‘Don Menéndez’ e a
Corumbá da segunda metade do século XX
Qualquer corumbaense ou ladarense com mais de 50 anos de idade vai se
lembrar dos inúmeros compradores de cobre que circulavam pelas movimentadas
avenidas, ruas e alamedas da promissora Corumbá de meados do século XX.
Empurrando, com dignidade, o seu carrinho de mão, geralmente confeccionado com
muita originalidade, eles costumavam circular entre as oito horas da manhã e as
cinco da tarde, cumprindo rigorosamente sua dura jornada de trabalho, sobretudo
pelo calor causticante do centenário centro comercial cosmopolita, ainda
vicejante. Apesar do anonimato que a Vida lhes impunha, cada qual tinha a sua
rica história, sua biografia singular.
Pois um deles, de nacionalidade espanhola, povoou o imaginário de minha
infância, por ter sido um grande Amigo de meu saudoso Pai, desde a nossa
chegada à Cidade Branca, em 1964, até 1970, quando decidira retornar para
Madri, em razão da idade avançada de sua Mãe. Era ‘DonMenéndez’ – ou
Victorio José Menéndez Menéndez –, chegado a Corumbá no pós-guerra de 1945, bem
jovem, como a maioria dos espanhóis perseguidos por Francisco Franco, o
facínora aliado de Adolf Hitler e Benito Mussolini, ao vencer os republicanos
na Guerra Civil Espanhola. Mas sobre esse passado ele se reservara o direito de
não falar, até porque o conhecemos durante os anos mais difíceis do regime de
exceção implantado no Brasil no mesmo ano de nossa chegada e depois proliferado
por toda a nossa América Latina de muitos martírios e grandes silêncios.
Vestido com roupas bem proletárias (nessa época os blue jeans ainda
não estavam na moda, e o seu uso era exclusivo de trabalhadores humildes que,
para proteger sua integridade física, recorriam a esse tipo de traje mais por
necessidade que por conforto) e calçando as velhas alpargatas Sete
Vidas (cujo solado era totalmente confeccionado em cordas
rudimentares), ‘Don Menéndez’ começou a frequentar, rigorosamente
de segunda a sábado, sempre depois do pôr do sol, a modesta sorveteria que meu
Pai acabara de instalar na Feira Boliviana para tomar um copo grande de
refresco de ameixa quase congelado, um diferencial desenvolvido pelo seu tino
comercial cuja composição era segredo dele (meu Pai), como atrativo para
conquistar os clientes. Cabelos bem pretos, um tanto ralos, bigode ao estilo
francês do início do século, tez mourisca e olhos castanhos, estatura mediana
alta e bem magro, não recordo se fumava, mas seu aroma natural era de acentuado
tempero mediterrâneo.
Como todos nós, em casa, falávamos (e ainda falamos) em espanhol, ‘Don Menéndez’
ficava à vontade para matar a saudade de sua língua materna, e aos poucos foi
sentindo confiança para “sair do anonimato”. Mas isso levou algum tempo. Na
verdade, por causa da doença de meu Avô materno, acometido de câncer no
intestino, 1965 foi um ano duplamente duro para minha Família: sem a presença
de minha saudosa Mãe, que precisara viajar a Cochabamba para assistir seu Pai,
em Corumbá meu Pai tinha que “se virar” com os seis filhos mais novos e dar
conta dos compromissos de seus novos empreendimentos: a sorveteria e a
hospedaria. Nesse contexto é que o novo e verdadeiro Amigo de meu Pai adentra
ao nosso cotidiano, Amizade que durou até o final da Vida dos dois, apesar das
dezenas de milhares de quilômetros de distância entre Corumbá e Madri.
As primeiras conversas tratavam de filosofia clássica, que ‘Don Menéndez’
dominava bem, segundo meu Pai, cuja formação universitária era essa. Depois,
sobre literatura e história da humanidade. Cada qual com seu ponto de vista,
mas sempre com muito respeito e em voz prudentemente baixa, não se esquecendo
de que os regimes de exceção ainda estavam em fase de implantação em toda a
América Latina (e na Espanha, ainda muito enraizado, eis que só depois da morte
do generalíssimo Franco, em 1975, é que começa a desanuviar o temporal
intermitente imposto em 1938). Só me lembro de uma discussão que causou o
“sumiço” temporário dele: quando, em tom de desabafo, falara de sua Mãe, em
termos nada educados, e meu Pai, indignado, se permitiu exigir dele retratação.
Esse mal-entendido deve ter durado não mais que uma semana, mas ao cabo desse
interregno, feita a devida retratação, a Amizade jamais se abalara, ao ponto de
meu Pai ter sido seu procurador com plenos poderes para tratar de vários
interesses deixados pendentes ao retornar para a Espanha.
Assim como quando vivia em Corumbá, ‘Don Menéndez’ tratava
de temas complexos em suas longas e ilustrativas cartas, mensalmente escritas,
ora sobre filosofia clássica ou história da humanidade. Com a mesma atenção,
meu Pai respondia ao debate epistolar e compartilhava seu olhar sobre a
conjuntura local (Corumbá), sem deixar de enviar seu relatório periódico como
procurador de seus bens, metodicamente separados. Isso ocorreu por décadas, até
o momento em que ele decidira não mais retornar para o Brasil, autorizando meu
Pai acordar com dois outros sócios seus para vender tudo que deixara aqui,
documentado num longo relatório enviado antes de “bater o martelo” (é que algum
dos sócios havia falecido ou havia alguma pendência que causara preocupação ao
meu Pai).
Muitos anos depois, meu Pai nos contara que ‘Don Menéndez’
era filho único de mãe solteira, e isso havia sido motivo de muita controvérsia
entre eles, pois não conhecera seu Pai, morto durante a Guerra Civil da
Espanha. E foi graças à Amizade com meu Pai, órfão de Mãe aos 5 anos, que ele
resolvera “quebrar o gelo” e fazer uma viagem de reaproximação com a Mãe em
1969, oportunidade que serviu para se decidir pelo seu retorno para sua terra
natal no ano seguinte, quando passou a morar com ela até o final da Vida. Como
sinal de gratidão, logo de sua chegada à Espanha, enviou uma edição atualizada
do Dicionário Larousse Ilustrado em Espanhol, pois o do meu Pai, que eles
usavam amiúde, datava de 1942.
Ainda que não fosse um entusiástico partidário das monarquias, certa
ocasião ‘Don Menéndez’ fez questão de surpreender meu Pai com uma
revista espanhola que vive a fazer apologia às ditas famílias reais mundo
afora, com a novidade de que em um dos emirados árabes havia uma família real
com nosso sobrenome. Mas, para nosso alívio, imediatamente meu Pai esclareceu
de que se tratava de mera coincidência, pois sua ascendência era
sírio-libanesa, nada tendo a ver com essas realezas impostoras criadas pelo
colonialismo europeu, fosse turco ou franco-britânico, no Golfo. Todo final de ano,
ele enviava diversos impressos (revistas, jornais ou livros com temas
relacionados aos da longa correspondência mantida por décadas), para regozijo
de meu Pai.
Quando ‘Don Menéndez’ recebera a notícia sobre o precoce
falecimento de meu Irmão Mohamed (‘Tchítchi’), em setembro de
1974, o Amigo espanhol lhe enviara longa e comovida mensagem com seu depoimento
sobre o “jovem idealista” e “grande promessa”, como ele se expressara,
insistindo ao meu Pai que não acreditasse jamais ser ele um suicida, até porque
seu perfil corajoso e transformador, a exemplo do incansável Pai, era conhecido
e reconhecido por todos. A mesma opinião ele reiterara ao receber, 22 anos
depois, a carta de minha autoria dando conta do súbito falecimento de meu Pai,
em julho de 1996. Fiz questão de ler essa carta para minha saudosa Mãe, que
sempre acompanhara a troca de correspondências entre meu Pai e seus Amigo(a)s,
espalhado(a)s pelo mundo, num tempo em que Internet não passava de ficção, mas
os Correios testemunhavam a existência de pessoas que não viviam sem expressar
seus anseios, sentimentos e convicções por meio do papel cúmplice e solidário
de todas as horas.
Além de cidadão do mundo, solidamente formado com generosos valores
humanistas, ‘Don Menéndez’ era inventor (criara ferramentas geniais
e projetara curiosos instrumentos para diferentes usos, provavelmente nas
noites solitárias vividas aqui, lamentavelmente não patenteados), projetista,
mestre de obras, hábil comerciante e grande investidor. Nos anos em que viveu
modestamente em Corumbá, conseguiu a proeza de adquirir diversos imóveis,
alguns dos quais em sociedade, em diversos bairros da cidade. Entre as
relíquias que deixara hermeticamente acondicionadas em um sótão de um dos
imóveis em que morara, havia grande quantidade de livros de filosofia, história
e literatura em espanhol, além de curiosos relatos versando de diversos temas,
inclusive sobre Amigos seus, cultivados com muito carinho, pois permitiu-se
privar-se de aventuras ou relacionamentos afetivos em sua longa permanência no
Brasil. Solteiro, sem filhos, ‘Don Menéndez’ faleceu solitário em
Madri, no apartamento em que vivera com sua Mãe, em fins de junho de 2005,
tendo sido sepultado imediatamente em razão de o seu corpo estar em avançado
estado de decomposição.
‘Seu Rafael’ e a Casa Estrela
Durante quase trinta anos, ‘Seu Rafael’ atendeu, com roupas feitas,
armarinhos e calçados, os consumidores corumbaenses, ladarenses e bolivianos em
sua tradicional Casa Estrela, situada na esquina das ruas Delamare
e Quinze de Novembro, no mesmo prédio em que hoje funciona um escritório de
advocacia e administradora de imóveis. Entre o início da década de 1960 e
meados da década de 1990 a “lojinha” era uma importante referência para
clientes das mais diversas nacionalidades, classes sociais e procedências.
Ele contava que decidira assim denominar sua primeira loja em homenagem
à Estrela de Belém, da milenar história do Peregrino Nazareno cujo nascimento
fora anunciado pela também Estrela Guia, dos Reis Magos. Como o nome ficaria
muito longo, optou pela forma reduzida, assim homenageando também a emblemática
estrela egípcia, então em ascensão, Gamal Abdel Nasser, fundador da República
Árabe Unida (RAU), estadista de inspiração socialista, mas não subordinado à
União Soviética, embora aliado seu no Oriente Médio, que com Broz Tito e
Jawaharlal Nehru criara o Movimento dos Países Não Alinhados.
Se bem me lembro, foi no início de 1965, ao lado de meu saudoso Pai, meu
primeiro contato com o bem apessoado e verdadeiro gentleman Soubhi
Issa Ahmad – o popular ‘Rafael’ –, refugiado palestino da região de Ramallah,
forçado a sair de sua terra em plena juventude por ter ousado desafiar uma
patrulha das forças coloniais inglesas no pós-guerra de 1945. Então estava por
receber a esposa e duas filhas (de dois casais de filhos), que estavam chegando
do Egito, depois de haver conseguido sair com apenas a roupa do corpo de Kafer
Málek, na Cisjordânia Ocupada (por Israel, Estado criado em novembro de 1947
pela Organização das Nações Unidas – ONU –, sem ter consultado seus maiores
interessados, os habitantes da Palestina milenar).
Foi o ‘Seu Rafael’ que, em meados da década de 1980, me contara,
visivelmente emocionado, diante de meu Pai e de alguns amigos de juventude, que
ao chegar da ilha caribenha de Martinica – onde se fala o francês, além do
crioulo (idioma dos remanescentes da população originária) –, havia
protagonizado um involuntário e constrangedor imbróglio com a esposa de um
importante líder político local, morto seis meses depois. Tratava-se da saudosa
Professora Eunice Ajala Rocha, então jovem esposa do vereador Edu Rocha,
covardemente assassinado na saída da Câmara Municipal em fins de julho de 1959.
Como ele não falava o português e iniciava sua lide de mascate urbano, pedira a
um irreverente libanês ajuda para escrever o que serviria de roteiro para um
diálogo de demonstração e venda de seus produtos, acondicionados em duas
típicas malas de fibra.
Ocorre que o libanês brincalhão ensinara errado, e a brincadeira de
gosto duvidoso poderia ter lhe custado a vida não fosse sua primeira tentativa
de venda na casa desse emblemático político, residente à rua Major Gama, quase
esquina com a rua Treze de Junho. Ele abordara a senhora que prontamente
atendera à costumeira batida de palmas com uma inusitada proposta de “quer
dormir comigo?”, em vez de “quer comprar comigo?”. Ele contava que, sem
entender, vira a perplexidade da jovem senhora, razão pela qual voltara a ler o
que trazia em sua “cola”, meticulosamente redigida em árabe para evitar
qualquer mal-entendido por causa da pronúncia. Diante da insistência do
mascate, a senhora, ofendida, chamara o esposo, que educadamente o acolheu,
apesar de ter ouvido a mesma proposta inusitada. Depois de tê-lo convidado para
tomar café no interior de sua casa, sob a visível contrariedade da esposa
indignada, Edu Rocha comprara alguns produtos e lhe oferecera carona para ir
até outro libanês, o afável Mohamad Omar, proprietário da tradicional Casa
Glória, situada à rua Frei Mariano quase esquina com a Delamare, no afã de
esclarecer a situação constrangedora daquele imigrante com inequívocas
evidências de que desconhecia o que falava em português. Ao ouvir do
conterrâneo árabe o significado daquilo que para ele eram inofensivas palavras,
‘Seu Rafael’ se ajoelhou em sinal de respeito e pediu, em francês, perdão pela
proposta inocentemente formulada, e, depois de se despedir dos dois senhores,
saiu desconcertado à procura do patrício brincalhão para lhe dar o merecido
corretivo, nunca consumado porque simplesmente o imigrante levado, ciente do
que fizera, sumira de sua vista por bom tempo.
Meses depois, qual não fora a sua consternação ao tomar conhecimento do
assassinato daquele gentil e inesquecível cliente brasileiro que o tratara com
cordialidade e compreensão em vez de haver-lhe desferido alguma retaliação
diante da inusitada proposta, indecorosa, sobretudo em se tratando de uma
sociedade de costumes conservadores de meados do século XX. Fizera questão de
ir ao concorrido cortejo fúnebre em sinal de gratidão e admiração por aquele
ser humano que nunca mais tornara a ver.
Por ironia da Vida, alguns anos depois, quando ele finalmente conseguira
estabelecer-se num empreendimento mais confortável – precisamente aCasa
Estrela –, Dona Eunice Ajala Rocha havia sido nomeada funcionária do
Ministério do Trabalho na sede do Serviço de Navegação Bacia do Prata, distante
poucos metros da loja do ex-mascate que involuntariamente a constrangera com
sua “cola” atrevida. Diante de mim, ao confirmar o episódio, a Professora
Eunice, em fins da década de 1980, repetira em tom jocoso a proposta do mascate
recém-chegado e do qual, com o devir dos anos, se tornara amiga e de toda a sua
família.
Em meados da década de 1960, ‘Seu Rafael’ havia conseguido trazer a
esposa, Dona Afefa, e as duas filhas para o Brasil. A mais velha, Abla, ajudava
os pais na loja. A mais nova, Afef, lembro-me que estudava no então GENIC, e
que nos desfiles cívicos levava a bandeira da Palestina, tendo ido depois para
o Cairo continuar os estudos, assim como os dois filhos homens, que se formaram
em medicina, ambos cardiologistas, um deles tendo fixado residência em Madri e
o outro em Nova Iorque. Foi Abla que, ao lado de outras moças e alguns jovens
palestinos, organizou os pioneiros atos públicos pela Palestina em Corumbá. Só
mais tarde é que fora fundada a Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira (acredito
que em 1982). Já a Liga Árabe-Brasileira de Corumbá, que reúne toda a
comunidade árabe da região (libaneses, sírios, palestinos, líbios, jordanianos,
egípcios e marroquinos), data da década de 1950.
Pai extremamente zeloso, ‘Seu Rafael’ se identificava com o meu Pai.
Ainda que tivessem opiniões diferentes sobre diversas questões, inclusive
políticas, unia-os um raro laço fraternal, próprio dos imigrantes, cidadãos do
mundo. Tamanha afinidade, foi com ele que meu Pai aprendeu fazer café, já com
idade avançada, e ficava feliz ao receber o elogio de seu “professor” todas as
manhãs (quase madrugadas) em que recebia a visita do amigo para ouvir as
primeiras notícias do rádio, em árabe, inglês, francês e espanhol. Quando meu
Irmão Mohamed (‘Tchítchi’) falecera, ele e o libanês
assumidamente comunista Mohamed Bazzi (afetuosamente chamado
de ‘Abu Kamel’, ou ‘Pai do Kamel’), proprietário
da Casa das Flores, situada à rua Frei Mariano (quase ao lado do
GENIC), passaram a confortá-lo com visitas semanais, por meses a fio (na
verdade, por toda a Vida, enquanto viveram em Corumbá).
‘Seu Rafael’ dizia, com orgulho, que havia formado dois médicos para a
causa palestina, para que os palestinos fossem melhor assistidos na sua própria
terra, vilipendiada pelos invasores sionistas. Em duas viagens que fizera ao
Egito ainda no tempo de Gamal Abdel Nasser, em 1968 e 1969, por causa dos
filhos que deixara estudando, fez verdadeiros comícios em prol da liberdade de
sua nação do jugo sionista. Naturalizado brasileiro na década de 1980, ele
enaltecia o País que o havia acolhido ainda jovem, questionando a falta de
patriotismo dos figurões com quem convivia por conta das atividades comerciais.
Quando finalmente pôde comprar um carro, já maduro (com mais de 60 anos
de idade), pois os filhos já podiam se sustentar, já formados, trabalhando em
Madri e Nova Iorque, respectivamente (e de vez em quando enviando algum
dinheiro aos pais), fez questão de comprar um Opala Sedan 1974, cor laranja,
seu único carro em toda a vida: de cinco em cinco anos dava um “banho” de
pintura e o deixava sedutoramente “novinho em folha”, tendo somente uma vez
mudado a cor, para grafite (em 1990), como é possível ser visto ainda hoje com
o novo dono, embora bem menos cuidado que com o anterior.
Em 1985 o incansável ‘Seu Rafael’ abrira seu segundo empreendimento,
denominado Loja Primavera, também na rua Delamare, onde hoje
funciona uma casa de instrumentos musicais, a poucos metros do então
movimentado “Ponto Final” dos coletivos urbanos de Corumbá, ao lado da Praça da
República. Sua iniciativa decorrera, sobretudo, de seu dever de consciência de
assumir os cuidados de um bebê nascido fora do casamento cuja mãe perdera a
visão e ficara dependente da ajuda de sua família – o Fabinho, sua razão de ser
até seus momentos finais.
Quando recebeu, exultante, a notícia de que poderia retornar à sua
querida Palestina, ainda que como turista (por apenas 30 dias) e sob o jugo
sionista, pedira a todos os seus amigos, inclusive meu Pai, que cuidassem de
seu caçula caso algo acontecesse com ele. E, pior, é que aconteceu mesmo:
partira feliz, dançando até os estertores da morte, ao lado dos filhos cardiologistas,
que nada puderam fazer, na festa de casamento de uma sobrinha-neta em sua
querida Kafer Málek, em meados de 1993, há 21 anos. Meses depois, Dona Afefa e
Abla liquidavam a loja e faziam as malas para retornar à sua terra. Fabinho,
aos 9 anos e sob os cuidados da segunda e dedicada esposa, Dona Gregória, foi e
é tratado como filho do coração por essa verdadeira mãe andina (de onde é
oriunda), sendo hoje pai-coruja de seu primeiro filho, lembrando bem o Paizão
que não pôde ter ao seu lado até chegar à maioridade, mas cujas recordações o
cobrem de orgulho e lhe são referência como cidadão do mundo que ele também faz
questão de ser.
O seu segundo nome, Issa, é Jesus em árabe. Um nome muito comum entre os
palestinos, que, indistintamente de denominações religiosas, louvam e respeitam
desde sempre. Ele era muçulmano sunita, como a maioria dos palestinos chegados
ao Brasil depois da implantação do Estado sionista, mas suas filhas estudavam
no tradicional colégio das Irmãs salesianas, então GENIC. Fabinho, seu quinto
filho, temporão, teve total liberdade de opção religiosa, tendo estudado,
enquanto o Pai era vivo, em uma escola particular laica (na época a mais
procurada pelos pais de origem palestina por causa dos elevados índices de
aprovação em vestibulares de cursos concorridos em universidades fora da
cidade). Quando decidiu partir para um segundo casamento, soube conviver, com a
mesma galhardia e respeito pela diversidade, com a sua segunda companheira sem
ter tido qualquer conflito de ordem cultural ou religiosa. Além disso, era um
socialista confesso, mas não discriminava os que, dentro de sua comunidade,
fizessem apologia do capitalismo, irmão gêmeo, segundo ele, do imperialismo que
tanta infelicidade trouxe para toda a humanidade, e, sobretudo, para a grande
nação árabe, desde os tempos do colonialismo franco-britânico, recebido
inicialmente de braços abertos pelos líderes árabes, na ânsia de se libertarem
do obscurantista império turco-otomano, de triste memória, responsável pelo
atraso medieval de todo o esplendor cultural árabe entre os séculos XV e XX.
‘Abu Kamel’ e a Casa
das Flores
Nascido no sul do Líbano no raiar do século XX, Mohamad Bazzi – o
popular ‘Abu Kamel’ da Praça Independência dos idos de 1960 a 1980
– chegou a Corumbá pela ferrovia, procedente de São Paulo. Ele desembarcara no
porto de Santos em meados da década de 1950, já homem maduro, com a esposa e os
filhos (dois casais, sendo o mais velho Kamel, por isso ‘Pai do Kamel’, como
reza a tradição oriental). Decidiu-se por Corumbá, que conhecera pelos relatos
de conterrâneos que iam periodicamente a São Paulo para abastecer seus modestos
empreendimentos, depois de alguns anos de trabalho sôfrego na Pauliceia
Desvairada, onde convivera com alguns militantes do sindicalismo engajado brasileiro.
‘Abu Kamel’ precisara abandonar sua terra por estar muito
próximo de Israel, distante do grande centro industrial cairota e no âmago do
seu Partido Comunista, perseguido pelas oligarquias libanesas que, desde 1942,
se sucediam em Beirute no controle do Estado criado pela França, por meio do
nefasto Acordo Nacional, que deixara uma constituição aparentemente
democrática, mas fatiara o governo de acordo a critérios sectários (isto é, por
seitas religiosas), em que a presidência da República cabia a um cristão maronita,
o cargo primeiro-ministro a um muçulmano sunita, a presidência do Parlamento a
um druso, a pasta das Relações Exteriores a um cristão ortodoxo, e a pasta da
Justiça a um muçulmano xiita. Socialistas, comunistas e socialdemocratas, nem
pensar: todos proscritos, proibidos, pois ameaçavam os interesses das famílias
que haviam tomado de assalto os destinos da terra natal de Gibran Khalil
Gibran.
Muito discreto, ‘Abu Kamel’ só falava sobre seu passado
político a amigos muito próximos, como o meu falecido Pai, uma década mais novo
que ele. Dono da poeticamente denominada Casa das Flores, loja de
armarinhos e calçados situada à rua Frei Mariano, quase ao lado do tradicional
GENIC, esse simpático imigrante passava horas a fio compenetrado em obras
clássicas em árabe e francês, mas que com a vigência de um regime anticomunista
no País que o acolhera generosamente optara, prudentemente, pela leitura de
clássicos da literatura e da história universal. Com meu Pai ele se permitia,
discretamente, ouvir programas em árabe da Rádio Paz e Progresso, de Moscou, em
que a análise da conjuntura política mundial passava pelo crivo da Academia de
Ciências da União Soviética.
Eu me lembro tê-lo conhecido em 1967, durante a trágica Guerra dos Seis
Dias (em árabe, “Terceiro Assalto”), quando o grande estadista árabe Gamal
Abdel Nasser sentira o peso de sua primeira derrota militar, vítima da traição
de reis subservientes ao sionismo, como o Rei Hussein, da Jordânia, e o Rei
Hassan, do Marrocos. Apesar de meus 8 anos de idade, partilhei da dor dessa
humilhante usurpação israeloamericana dos territórios árabes da Palestina,
Egito, Síria e Líbano, em sua maioria anexados ao Estado nazissionista
israelense. Algumas vezes ao lado de meu Pai, outras ao lado de meu falecido
Irmão Mohamed (‘Tchítchi’), a quem ele chamava carinhosamente
de Camarada (“Rafik”, em árabe), ouvi as primeiras lições sobre a ética
socialista e a necessidade de superar o capitalismo e seu peçonhento
comportamento explorador de classes e povos oprimidos.
Em setembro de 1970, quando foi anunciada a morte de Gamal Abdel Nasser,
o maior estadista árabe dos últimos quinhentos anos, ‘Abu Kamel’,
‘Seu Rafael’ (o palestino Soubhi Issa Ahmad) e meu Pai, como em vigília,
passaram horas a fio diante do receptor de rádio, ora sintonizando as emissoras
soviéticas em árabe, espanhol e francês, ora ouvindo os hinos religiosos e
músicas instrumentais clássicas da Rádio Cairo, que de hora em hora dava flashes sobre
a vida e o legado de Nasser. Numa área reservada da pequena hospedaria de meu
Pai, os três trocavam ideias sobre aspectos importantes de serem ressaltados no
artigo de homenagem póstuma que meu Pai preparava para publicar em espanhol,
português e árabe (o semanário Al-Anbá, de São Paulo; o
diário La Razón, da Bolívia, e a revista Mundo Árabe,
de Santiago do Chile foram os destinatários desse artigo, cuja versão
discursiva foi levada ao ar graças à generosidade da Doutora Laurita Anache,
então diretora da antiga Rádio Clube de Corumbá, da qual meu Pai era assíduo
colaborador, como também do emblemático Diário de Corumbá, sob a
direção do saudoso Rônei Nunes Pereira, que recentemente sucedera seu pai,
Jornalista Carlos Paulo Pereira, fundador do jornal).
Outro momento em que os três Amigos estiveram bem unidos, e por mais
tempo, foi depois do falecimento de meu Irmão ‘Tchítchi’, também no mês
de setembro (de 1974). Desde o velório, no funeral e por meses a fio, ‘Abu Kamel’
e ‘Seu Rafael’ ficavam horas e horas com meu Pai, que decidira reunir tudo o
que fosse possível para escrever sobre as memórias de seu primogênito. Embora
‘Abu Kamel’ fosse declaradamente agnóstico (portanto não professava nenhuma
religião), estava ao lado de seu Amigo nessas horas difíceis, apoiando-o em
todas as suas iniciativas. E como naquele mesmo ano iniciava a Guerra Civil do
Líbano, depois de um ato de sabotagem executado por falangistas e sionistas
contra um ônibus em Beirute, essa amizade militante entre esses três Amigos se
fortaleceria ainda mais.
A minha primeira conversa “de adulto” com ‘Abu Kamel’ se deu
aos meus 17 anos, em 1976, quando estava concluindo o ensino médio. De modo
didático e com muita delicadeza, explanou sobre sua militância, desde tenra
juventude, no socialismo, sua opção pelas atividades políticas embora fosse um
aluno dedicado no Líbano e da necessidade de abandonar sua terra, às pressas,
depois que sionistas e falangistas celebraram um pacto secreto para exterminar
toda e qualquer resistência patriótica em todos os países árabes. Até então,
Gamal Abdel Nasser, o líder da Revolução Árabe de 1952 que depôs o fantoche
israelobritânico Rei Faruk, ainda não entrara no cenário político do chamado
mundo árabe.
Naquela oportunidade conheci o filho mais jovem de ‘Abu Kamel’,
que havia chegado do Líbano na companhia de uma das duas irmãs (em razão da
Guerra Civil eclodida dois anos antes) e, com a ajuda do Pai, me revelava
detalhes da carnificina promovida com o aval das potências ocidentais. Esse
genocídio, cujos alvos eram a esquerda libanesa, cada vez mais forte, e os
refugiados palestinos (a quem os falangistas e sionistas atribuíam a causa do
crescente avanço dos partidos de perfil socialista), durara quase vinte anos e
destruíra toda a infraestrutura do país, além de ter causado a morte de mais de
meio milhão de civis libaneses e palestinos. Os dois filhos vindos do Líbano
permaneceram por quase dois anos, pois com o súbito falecimento da Esposa, ‘Abu Kamel’
ficara profundamente abalado, passando a depender da companhia e do afeto dos
demais membros de sua pequena Família no Brasil.
Por conta da saúde debilitada e da idade avançada, ‘Abu Kamel’
decidiu-se pelo retorno ao Líbano no início da década de 1980, embora o Sul do
Líbano, região da qual era oriundo, ainda estivesse sob o fogo cerrado das
milícias falangistas libanesas e das tropas do exército regular de Israel. No
mesmo ano em que o mundo testemunhou com perplexidade o ignóbil massacre de
Sabra e Chatila (setembro de 1982), durante o rigoroso inverno libanês, ‘Abu Kamel’
se eternizava em razão de um infarto fulminante ao ser noticiado do precoce
falecimento de seu primogênito Kamel, em circunstâncias não esclarecidas. Mais
um cidadão do mundo e à frente de seu tempo que não conseguira ver seu país
liberto da herança maldita do colonialismo europeu, cujas garras permanecem até
hoje sangrando o berço da humanidade.
‘Don Fauze’ e a Sorveteria
Superbom
Um dos primeiros Amigos de meu falecido Pai em Corumbá, o libanês Fauze
Rachid, chegara à Cidade Branca junto com a ferrovia Brasil – Bolívia, em 1956,
depois de ter vivido uma década naquele país, onde contraíra dois casamentos e
conhecera o dentista José Al Hany, um conterrâneo sexagenário que, mais que
Amigo, fora um conselheiro. Por conta do tempo em que passou nos trópicos
bolivianos, ganhara a alcunha, inclusive no Brasil, de ‘Don Fauze’,
que o acompanhou até o fim de seus dias. Era um homem de quase dois metros de
altura e de estrutura óssea bem larga (mas não chegava a ser obeso),
espirituoso, muito cordial e de voz alta e grave.
Deixara sua terra, como quase todos os seus contemporâneos, por motivos
políticos: jovem patriota, recusara-se a alistar-se como soldado das tropas
coloniais francesas durante a Segunda Guerra Mundial. Considerado desertor, não
lhe restara outra via que a de se aventurar pelo mundo, à procura de
perspectivas. Optara pela Bolívia, em cuja região amazônica tinha parentes
próximos e onde fizera amizade com o popular dentista libanês que não raro
tinha que atuar como médico na densa floresta eivada de enfermidades tropicais.
Esse sisudo dentista lhe salvara a pele duas vezes: primeiro, ao tratá-lo de
uma malária oportunista em plena selva, e, depois, ao salvá-lo de um
intrincado casamento com uma exuberante mas terrivelmente mal-humorada filha
de patrício que desde o começo não havia dado liga.
Fora o próprio ‘Doutor Hany’ (como meu Avô materno era carinhosamente
chamado) que recomendara o genro (meu Pai) a ‘Don Fauze’, em
fevereiro de 1964, quando ele se decidira por Corumbá, em razão da proximidade
com a Bolívia (onde estudavam meus três Irmãos mais velhos, já se preparando
para o ingresso à Universidade) e as perspectivas que o Coração do Pantanal e
da América do Sul poderiam lhe proporcionar como responsável de uma Família
numerosa e as despesas decorrentes das necessidades inerentes a quem sempre
priorizara a formação profissional, cidadã e ética de sua prole.
Assim que minha saudosa Mãe, minha Irmã caçula e eu (os demais Irmãos
estavam em idade escolar e foram matriculados em escolas de Cochabamba, sob a
responsabilidade de meus Avôs, só vindo para Corumbá ao final do ano letivo, em
dezembro de 1964) desembarcamos no aeroporto de Puerto Suárez, meu Pai, na
companhia de ‘Don Fauze’, nos trouxe de carro até a então mal
falada Feira Boliviana (quadrilátero que compreendia as ruas Frei Mariano,
Antônio Maria, Quinze de Novembro, Joaquim Murtinho e Portocarrero), onde se
encontrava o modesto comércio de armarinhos dele, em que nos esperavam três
outros conterrâneos Amigos de meu Avô: os senhores Amouri, Wadih e Jamil (cujos
sobrenomes não lembro, pois retornaram para a Bolívia alguns anos depois), que
brindaram a nossa chegada com o emblemático refrigerante produzido pela Cervejaria
Corumbaense S/A, o guaraná Maués, envasado em sua garrafa
personalizada, de vidro grosso e transparente.
‘Don Fauze’ parecia galã de filme hollywoodiano, com seu
calhambeque Ford 1930, de cor azul original, a circular garbosamente pelas
concorridas ruas corumbaenses do início dos anos 1960. Diferentemente da
maioria dos libaneses, ligados ao comércio de roupas feitas e calçados, ele era
proprietário da próspera Sorveteria Superbom, situada na esquina
das ruas Dom Aquino e Sete de Setembro, que, posteriormente, sob a carismática
direção de Dona Benedita (uma senhorinha cuiabana muito simpática), esteve em
plenas atividades até 1990. Além de atender por encomendas e em seu
estabelecimento, a sorveteria possuía uma frota de vinte carrinhos de sorvete,
com os quais promovia seus produtos, bastante populares até a chegada, em 1968,
dos Sorvetes Cibran, de efêmera existência, mas que marcou os
consumidores corumbaenses por causa dos picolés pasteurizados que até hoje não
encontram similares.
Generoso, vendo as dificuldades de o meu Pai se estabelecer com seu
modesto comércio de armarinhos na Feira Boliviana, ele o persuadira para que
mudasse de ramo para o de sorvetes, com o argumento de que uma cidade tão
quente sempre teria espaço para mais uma sorveteria, tendo sido seu primeiro
avalista na aquisição de um maquinário italiano e demais equipamentos da então
renomada casa Paulo Leandro (cujo slogan era
“a sala de visitas da Praça Uruguai”). Como a estrutura da Cibran (formada
pelas primeiras sílabas de ‘Cidade Branca’) era industrial e tinha se tornado
uma febre em Corumbá, ‘Don Fauze’ vendeu sua sorveteria e, com o
dinheiro, decidiu arrendar terras na região do Amolar de um conterrâneo e xará
seu, para dedicar-se à agricultura. Passou quase cinco anos nessa localidade,
retornando para Corumbá bastante desgostoso com a experiência. Contou ter sido
vítima de grileiros e de ter sobrevivido com a esposa e filho por puro milagre,
pois escapara de diversas tocaias ao longo desse período.
Com o pouco que lhe restava das economias investidas, ‘Don Fauze’
decidiu por se estabelecer em Puerto Suárez, em fins de 1973, abrindo um
pequeno hotel, chamado Seis de Agosto, na rua principal da cidade
fronteiriça, ao lado do prédio de um renomado supermercado muito frequentado
atualmente por corumbaenses e ladarenses. Em mais de quinze anos de atividades,
ele foi referência de turistas bolivianos e estrangeiros pela cordialidade com
que os atendia. Brincando, ele dizia ter vencido na vida graças ao exemplo de
seu ex-aluno, aprendiz de sorveteiro que virara dono da pousada mais popular de
Corumbá entre os turistas mochileiros (referindo-se ao meu Pai, que, depois de
abrir a sorveteria, abriu uma modesta pousada com um pequeno restaurante,
empreendimento com o qual custeou os estudos e a formação de toda a sua
Família).
Risonho e afável, ‘Don Fauze’ era casado com Dona Pura
Ceballos de Rachid, boliviana, sua segunda esposa, com quem adotara em meados
da década de 1960 um bebê, seu único filho, que se chamou Ahmad Rachid, bem ao
estilo libanês. Vítima de infarto fulminante, Dona Pura falecera em meados de 1987,
episódio que abalou profundamente ‘Don Fauze’, e, diabético, idoso
e por conta de sua saúde frágil, decidiu retornar para o Líbano, deixando seus
bens ao filho Ahmad Rachid, hoje casado e pai de dois filhos em Puerto Suárez.
Recentemente soubemos que, em sua terra, depois de ter recebido uma única
visita do filho, acabou falecendo por complicações cardíacas. Mas o seu caráter
nobre e impetuoso deixou profundas marcas nas terras por onde peregrinou como
cidadão do mundo.
‘Seu Emílio’ e a Casa Brasil
Na cosmopolita Corumbá dos fins da primeira metade do século XX, entre
as muitas casas de móveis de bom gosto existentes no movimentado centro
comercial estava a popular Casa Brasil, situada à rua Frei Mariano,
entre as ruas América e Colombo, do discreto e afável ‘Seu Emílio’ (Emílio
Sayegh, cristão ortodoxo do norte do Líbano, chegado ao Brasil pouco antes da
eclosão da Segunda Guerra Mundial), de estatura média, olhos claros e fala
mansa. Da mesma geração de meu saudoso Pai, de quem era Amigo e conselheiro,
tratava-se de ávido leitor do poeta Gibran Khalil Gibran e um devorador de
livros em árabe, português e francês.
Sua loja de móveis era voltada para o grosso da população, embora o
exigente gosto de homem cosmopolita desse um charme metropolitano ao seu empreendimento.
Por que Casa Brasil?, certa vez meu Pai perguntara, ao que ele, sem
titubeios, respondera: “Esta é nossa Pátria, Okhti! Acolheu-nos,
nos deu porvir e nos provê diuturnamente.” Seu apurado e elegante critério
estético fazia da Casa Brasil uma filial da Brasília de linhas
arrojadas e modernas que desconcertavam os conservadores de plantão. Embora
criança, as delicadas combinações de cores de móveis em fórmica e o estilo
niemayeriano que ganhara todos os quadrantes do mundo vanguardista me marcaram
profundamente. O ‘Tio Emílio’ foi uma referência do bom gosto em boa parte de
minha infância.
Era casado com uma elegante senhora, Dona Elza, goiana de ascendência
italiana, com quem acabou retornando em 1966 ao estado de Goiás, mas não
tiveram filhos. Motorista destro, gostava de dirigir seu recém-adquirido Simca
Chambord cinza metálico, versão moderna dos rabos-de-peixe cujo
contrabando havia levado à morte o Vereador Edu Rocha em fins da década
anterior. Foi sob sua direção que conhecemos o velho “cinturão verde” que
Corumbá ainda possuía na década de 1960, além dos balneários e distritos
próximos ao perímetro urbano. Gostava de passear, mas não sozinho. Quando não
podia contar com a companhia de nossa Família, levava os familiares de algum de
seus funcionários, pelo prazer da companhia, de compartilhar o que lhe aprazia.
Com meu Pai, reuniam-se todas as semanas exclusivamente para trocar
livros e debater sobre a história e a literatura árabe com o simpático e
generoso imigrante sírio Mohamad Ale (ligeiramente mais velho que os dois),
outro leitor compulsivo, atacadista de secos e molhados e proprietário de um
imponente prédio de esquina, na Frei Mariano com a América, de vários andares,
todo coberto de pastilhas, então em voga. Assim como ‘Seu Emílio’, o senhor
Mohamad Ale, cuja feição delicada lembrava meu falecido Avô materno, à exceção
dos inconfundíveis olhos azuis, da cor do Mediterrâneo, era assinante dos
principais jornais brasileiros e de diversas revistas árabes, e fazia questão
de enviá-los imediatamente ao meu Pai, sabendo das dificuldades desse imigrante
recém-chegado.
‘Seu Emílio’ vivera, no Brasil, em diversas cidades antes de aportar ao
concorrido entreposto comercial esplendoroso e cosmopolita que seduzira homens
de todas as procedências e aptidões. Ele se confessava “vítima” da sedução
pantaneira, pois trocara o promissor Planalto Central goiano para se
estabelecer no Pantanal Mato-grossense, na expectativa de ver implantada por
estas plagas a Zona Franca, similar à de Manaus. Seu guarda-livros (como os
técnicos em contabilidade eram então chamados) era o ‘Seu Maneco’, um pouco
mais velho que ele, que fazia as vezes de consultor jurídico, dadas as
peculiaridades do fisco brasileiro, já em plena ditadura.
Houve um episódio, em Corumbá, em que outro imigrante libanês, Rafael
Laraj (em árabe Abul Araje), vizinho de ‘Seu Emílio’, fora encontrado morto a
machadadas em sua própria fábrica de sabão, em meados de 1965. Salvo engano, o
prédio era o mesmo do antigo Batidão, do saudoso Clarindo, na esquina
das ruas Frei Mariano e Colombo. O crime nunca fora elucidado, e a viúva e
filhos da vítima (uns dez anos mais velho que meu Pai), a despeito das diversas
tentativas frustradas de, pelo menos, saber quais teriam sido as verdadeiras
motivações desse sórdido crime, jamais receberam quaisquer notícias sobre os
rumos das investigações. Nessa mesma época, um modesto imigrante libanês, de
sobrenome Hamad, fora assassinado em seu próprio veículo (não sei ao certo, se
calhambeque ou charrete), deixando viúva e filhos sem qualquer amparo. Essa
sucessão de assassinatos de patrícios não elucidados magoou profundamente ‘Seu
Emílio’, que a esposa, Dona Elza, deprimida, convenceu o marido a retornar a
Goiás, seu derradeiro destino, segundo ‘Seu Maneco’, que havia ficado como seu
procurador em Corumbá até meados da década de 1980.
Corumbá teve um tempo em que a chamada “colônia” árabe era, no dizer de
meu saudoso Pai, multifacética e sedutoramente diversificada, ao ponto de os
diferentes saberem se entender sem qualquer tipo de atrito, sobretudo por conta
do generoso cosmopolitismo em pleno coração do Pantanal e da América do Sul.
Era, obviamente, tempo de esperanças no mundo árabe, pela liderança do
inigualável estadista Gamal Abdel Nasser, o libertador do jugo franco-britânico
e israelo-americano – e a despeito dos sanguinários regimes de exceção
patrocinados pelo grande império do Norte, causador de profundos traumas em
toda a nossa América Latina de povos altivos e atos libertários.
Ahmad Schabib Hany