Professora
Eunice Ajala Rocha, a história com nome e sobrenome
A Professora Eunice Ajala Rocha
se eterniza sem ter visto a reparação moral de Edu Rocha, assassinado a
queima-roupa por um denunciado impune, e sem ter podido ver a publicação da
pesquisa pioneira sobre o cururu, o siriri, o banho de São João e a viola de
cocho, sua dissertação de Mestrado, em 1982.
Com o falecimento da Professora
Eunice Ajala Rocha, ocorrido na primeira semana de 2013 -- a apenas dois meses
do sepultamento de seu segundo esposo, Nineve Franco de Arruda --, encerra-se
um rico período da história recente de Corumbá, ainda não suficientemente
conhecido pelas novas gerações de corumbaenses e sul-mato-grossenses.
Docente aposentada da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, lotada no então Centro Universitário de Corumbá,
ela é muito mais que uma proba ex-secretária de Educação e Cultura do município
da primeira gestão do prefeito Fadah Scaff Gattass, por indicação do então
vereador peemedebista Valmir Batista Corrêa: como pesquisadora resgatou o siriri
e o cururu para a cultura regional e revelou para a posteridade talentos até
então anônimos, como o cururueiro Agripino Magalhães Soares, o da viola de
cocho (celebrizado pela saudosa Helô Urt quando gestora da Casa de Cultura Luiz
de Albuquerque), e como cidadã foi protagonista de uma fase épica (mas nem por
isso menos tumultuada) da política corumbaense, em que o célebre vereador Edu
Rocha, seu primeiro esposo, resultou metralhado na saída da Câmara Municipal,
depois de denunciar autoridades federais baseadas em Corumbá envolvidas com o
tráfico de carros contrabandeados -- os famosos “rabos-de-peixe” --, cujo
mandante permaneceu impune, apesar de todas as evidências e reportagens
publicadas em uma das maiores revistas semanais de então, a O Cruzeiro,
que dedicara a capa ao famigerado fato.
Há um episódio ilustrativo da
urbanidade – ou, melhor, da magnanimidade – do casal Eunice – Edu Rocha,
conhecido por pouquíssimas pessoas, que foi narrado pelo falecido protagonista
e confirmado pela professora, duas décadas atrás: a poucos meses do assassinato
do vereador Edu Rocha, em fins da década de 1950, um imigrante palestino, então
recém-chegado, aportara no início da manhã à casa do renomado político para,
como mascate, oferecer suas mercadorias na típica mala de fibra, tendo sido
recebido pela esposa. Como o mascate ainda não falava o português, algum
conterrâneo lhe fizera um texto grafado em árabe com o que deveria ser um
preâmbulo de abordagem em português para expor os seus produtos. Contudo, por
brincadeira de mau gosto ou pura má-fé, o conterrâneo do mascate, depois do
cumprimento inicial, escrevera algo como “você quer dormir comigo?”, em vez de
solicitar permissão para iniciar a demonstração de seus artigos à cliente.
Tomada pelo susto (imagine-se o impacto daquelas palavras na metade do século
passado), a professora Eunice pediu ao mascate que repetisse o que lera, e ele,
com a inocência de quem não sabia o que estava lendo, insistira na proposta
indecorosa. Ato contínuo, ela pediu licença para chamar o esposo, que se
preparava para sair, que, depois da leitura do cumprimento com a dificuldade
característica de um recém-chegado ao país, ouviu atônito a repetição do
bizarro “você quer dormir comigo?”. Mal refeito da inusitada proposta, pediu à
esposa que servisse um café ao mascate e depois de telefonar para alguém
convidou o imigrante que o acompanhasse para poder compreender seu propósito.
Algumas quadras depois, chegam a um tradicional estabelecimento de um imigrante
libanês em pleno centro da cidade e Edu Rocha pede ao mascate que voltasse a
ler sua “cola” diante do comerciante, que ruborizado lhe traduziu os termos de
sua proposta. Envergonhado, o mascate pediu, de joelhos, perdão pelo ocorrido e
se despediu deles, apressadamente, à procura do conterrâneo irresponsável, que
por sua brincadeira poderia ter lhe causado a própria morte se não tivesse a
sorte de ter sido recebido por esse casal afável. Meses depois, ao saber da
morte daquele polido senhor que praticamente lhe salvara a vida, ele fez
questão de ir ao seu funeral em sinal de gratidão. Por coincidência da vida, a
Professora Eunice, antes de ser docente do Centro Universitário de Corumbá,
trabalhou num órgão do Ministério do Trabalho ligado à atividade marítima,
sediado no extinto Serviço de Navegação da Bacia do Prata, cujo prédio era
próximo da loja do já próspero comerciante palestino, situada também na rua
Quinze de Novembro, o que possibilitou que ele retribuísse aquele gesto
magnânimo com a amizade e o respeito de toda a sua família, tendo transformado
um constrangedor episódio em uma anedota sem maiores consequências, algumas
vezes contadas aos amigos mais próximos. Hoje, à exceção do comerciante libanês
procurado por Edu Rocha para esclarecer o imbróglio, esses protagonistas não
mais estão entre nós, mas deixaram uma lição de urbanidade e cosmopolitismo
para a posteridade, a despeito do indolente descaso com a memória pública em
nossa região.
A amnésia coletiva reinante no
coração do Pantanal, aliás, é pródiga: personagens medíocres sem qualquer
atributo meritório são alvo de repetidas homenagens em vida. Já personalidades
com a biografia de uma cidadã digna e proba, porém discreta e humilde, como a
Professora Eunice Ajala Rocha, passam despercebidas, quase anônimas, por nosso
cotidiano de bajulações entediantes. Em 2002, o escritor Augusto César Proença
e eu fizemos uma tentativa, lamentavelmente frustrada, de publicar uma versão
em formato não acadêmico da dissertação de mestrado da Professora Eunice, em
que faz generosos aportes à cultura popular e à identidade cultural da região.
Decorridos dez anos, sequer a versão acadêmica de sua dissertação foi
publicada. Talvez agora, com seu falecimento, os doutos do saber acadêmico
tomem a -- ainda que extemporânea -- iniciativa de publicar seu trabalho, até
para que não seja alvo de plágio pelos colecionadores de títulos acadêmicos que
vivem a garimpar méritos a qualquer custo.
Ahmad Schabib Hany
Feitas duas correções posteriores à publicação: adequação ortográfica do termo "siriri" e substituição do nome da revista semanal Manchete pelo da O Cruzeiro, em cujas edições foram publicadas denúncias antes e depois do assassinato do Vereador Edu Rocha, em 1959.