar dos inúmeros compradores de cobre que circulavam pelas movimentadas avenidas, ruas e alamedas da promissora Corumbá de meados do século XX. Empurrando, com dignidade, o seu carrinho de mão, geralmente confeccionado com muita originalidade, eles costumavam circular entre as oito horas da manhã e as cinco da tarde, cumprindo rigorosamente sua dura jornada de trabalho, sobretudo pelo calor causticante do centenário centro comercial cosmopolita, ainda vicejante. Apesar do anonimato que a Vida lhes impunha, cada qual tinha a sua rica história, sua biografia singular.
Pois um deles, de nacionalidade espanhola, povoou o imaginário de minha infância, por ter sido um grande Amigo de meu saudoso Pai, desde a nossa chegada à Cidade Branca, em 1964, até 1970, quando decidira retornar para Madri, em razão da idade avançada de sua Mãe. Era ‘DonMenéndez’ – ou Victorio José Menéndez Menéndez –, chegado a Corumbá no pós-guerra de 1945, bem jovem, como a maioria dos espanhóis perseguidos por Francisco Franco, o facínora aliado de Adolf Hitler e Benito Mussolini, ao vencer os republicanos na Guerra Civil Espanhola. Mas sobre esse passado ele se reservara o direito de não falar, até porque o conhecemos durante os anos mais difíceis do regime de exceção implantado no Brasil no mesmo ano de nossa chegada e depois proliferado por toda a nossa América Latina de muitos martírios e grandes silêncios.
Vestido com roupas bem proletárias (nessa época os blue jeans ainda não estavam na moda, e o seu uso era exclusivo de trabalhadores humildes que, para proteger sua integridade física, recorriam a esse tipo de traje mais por necessidade que por conforto) e calçando as velhas alpargatas Sete Vidas (cujo solado era totalmente confeccionado em cordas rudimentares), ‘Don Menéndez’ começou a frequentar, rigorosamente de segunda a sábado, sempre depois do pôr do sol, a modesta sorveteria que meu Pai acabara de instalar na Feira Boliviana para tomar um copo grande de refresco de ameixa quase congelado, um diferencial desenvolvido pelo seu tino comercial cuja composição era segredo dele (meu Pai), como atrativo para conquistar os clientes. Cabelos bem pretos, um tanto ralos, bigode ao estilo francês do início do século, tez mourisca e olhos castanhos, estatura mediana alta e bem magro, não recordo se fumava, mas seu aroma natural era de acentuado tempero mediterrâneo.
Como todos nós, em casa, falávamos (e ainda falamos) em espanhol, ‘Don Menéndez’ ficava à vontade para matar a saudade de sua língua materna, e aos poucos foi sentindo confiança para “sair do anonimato”. Mas isso levou algum tempo. Na verdade, por causa da doença de meu Avô materno, acometido de câncer no intestino, 1965 foi um ano duplamente duro para minha Família: sem a presença de minha saudosa Mãe, que precisara viajar a Cochabamba para assistir seu Pai, em Corumbá meu Pai tinha que “se virar” com os seis filhos mais novos e dar conta dos compromissos de seus novos empreendimentos: a sorveteria e a hospedaria. Nesse contexto é que o novo e verdadeiro Amigo de meu Pai adentra ao nosso cotidiano, Amizade que durou até o final da Vida dos dois, apesar das dezenas de milhares de quilômetros de distância entre Corumbá e Madri.
As primeiras conversas tratavam de filosofia clássica, que ‘Don Menéndez’ dominava bem, segundo meu Pai, cuja formação universitária era essa. Depois, sobre literatura e história da humanidade. Cada qual com seu ponto de vista, mas sempre com muito respeito e em voz prudentemente baixa, não se esquecendo de que os regimes de exceção ainda estavam em fase de implantação em toda a América Latina (e na Espanha, ainda muito enraizado, eis que só depois da morte do generalíssimo Franco, em 1975, é que começa a desanuviar o temporal intermitente imposto em 1938). Só me lembro de uma discussão que causou o “sumiço” temporário dele: quando, em tom de desabafo, falara de sua Mãe, em termos nada educados, e meu Pai, indignado, se permitiu exigir dele retratação. Esse mal-entendido deve ter durado não mais que uma semana, mas ao cabo desse interregno, feita a devida retratação, a Amizade jamais se abalara, ao ponto de meu Pai ter sido seu procurador com plenos poderes para tratar de vários interesses deixados pendentes ao retornar para a Espanha.
Assim como quando vivia em Corumbá, ‘Don Menéndez’ tratava de temas complexos em suas longas e ilustrativas cartas, mensalmente escritas, ora sobre filosofia clássica ou história da humanidade. Com a mesma atenção, meu Pai respondia ao debate epistolar e compartilhava seu olhar sobre a conjuntura local (Corumbá), sem deixar de enviar seu relatório periódico como procurador de seus bens, metodicamente separados. Isso ocorreu por décadas, até o momento em que ele decidira não mais retornar para o Brasil, autorizando meu Pai acordar com dois outros sócios seus para vender tudo que deixara aqui, documentado num longo relatório enviado antes de “bater o martelo” (é que algum dos sócios havia falecido ou havia alguma pendência que causara preocupação ao meu Pai).
Muitos anos depois, meu Pai nos contara que ‘Don Menéndez’ era filho único de mãe solteira, e isso havia sido motivo de muita controvérsia entre eles, pois não conhecera seu Pai, morto durante a Guerra Civil da Espanha. E foi graças à Amizade com meu Pai, órfão de Mãe aos 5 anos, que ele resolvera “quebrar o gelo” e fazer uma viagem de reaproximação com a Mãe em 1969, oportunidade que serviu para se decidir pelo seu retorno para sua terra natal no ano seguinte, quando passou a morar com ela até o final da Vida. Como sinal de gratidão, logo de sua chegada à Espanha, enviou uma edição atualizada do Dicionário Larousse Ilustrado em Espanhol, pois o do meu Pai, que eles usavam amiúde, datava de 1942.
Ainda que não fosse um entusiástico partidário das monarquias, certa ocasião ‘Don Menéndez’ fez questão de surpreender meu Pai com uma revista espanhola que vive a fazer apologia às ditas famílias reais mundo afora, com a novidade de que em um dos emirados árabes havia uma família real com nosso sobrenome. Mas, para nosso alívio, imediatamente meu Pai esclareceu de que se tratava de mera coincidência, pois sua ascendência era sírio-libanesa, nada tendo a ver com essas realezas impostoras criadas pelo colonialismo europeu, fosse turco ou franco-britânico, no Golfo. Todo final de ano, ele enviava diversos impressos (revistas, jornais ou livros com temas relacionados aos da longa correspondência mantida por décadas), para regozijo de meu Pai.
Quando ‘Don Menéndez’ recebera a notícia sobre o precoce falecimento de meu Irmão Mohamed (‘Tchítchi’), em setembro de 1974, o Amigo espanhol lhe enviara longa e comovida mensagem com seu depoimento sobre o “jovem idealista” e “grande promessa”, como ele se expressara, insistindo ao meu Pai que não acreditasse jamais ser ele um suicida, até porque seu perfil corajoso e transformador, a exemplo do incansável Pai, era conhecido e reconhecido por todos. A mesma opinião ele reiterara ao receber, 22 anos depois, a carta de minha autoria dando conta do súbito falecimento de meu Pai, em julho de 1996. Fiz questão de ler essa carta para minha saudosa Mãe, que sempre acompanhara a troca de correspondências entre meu Pai e seus Amigo(a)s, espalhado(a)s pelo mundo, num tempo em que Internet não passava de ficção, mas os Correios testemunhavam a existência de pessoas que não viviam sem expressar seus anseios, sentimentos e convicções por meio do papel cúmplice e solidário de todas as horas.
Além de cidadão do mundo, solidamente formado com generosos valores humanistas, ‘Don Menéndez’ era inventor (criara ferramentas geniais e projetara curiosos instrumentos para diferentes usos, provavelmente nas noites solitárias vividas aqui, lamentavelmente não patenteados), projetista, mestre de obras, hábil comerciante e grande investidor. Nos anos em que viveu modestamente em Corumbá, conseguiu a proeza de adquirir diversos imóveis, alguns dos quais em sociedade, em diversos bairros da cidade. Entre as relíquias que deixara hermeticamente acondicionadas em um sótão de um dos imóveis em que morara, havia grande quantidade de livros de filosofia, história e literatura em espanhol, além de curiosos relatos versando de diversos temas, inclusive sobre Amigos seus, cultivados com muito carinho, pois permitiu-se privar-se de aventuras ou relacionamentos afetivos em sua longa permanência no Brasil. Solteiro, sem filhos, ‘Don Menéndez’ faleceu solitário em Madri, no apartamento em que vivera com sua Mãe, em fins de junho de 2005, tendo sido sepultado imediatamente em razão de o seu corpo estar em avançado estado de decomposição.
‘Seu Rafael’ e a Casa Estrela
Durante quase trinta anos, ‘Seu Rafael’ atendeu, com roupas feitas, armarinhos e calçados, os consumidores corumbaenses, ladarenses e bolivianos em sua tradicional Casa Estrela, situada na esquina das ruas Delamare e Quinze de Novembro, no mesmo prédio em que hoje funciona um escritório de advocacia e administradora de imóveis. Entre o início da década de 1960 e meados da década de 1990 a “lojinha” era uma importante referência para clientes das mais diversas nacionalidades, classes sociais e procedências.
Ele contava que decidira assim denominar sua primeira loja em homenagem à Estrela de Belém, da milenar história do Peregrino Nazareno cujo nascimento fora anunciado pela também Estrela Guia, dos Reis Magos. Como o nome ficaria muito longo, optou pela forma reduzida, assim homenageando também a emblemática estrela egípcia, então em ascensão, Gamal Abdel Nasser, fundador da República Árabe Unida (RAU), estadista de inspiração socialista, mas não subordinado à União Soviética, embora aliado seu no Oriente Médio, que com Broz Tito e Jawaharlal Nehru criara o Movimento dos Países Não Alinhados.
Se bem me lembro, foi no início de 1965, ao lado de meu saudoso Pai, meu primeiro contato com o bem apessoado e verdadeiro gentleman Soubhi Issa Ahmad – o popular ‘Rafael’ –, refugiado palestino da região de Ramallah, forçado a sair de sua terra em plena juventude por ter ousado desafiar uma patrulha das forças coloniais inglesas no pós-guerra de 1945. Então estava por receber a esposa e duas filhas (de dois casais de filhos), que estavam chegando do Egito, depois de haver conseguido sair com apenas a roupa do corpo de Kafer Málek, na Cisjordânia Ocupada (por Israel, Estado criado em novembro de 1947 pela Organização das Nações Unidas – ONU –, sem ter consultado seus maiores interessados, os habitantes da Palestina milenar).
Foi o ‘Seu Rafael’ que, em meados da década de 1980, me contara, visivelmente emocionado, diante de meu Pai e de alguns amigos de juventude, que ao chegar da ilha caribenha de Martinica – onde se fala o francês, além do crioulo (idioma dos remanescentes da população originária) –, havia protagonizado um involuntário e constrangedor imbróglio com a esposa de um importante líder político local, morto seis meses depois. Tratava-se da saudosa Professora Eunice Ajala Rocha, então jovem esposa do vereador Edu Rocha, covardemente assassinado na saída da Câmara Municipal em fins de julho de 1959. Como ele não falava o português e iniciava sua lide de mascate urbano, pedira a um irreverente libanês ajuda para escrever o que serviria de roteiro para um diálogo de demonstração e venda de seus produtos, acondicionados em duas típicas malas de fibra.
Ocorre que o libanês brincalhão ensinara errado, e a brincadeira de gosto duvidoso poderia ter lhe custado a vida não fosse sua primeira tentativa de venda na casa desse emblemático político, residente à rua Major Gama, quase esquina com a rua Treze de Junho. Ele abordara a senhora que prontamente atendera à costumeira batida de palmas com uma inusitada proposta de “quer dormir comigo?”, em vez de “quer comprar comigo?”. Ele contava que, sem entender, vira a perplexidade da jovem senhora, razão pela qual voltara a ler o que trazia em sua “cola”, meticulosamente redigida em árabe para evitar qualquer mal-entendido por causa da pronúncia. Diante da insistência do mascate, a senhora, ofendida, chamara o esposo, que educadamente o acolheu, apesar de ter ouvido a mesma proposta inusitada. Depois de tê-lo convidado para tomar café no interior de sua casa, sob a visível contrariedade da esposa indignada, Edu Rocha comprara alguns produtos e lhe oferecera carona para ir até outro libanês, o afável Mohamad Omar, proprietário da tradicional Casa Glória, situada à rua Frei Mariano quase esquina com a Delamare, no afã de esclarecer a situação constrangedora daquele imigrante com inequívocas evidências de que desconhecia o que falava em português. Ao ouvir do conterrâneo árabe o significado daquilo que para ele eram inofensivas palavras, ‘Seu Rafael’ se ajoelhou em sinal de respeito e pediu, em francês, perdão pela proposta inocentemente formulada, e, depois de se despedir dos dois senhores, saiu desconcertado à procura do patrício brincalhão para lhe dar o merecido corretivo, nunca consumado porque simplesmente o imigrante levado, ciente do que fizera, sumira de sua vista por bom tempo.
Meses depois, qual não fora a sua consternação ao tomar conhecimento do assassinato daquele gentil e inesquecível cliente brasileiro que o tratara com cordialidade e compreensão em vez de haver-lhe desferido alguma retaliação diante da inusitada proposta, indecorosa, sobretudo em se tratando de uma sociedade de costumes conservadores de meados do século XX. Fizera questão de ir ao concorrido cortejo fúnebre em sinal de gratidão e admiração por aquele ser humano que nunca mais tornara a ver.
Por ironia da Vida, alguns anos depois, quando ele finalmente conseguira estabelecer-se num empreendimento mais confortável – precisamente aCasa Estrela –, Dona Eunice Ajala Rocha havia sido nomeada funcionária do Ministério do Trabalho na sede do Serviço de Navegação Bacia do Prata, distante poucos metros da loja do ex-mascate que involuntariamente a constrangera com sua “cola” atrevida. Diante de mim, ao confirmar o episódio, a Professora Eunice, em fins da década de 1980, repetira em tom jocoso a proposta do mascate recém-chegado e do qual, com o devir dos anos, se tornara amiga e de toda a sua família.
Em meados da década de 1960, ‘Seu Rafael’ havia conseguido trazer a esposa, Dona Afefa, e as duas filhas para o Brasil. A mais velha, Abla, ajudava os pais na loja. A mais nova, Afef, lembro-me que estudava no então GENIC, e que nos desfiles cívicos levava a bandeira da Palestina, tendo ido depois para o Cairo continuar os estudos, assim como os dois filhos homens, que se formaram em medicina, ambos cardiologistas, um deles tendo fixado residência em Madri e o outro em Nova Iorque. Foi Abla que, ao lado de outras moças e alguns jovens palestinos, organizou os pioneiros atos públicos pela Palestina em Corumbá. Só mais tarde é que fora fundada a Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira (acredito que em 1982). Já a Liga Árabe-Brasileira de Corumbá, que reúne toda a comunidade árabe da região (libaneses, sírios, palestinos, líbios, jordanianos, egípcios e marroquinos), data da década de 1950.
Pai extremamente zeloso, ‘Seu Rafael’ se identificava com o meu Pai. Ainda que tivessem opiniões diferentes sobre diversas questões, inclusive políticas, unia-os um raro laço fraternal, próprio dos imigrantes, cidadãos do mundo. Tamanha afinidade, foi com ele que meu Pai aprendeu fazer café, já com idade avançada, e ficava feliz ao receber o elogio de seu “professor” todas as manhãs (quase madrugadas) em que recebia a visita do amigo para ouvir as primeiras notícias do rádio, em árabe, inglês, francês e espanhol. Quando meu Irmão Mohamed (‘Tchítchi’) falecera, ele e o libanês assumidamente comunista Mohamed Bazzi (afetuosamente chamado de ‘Abu Kamel’, ou ‘Pai do Kamel’), proprietário da Casa das Flores, situada à rua Frei Mariano (quase ao lado do GENIC), passaram a confortá-lo com visitas semanais, por meses a fio (na verdade, por toda a Vida, enquanto viveram em Corumbá).
‘Seu Rafael’ dizia, com orgulho, que havia formado dois médicos para a causa palestina, para que os palestinos fossem melhor assistidos na sua própria terra, vilipendiada pelos invasores sionistas. Em duas viagens que fizera ao Egito ainda no tempo de Gamal Abdel Nasser, em 1968 e 1969, por causa dos filhos que deixara estudando, fez verdadeiros comícios em prol da liberdade de sua nação do jugo sionista. Naturalizado brasileiro na década de 1980, ele enaltecia o País que o havia acolhido ainda jovem, questionando a falta de patriotismo dos figurões com quem convivia por conta das atividades comerciais.
Quando finalmente pôde comprar um carro, já maduro (com mais de 60 anos de idade), pois os filhos já podiam se sustentar, já formados, trabalhando em Madri e Nova Iorque, respectivamente (e de vez em quando enviando algum dinheiro aos pais), fez questão de comprar um Opala Sedan 1974, cor laranja, seu único carro em toda a vida: de cinco em cinco anos dava um “banho” de pintura e o deixava sedutoramente “novinho em folha”, tendo somente uma vez mudado a cor, para grafite (em 1990), como é possível ser visto ainda hoje com o novo dono, embora bem menos cuidado que com o anterior.
Em 1985 o incansável ‘Seu Rafael’ abrira seu segundo empreendimento, denominado Loja Primavera, também na rua Delamare, onde hoje funciona uma casa de instrumentos musicais, a poucos metros do então movimentado “Ponto Final” dos coletivos urbanos de Corumbá, ao lado da Praça da República. Sua iniciativa decorrera, sobretudo, de seu dever de consciência de assumir os cuidados de um bebê nascido fora do casamento cuja mãe perdera a visão e ficara dependente da ajuda de sua família – o Fabinho, sua razão de ser até seus momentos finais.
Quando recebeu, exultante, a notícia de que poderia retornar à sua querida Palestina, ainda que como turista (por apenas 30 dias) e sob o jugo sionista, pedira a todos os seus amigos, inclusive meu Pai, que cuidassem de seu caçula caso algo acontecesse com ele. E, pior, é que aconteceu mesmo: partira feliz, dançando até os estertores da morte, ao lado dos filhos cardiologistas, que nada puderam fazer, na festa de casamento de uma sobrinha-neta em sua querida Kafer Málek, em meados de 1993, há 21 anos. Meses depois, Dona Afefa e Abla liquidavam a loja e faziam as malas para retornar à sua terra. Fabinho, aos 9 anos e sob os cuidados da segunda e dedicada esposa, Dona Gregória, foi e é tratado como filho do coração por essa verdadeira mãe andina (de onde é oriunda), sendo hoje pai-coruja de seu primeiro filho, lembrando bem o Paizão que não pôde ter ao seu lado até chegar à maioridade, mas cujas recordações o cobrem de orgulho e lhe são referência como cidadão do mundo que ele também faz questão de ser.
O seu segundo nome, Issa, é Jesus em árabe. Um nome muito comum entre os palestinos, que, indistintamente de denominações religiosas, louvam e respeitam desde sempre. Ele era muçulmano sunita, como a maioria dos palestinos chegados ao Brasil depois da implantação do Estado sionista, mas suas filhas estudavam no tradicional colégio das Irmãs salesianas, então GENIC. Fabinho, seu quinto filho, temporão, teve total liberdade de opção religiosa, tendo estudado, enquanto o Pai era vivo, em uma escola particular laica (na época a mais procurada pelos pais de origem palestina por causa dos elevados índices de aprovação em vestibulares de cursos concorridos em universidades fora da cidade). Quando decidiu partir para um segundo casamento, soube conviver, com a mesma galhardia e respeito pela diversidade, com a sua segunda companheira sem ter tido qualquer conflito de ordem cultural ou religiosa. Além disso, era um socialista confesso, mas não discriminava os que, dentro de sua comunidade, fizessem apologia do capitalismo, irmão gêmeo, segundo ele, do imperialismo que tanta infelicidade trouxe para toda a humanidade, e, sobretudo, para a grande nação árabe, desde os tempos do colonialismo franco-britânico, recebido inicialmente de braços abertos pelos líderes árabes, na ânsia de se libertarem do obscurantista império turco-otomano, de triste memória, responsável pelo atraso medieval de todo o esplendor cultural árabe entre os séculos XV e XX.
Abu Kamel’ e a Casa das Flores
Nascido no sul do Líbano no raiar do século XX, Mohamad Bazzi – o popular ‘Abu Kamel’ da Praça Independência dos idos de 1960 a 1980 – chegou a Corumbá pela ferrovia, procedente de São Paulo. Ele desembarcara no porto de Santos em meados da década de 1950, já homem maduro, com a esposa e os filhos (dois casais, sendo o mais velho Kamel, por isso ‘Pai do Kamel’, como reza a tradição oriental). Decidiu-se por Corumbá, que conhecera pelos relatos de conterrâneos que iam periodicamente a São Paulo para abastecer seus modestos empreendimentos, depois de alguns anos de trabalho sôfrego na Pauliceia Desvairada, onde convivera com alguns militantes do sindicalismo engajado brasileiro.
Abu Kamel’ precisara abandonar sua terra por estar muito próximo de Israel, distante do grande centro industrial cairota e no âmago do seu Partido Comunista, perseguido pelas oligarquias libanesas que, desde 1942, se sucediam em Beirute no controle do Estado criado pela França, por meio do nefasto Acordo Nacional, que deixara uma constituição aparentemente democrática, mas fatiara o governo de acordo a critérios sectários (isto é, por seitas religiosas), em que a presidência da República cabia a um cristão maronita, o cargo primeiro-ministro a um muçulmano sunita, a presidência do Parlamento a um druso, a pasta das Relações Exteriores a um cristão ortodoxo, e a pasta da Justiça a um muçulmano xiita. Socialistas, comunistas e socialdemocratas, nem pensar: todos proscritos, proibidos, pois ameaçavam os interesses das famílias que haviam tomado de assalto os destinos da terra natal de Gibran Khalil Gibran.
Muito discreto, ‘Abu Kamel’ só falava sobre seu passado político a amigos muito próximos, como o meu falecido Pai, uma década mais novo que ele. Dono da poeticamente denominada Casa das Flores, loja de armarinhos e calçados situada à rua Frei Mariano, quase ao lado do tradicional GENIC, esse simpático imigrante passava horas a fio compenetrado em obras clássicas em árabe e francês, mas que com a vigência de um regime anticomunista no País que o acolhera generosamente optara, prudentemente, pela leitura de clássicos da literatura e da história universal. Com meu Pai ele se permitia, discretamente, ouvir programas em árabe da Rádio Paz e Progresso, de Moscou, em que a análise da conjuntura política mundial passava pelo crivo da Academia de Ciências da União Soviética.
Eu me lembro tê-lo conhecido em 1967, durante a trágica Guerra dos Seis Dias (em árabe, “Terceiro Assalto”), quando o grande estadista árabe Gamal Abdel Nasser sentira o peso de sua primeira derrota militar, vítima da traição de reis subservientes ao sionismo, como o Rei Hussein, da Jordânia, e o Rei Hassan, do Marrocos. Apesar de meus 8 anos de idade, partilhei da dor dessa humilhante usurpação israeloamericana dos territórios árabes da Palestina, Egito, Síria e Líbano, em sua maioria anexados ao Estado nazissionista israelense. Algumas vezes ao lado de meu Pai, outras ao lado de meu falecido Irmão Mohamed (‘Tchítchi’), a quem ele chamava carinhosamente de Camarada (“Rafik”, em árabe), ouvi as primeiras lições sobre a ética socialista e a necessidade de superar o capitalismo e seu peçonhento comportamento explorador de classes e povos oprimidos.
Em setembro de 1970, quando foi anunciada a morte de Gamal Abdel Nasser, o maior estadista árabe dos últimos quinhentos anos, ‘Abu Kamel’, ‘Seu Rafael’ (o palestino Soubhi Issa Ahmad) e meu Pai, como em vigília, passaram horas a fio diante do receptor de rádio, ora sintonizando as emissoras soviéticas em árabe, espanhol e francês, ora ouvindo os hinos religiosos e músicas instrumentais clássicas da Rádio Cairo, que de hora em hora dava flashes sobre a vida e o legado de Nasser. Numa área reservada da pequena hospedaria de meu Pai, os três trocavam ideias sobre aspectos importantes de serem ressaltados no artigo de homenagem póstuma que meu Pai preparava para publicar em espanhol, português e árabe (o semanário Al-Anbá, de São Paulo; o diário La Razón, da Bolívia, e a revista Mundo Árabe, de Santiago do Chile foram os destinatários desse artigo, cuja versão discursiva foi levada ao ar graças à generosidade da Doutora Laurita Anache, então diretora da antiga Rádio Clube de Corumbá, da qual meu Pai era assíduo colaborador, como também do emblemático Diário de Corumbá, sob a direção do saudoso Rônei Nunes Pereira, que recentemente sucedera seu pai, Jornalista Carlos Paulo Pereira, fundador do jornal).
Outro momento em que os três Amigos estiveram bem unidos, e por mais tempo, foi depois do falecimento de meu Irmão ‘Tchítchi’, também no mês de setembro (de 1974). Desde o velório, no funeral e por meses a fio, ‘Abu Kamel’ e ‘Seu Rafael’ ficavam horas e horas com meu Pai, que decidira reunir tudo o que fosse possível para escrever sobre as memórias de seu primogênito. Embora ‘Abu Kamel’ fosse declaradamente agnóstico (portanto não professava nenhuma religião), estava ao lado de seu Amigo nessas horas difíceis, apoiando-o em todas as suas iniciativas. E como naquele mesmo ano iniciava a Guerra Civil do Líbano, depois de um ato de sabotagem executado por falangistas e sionistas contra um ônibus em Beirute, essa amizade militante entre esses três Amigos se fortaleceria ainda mais.
A minha primeira conversa “de adulto” com ‘Abu Kamel’ se deu aos meus 17 anos, em 1976, quando estava concluindo o ensino médio. De modo didático e com muita delicadeza, explanou sobre sua militância, desde tenra juventude, no socialismo, sua opção pelas atividades políticas embora fosse um aluno dedicado no Líbano e da necessidade de abandonar sua terra, às pressas, depois que sionistas e falangistas celebraram um pacto secreto para exterminar toda e qualquer resistência patriótica em todos os países árabes. Até então, Gamal Abdel Nasser, o líder da Revolução Árabe de 1952 que depôs o fantoche israelobritânico Rei Faruk, ainda não entrara no cenário político do chamado mundo árabe.
Naquela oportunidade conheci o filho mais jovem de ‘Abu Kamel’, que havia chegado do Líbano na companhia de uma das duas irmãs (em razão da Guerra Civil eclodida dois anos antes) e, com a ajuda do Pai, me revelava detalhes da carnificina promovida com o aval das potências ocidentais. Esse genocídio, cujos alvos eram a esquerda libanesa, cada vez mais forte, e os refugiados palestinos (a quem os falangistas e sionistas atribuíam a causa do crescente avanço dos partidos de perfil socialista), durara quase vinte anos e destruíra toda a infraestrutura do país, além de ter causado a morte de mais de meio milhão de civis libaneses e palestinos. Os dois filhos vindos do Líbano permaneceram por quase dois anos, pois com o súbito falecimento da Esposa, ‘Abu Kamel’ ficara profundamente abalado, passando a depender da companhia e do afeto dos demais membros de sua pequena Família no Brasil.
Por conta da saúde debilitada e da idade avançada, ‘Abu Kamel’ decidiu-se pelo retorno ao Líbano no início da década de 1980, embora o Sul do Líbano, região da qual era oriundo, ainda estivesse sob o fogo cerrado das milícias falangistas libanesas e das tropas do exército regular de Israel. No mesmo ano em que o mundo testemunhou com perplexidade o ignóbil massacre de Sabra e Chatila (setembro de 1982), durante o rigoroso inverno libanês, ‘Abu Kamel’ se eternizava em razão de um infarto fulminante ao ser noticiado do precoce falecimento de seu primogênito Kamel, em circunstâncias não esclarecidas. Mais um cidadão do mundo e à frente de seu tempo que não conseguira ver seu país liberto da herança maldita do colonialismo europeu, cujas garras permanecem até hoje sangrando o berço da humanidade.
Don Fauze’ e a Sorveteria Superbom
Um dos primeiros Amigos de meu falecido Pai em Corumbá, o libanês Fauze Rachid, chegara à Cidade Branca junto com a ferrovia Brasil – Bolívia, em 1956, depois de ter vivido uma década naquele país, onde contraíra dois casamentos e conhecera o dentista José Al Hany, um conterrâneo sexagenário que, mais que Amigo, fora um conselheiro. Por conta do tempo em que passou nos trópicos bolivianos, ganhara a alcunha, inclusive no Brasil, de ‘Don Fauze’, que o acompanhou até o fim de seus dias. Era um homem de quase dois metros de altura e de estrutura óssea bem larga (mas não chegava a ser obeso), espirituoso, muito cordial e de voz alta e grave.
Deixara sua terra, como quase todos os seus contemporâneos, por motivos políticos: jovem patriota, recusara-se a alistar-se como soldado das tropas coloniais francesas durante a Segunda Guerra Mundial. Considerado desertor, não lhe restara outra via que a de se aventurar pelo mundo, à procura de perspectivas. Optara pela Bolívia, em cuja região amazônica tinha parentes próximos e onde fizera amizade com o popular dentista libanês que não raro tinha que atuar como médico na densa floresta eivada de enfermidades tropicais. Esse sisudo dentista lhe salvara a pele duas vezes: primeiro, ao tratá-lo de uma malária oportunista em plena selva, e, depois, ao salvá-lo de um intrincado casamento com uma exuberante mas terrivelmente mal-humorada filha de patrício que desde o começo não havia dado liga.
Fora o próprio ‘Doutor Hany’ (como meu Avô materno era carinhosamente chamado) que recomendara o genro (meu Pai) a ‘Don Fauze’, em fevereiro de 1964, quando ele se decidira por Corumbá, em razão da proximidade com a Bolívia (onde estudavam meus três Irmãos mais velhos, já se preparando para o ingresso à Universidade) e as perspectivas que o Coração do Pantanal e da América do Sul poderiam lhe proporcionar como responsável de uma Família numerosa e as despesas decorrentes das necessidades inerentes a quem sempre priorizara a formação profissional, cidadã e ética de sua prole.
Assim que minha saudosa Mãe, minha Irmã caçula e eu (os demais Irmãos estavam em idade escolar e foram matriculados em escolas de Cochabamba, sob a responsabilidade de meus Avôs, só vindo para Corumbá ao final do ano letivo, em dezembro de 1964) desembarcamos no aeroporto de Puerto Suárez, meu Pai, na companhia de ‘Don Fauze’, nos trouxe de carro até a então mal falada Feira Boliviana (quadrilátero que compreendia as ruas Frei Mariano, Antônio Maria, Quinze de Novembro, Joaquim Murtinho e Portocarrero), onde se encontrava o modesto comércio de armarinhos dele, em que nos esperavam três outros conterrâneos Amigos de meu Avô: os senhores Amouri, Wadih e Jamil (cujos sobrenomes não lembro, pois retornaram para a Bolívia alguns anos depois), que brindaram a nossa chegada com o emblemático refrigerante produzido pela Cervejaria Corumbaense S/A, o guaraná Maués, envasado em sua garrafa personalizada, de vidro grosso e transparente.
Don Fauze’ parecia galã de filme hollywoodiano, com seu calhambeque Ford 1930, de cor azul original, a circular garbosamente pelas concorridas ruas corumbaenses do início dos anos 1960. Diferentemente da maioria dos libaneses, ligados ao comércio de roupas feitas e calçados, ele era proprietário da próspera Sorveteria Superbom, situada na esquina das ruas Dom Aquino e Sete de Setembro, que, posteriormente, sob a carismática direção de Dona Benedita (uma senhorinha cuiabana muito simpática), esteve em plenas atividades até 1990. Além de atender por encomendas e em seu estabelecimento, a sorveteria possuía uma frota de vinte carrinhos de sorvete, com os quais promovia seus produtos, bastante populares até a chegada, em 1968, dos Sorvetes Cibran, de efêmera existência, mas que marcou os consumidores corumbaenses por causa dos picolés pasteurizados que até hoje não encontram similares.
Generoso, vendo as dificuldades de o meu Pai se estabelecer com seu modesto comércio de armarinhos na Feira Boliviana, ele o persuadira para que mudasse de ramo para o de sorvetes, com o argumento de que uma cidade tão quente sempre teria espaço para mais uma sorveteria, tendo sido seu primeiro avalista na aquisição de um maquinário italiano e demais equipamentos da então renomada casa Paulo Leandro (cujo slogan era “a sala de visitas da Praça Uruguai”). Como a estrutura da Cibran (formada pelas primeiras sílabas de ‘Cidade Branca’) era industrial e tinha se tornado uma febre em Corumbá, ‘Don Fauze’ vendeu sua sorveteria e, com o dinheiro, decidiu arrendar terras na região do Amolar de um conterrâneo e xará seu, para dedicar-se à agricultura. Passou quase cinco anos nessa localidade, retornando para Corumbá bastante desgostoso com a experiência. Contou ter sido vítima de grileiros e de ter sobrevivido com a esposa e filho por puro milagre, pois escapara de diversas tocaias ao longo desse período.
Com o pouco que lhe restava das economias investidas, ‘Don Fauze’ decidiu por se estabelecer em Puerto Suárez, em fins de 1973, abrindo um pequeno hotel, chamado Seis de Agosto, na rua principal da cidade fronteiriça, ao lado do prédio de um renomado supermercado muito frequentado atualmente por corumbaenses e ladarenses. Em mais de quinze anos de atividades, ele foi referência de turistas bolivianos e estrangeiros pela cordialidade com que os atendia. Brincando, ele dizia ter vencido na vida graças ao exemplo de seu ex-aluno, aprendiz de sorveteiro que virara dono da pousada mais popular de Corumbá entre os turistas mochileiros (referindo-se ao meu Pai, que, depois de abrir a sorveteria, abriu uma modesta pousada com um pequeno restaurante, empreendimento com o qual custeou os estudos e a formação de toda a sua Família).
Risonho e afável, ‘Don Fauze’ era casado com Dona Pura Ceballos de Rachid, boliviana, sua segunda esposa, com quem adotara em meados da década de 1960 um bebê, seu único filho, que se chamou Ahmad Rachid, bem ao estilo libanês. Vítima de infarto fulminante, Dona Pura falecera em meados de 1987, episódio que abalou profundamente ‘Don Fauze’, e, diabético, idoso e por conta de sua saúde frágil, decidiu retornar para o Líbano, deixando seus bens ao filho Ahmad Rachid, hoje casado e pai de dois filhos em Puerto Suárez. Recentemente soubemos que, em sua terra, depois de ter recebido uma única visita do filho, acabou falecendo por complicações cardíacas. Mas o seu caráter nobre e impetuoso deixou profundas marcas nas terras por onde peregrinou como cidadão do mundo.
‘Seu Emílio’ e a Casa Brasil
Na cosmopolita Corumbá dos fins da primeira metade do século XX, entre as muitas casas de móveis de bom gosto existentes no movimentado centro comercial estava a popular Casa Brasil, situada à rua Frei Mariano, entre as ruas América e Colombo, do discreto e afável ‘Seu Emílio’ (Emílio Sayegh, cristão ortodoxo do norte do Líbano, chegado ao Brasil pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial), de estatura média, olhos claros e fala mansa. Da mesma geração de meu saudoso Pai, de quem era Amigo e conselheiro, tratava-se de ávido leitor do poeta Gibran Khalil Gibran e um devorador de livros em árabe, português e francês.
Sua loja de móveis era voltada para o grosso da população, embora o exigente gosto de homem cosmopolita desse um charme metropolitano ao seu empreendimento. Por que Casa Brasil?, certa vez meu Pai perguntara, ao que ele, sem titubeios, respondera: “Esta é nossa Pátria, Okhti! Acolheu-nos, nos deu porvir e nos provê diuturnamente.” Seu apurado e elegante critério estético fazia da Casa Brasil uma filial da Brasília de linhas arrojadas e modernas que desconcertavam os conservadores de plantão. Embora criança, as delicadas combinações de cores de móveis em fórmica e o estilo niemayeriano que ganhara todos os quadrantes do mundo vanguardista me marcaram profundamente. O ‘Tio Emílio’ foi uma referência do bom gosto em boa parte de minha infância.
Era casado com uma elegante senhora, Dona Elza, goiana de ascendência italiana, com quem acabou retornando em 1966 ao estado de Goiás, mas não tiveram filhos. Motorista destro, gostava de dirigir seu recém-adquirido Simca Chambord cinza metálico, versão moderna dos rabos-de-peixe cujo contrabando havia levado à morte o Vereador Edu Rocha em fins da década anterior. Foi sob sua direção que conhecemos o velho “cinturão verde” que Corumbá ainda possuía na década de 1960, além dos balneários e distritos próximos ao perímetro urbano. Gostava de passear, mas não sozinho. Quando não podia contar com a companhia de nossa Família, levava os familiares de algum de seus funcionários, pelo prazer da companhia, de compartilhar o que lhe aprazia.
Com meu Pai, reuniam-se todas as semanas exclusivamente para trocar livros e debater sobre a história e a literatura árabe com o simpático e generoso imigrante sírio Mohamad Ale (ligeiramente mais velho que os dois), outro leitor compulsivo, atacadista de secos e molhados e proprietário de um imponente prédio de esquina, na Frei Mariano com a América, de vários andares, todo coberto de pastilhas, então em voga. Assim como ‘Seu Emílio’, o senhor Mohamad Ale, cuja feição delicada lembrava meu falecido Avô materno, à exceção dos inconfundíveis olhos azuis, da cor do Mediterrâneo, era assinante dos principais jornais brasileiros e de diversas revistas árabes, e fazia questão de enviá-los imediatamente ao meu Pai, sabendo das dificuldades desse imigrante recém-chegado.
‘Seu Emílio’ vivera, no Brasil, em diversas cidades antes de aportar ao concorrido entreposto comercial esplendoroso e cosmopolita que seduzira homens de todas as procedências e aptidões. Ele se confessava “vítima” da sedução pantaneira, pois trocara o promissor Planalto Central goiano para se estabelecer no Pantanal Mato-grossense, na expectativa de ver implantada por estas plagas a Zona Franca, similar à de Manaus. Seu guarda-livros (como os técnicos em contabilidade eram então chamados) era o ‘Seu Maneco’, um pouco mais velho que ele, que fazia as vezes de consultor jurídico, dadas as peculiaridades do fisco brasileiro, já em plena ditadura.
Houve um episódio, em Corumbá, em que outro imigrante libanês, Rafael Laraj (em árabe Abul Araje), vizinho de ‘Seu Emílio’, fora encontrado morto a machadadas em sua própria fábrica de sabão, em meados de 1965. Salvo engano, o prédio era o mesmo do antigo Batidão, do saudoso Clarindo, na esquina das ruas Frei Mariano e Colombo. O crime nunca fora elucidado, e a viúva e filhos da vítima (uns dez anos mais velho que meu Pai), a despeito das diversas tentativas frustradas de, pelo menos, saber quais teriam sido as verdadeiras motivações desse sórdido crime, jamais receberam quaisquer notícias sobre os rumos das investigações. Nessa mesma época, um modesto imigrante libanês, de sobrenome Hamad, fora assassinado em seu próprio veículo (não sei ao certo, se calhambeque ou charrete), deixando viúva e filhos sem qualquer amparo. Essa sucessão de assassinatos de patrícios não elucidados magoou profundamente ‘Seu Emílio’, que a esposa, Dona Elza, deprimida, convenceu o marido a retornar a Goiás, seu derradeiro destino, segundo ‘Seu Maneco’, que havia ficado como seu procurador em Corumbá até meados da década de 1980.
Corumbá teve um tempo em que a chamada “colônia” árabe era, no dizer de meu saudoso Pai, multifacética e sedutoramente diversificada, ao ponto de os diferentes saberem se entender sem qualquer tipo de atrito, sobretudo por conta do generoso cosmopolitismo em pleno coração do Pantanal e da América do Sul. Era, obviamente, tempo de esperanças no mundo árabe, pela liderança do inigualável estadista Gamal Abdel Nasser, o libertador do jugo franco-britânico e israelo-americano – e a despeito dos sanguinários regimes de exceção patrocinados pelo grande império do Norte, causador de profundos traumas em toda a nossa América Latina de povos altivos e atos libertários.
Ahmad Schabib Hany