Alberto Dines, Mestre Jornalista (1932 – 2018)
A despeito das profundas diferenças ideológicas e
políticas, o Jornalista Alberto Dines fez história e ajudou a construir a História
e o Jornalismo no Brasil com inegável respeito às liberdades democráticas e à
diversidade de posições políticas, o que o tornou referência para diversas
gerações.
“Todo Jornalismo é investigativo,
ou não é Jornalismo. Donde se conclui que o que lemos, ouvimos e vemos todos os
dias na imprensa não é Jornalismo.” Uma das últimas frases emblemáticas de Alberto
Dines, proferida em 2015 e selecionada para a posteridade por sua leal equipe
do Observatório da Imprensa -- seu
derradeiro empreendimento iniciado na televisão e desenvolvido na internet com
exclusividade a partir de 2016, por causa do golpe de 13 de maio, com sua
exclusão da grade da Rede Brasil por decisão unilateral da tropa de choque do
usurpador Merd$hell T(r)emer --, resume eloquentemente seu espírito crítico
aguçado e sua vocação de rebelde numa categoria predominantemente de “domesticado(a)s”,
vaidoso(a)s e medíocres que vivem de bajular as elites e ridicularizar o
caráter de seu povo.
Nascido no período entre-guerras,
Dines se iniciou no Jornalismo na cobertura crítica às artes e letras -- no
dizer embolorado de jornalistas que se pretendem membros da intelectualidade
provinciana de nossos nada generosos dias, na (sic) editoria de cultura -- na revista A Cena Muda e em seguida na então recém-criada revista Visão, no apoteótico Distrito Federal cosmopolita
da metade do século passado, o Rio de Janeiro de todos os encantos. Eram tempos
de efervescência política, cultural, artística, social, econômica e até
esportiva: ainda que o lacerdismo udenista, vocacionado para golpes
inconseqüentes (tal qual o contemporâneo), estivesse emergente e, a bem da
verdade, contaminando boa parcela da antiga corte, a bossa-nova, a MPB, o
baião, a UNE com seu inventivo CPC (Centros Populares de Cultura), o Cinema
Novo e a flamejante geração da dramaturgia televisivo-cinematográfica com
autênticas raízes literárias, davam o tom, o estilo e o aroma desses
fulgurantes tempos, nefastamente interrompidos pelos ideais fascistoides,
requentados pelos golpistas em 1964.
É verdade que, nascido numa
família de imigrantes judeus, Dines reproduzira a dialética hegeliana ao longo
de sua existência: se em 1964 fez coro aos que combatiam a “implantação de uma
república sindical no Brasil”, quando editor-chefe do sisudo mas inovador Jornal do Brasil mostrou com maestria
sua rebeldia em grande estilo, em pelo menos duas vezes: em 14 de dezembro de
1968, ao anunciar a edição do funesto Ato Institucional nº 5 (AI-5), entrou
para a História (não só do Jornalismo, mas da disciplina propriamente dita) com
sua irreverente mensagem aos brasileiros, no espaço do jornal reservado para a
previsão do tempo, localizado ao lado esquerdo de seu título: “Tempo negro.
Temperatura sufocante. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º,
em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras.”
Outra façanha que protagonizou
foi o engenhoso drible à censura em 12 de setembro de 1973, triste momento da
história da América Latina, quando a primeira experiência eleitoral da esquerda
sofre o sangrento golpe do sanguinário facínora Augusto Pinochet. Ao
interpretar literalmente a portaria do Departamento de Censura da Polícia
Federal, de que ficava determinantemente proibido publicar manchete sobre a
morte de Salvador Allende, o presidente socialista deposto e morto no golpe,
uma sacada digna de mestre transformou aquela edição em histórica, pois
simplesmente a matéria do enviado especial a Santiago ocupou toda a primeira
página, mas sem qualquer manchete e foto, tendo sido objeto de inúmeras aulas,
seminários, dissertações e teses de Jornalismo desde então. Essa proeza,
obviamente, lhe custou o emprego, conquistado havia mais de dez anos antes.
Dialeticamente, Dines foi se
superando de modo inesgotável, fosse como professor universitário ou como
operário da informação, a despeito de sua aura fidalga de lorde anglo-saxão,
certamente sua maior aliada, posto que, diferentemente de muitos de seus
contemporâneos, ele muitas vezes enfrentou solitariamente as feras ávidas de
sangue dos malditos tempos do obscurantismo fascista que teima em bater a nossa
porta de tempos em tempos. Na empresa de Nascimento Britto e da Condessa
Pereira Carneiro, como era solenemente chamada a sua viúva, o Jornal do Brasil não só ganhou
credibilidade jornalisticamente, mas se afirmou como uma dinâmica e inovadora
usina que editou literalmente Cadernos de
Jornalismo e Comunicação, cujos exemplares contribuíram enormemente para
que jovens curiosos se iniciassem no Jornalismo nos recônditos do País, num
tempo em que só os impressos e as ondas do rádio protagonizavam a difusão dos
fatos e do saber neste território de dimensões superlativas.
Ainda no Jornal do Brasil, Dines foi determinante para a implantação da
Agência JB, que, ao lado das conservadoríssimas Agência Estado e Agência de
Notícias dos Diários Associados, é pioneira nos serviços jornalísticos e
editoriais para coirmãs no Brasil e América Latina. E foi por conta dessa visão
arrojada que o colega igualmente ousado e inovador Claudio Abramo, então
diretor da Folha de S.Paulo, convenceu
o patrão Octavio Frias de Oliveira, acionista majoritário do Grupo Folhas, a
contratá-lo como chefe da sucursal no Rio e parceiro de aventura no principal
jornal de empresários envolvidos até as tampas com as atividades fascistas da
Operação Bandeirantes (Oban), anos antes. Assim, em 1975, Dines e Abramo
iniciam por certo a jornada mais vanguardista e modernizante na Folha e no Jornalismo em todos os tempos:
contratação de Jornalistas (com letra maiúscula) de verdade, muitos proibidos
até então de trabalhar na grande imprensa (como Tarso de Castro, Martha
Alencar, Sérgio Augusto, Plínio Marcos, Nelson Merlin e Fortuna, oriundos da
imprensa alternativa, como O Pasquim,
Já e Coojornal), responsáveis pela consolidação desse jornal como
porta-voz -- ou melhor, vitrine -- da sociedade civil na derradeira fase de
enfrentamento da ditadura.
Naquele momento a Folha se torna o farol da imprensa
brasileira, e a coluna dominical inaugurada por Dines, em 6 julho de 1975, na
página 10 do primeiro caderno com o sugestivo nome Jornal dos Jornais inaugura, com bastante pioneirismo o tempo dos ombudsmen,
e com a maestria de um veterano da estatura de professor de Jornalismo com uma
acuidade e ousadia a toda prova que antagoniza inclusive com colegas de
vanguarda, como os integrantes do Folhetim
(do próprio jornal) e da Istoé do grande
Mino Carta: Dines ironizou o que chamara de “troca de gentilezas” entre as duas
equipes, pois primeiro o time de bambas liderado por Tarso de Castro e Nelson
Merlin dedicara algumas páginas com matéria de capa com Mino Carta e depois a
revista semanal dedicou uma reportagem sobre o irreverente suplemento dominical
da Folha, tendo azedado as relações
entre esses ícones da imprensa brasileira de resistência à ditadura. Abramo,
como bom apaziguador, conseguiu levar o projeto até o dia em que o veterano
cronista Lourenço Diaféria, em 1º de setembro de 1977, bateu de frente com a
chamada “linha-dura” do regime com a crônica “Herói. Morto. Nós.” e foi preso e
enquadrado na Lei de Segurança Nacional, o que levou os editores da Ilustrada, caderno em que a coluna
diária era publicada, a deixar o espaço da coluna em branco, em protesto contra
aquela arbitrariedade -- foi o pretexto esperado pelo secretário de Segurança
Pública de São Paulo, Coronel Antônio Erasmo Dias, para invadir o prédio do
jornal e pedir a cabeça dos diretores e Jornalistas de vanguarda, considerados
perigosos por ele.
Enquanto o veterano Claudio
Abramo aceitava o “exílio” como correspondente da Folha em Londres, Dines resistira estoicamente às ameaças da
extrema-direita babenta, que insistia em encetar ataques, inclusive físicos, a
diversos meios, sobretudo à imprensa alternativa, por meio de covardes
atentados a bancas de jornais que vendessem exemplares dos “jornais
comunistas”, até ter chegado ao extremo de enviar carta-bomba à presidência do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio, que matou a
secretária, dona Lyda Monteiro, e, pouco tempo depois, o acidente cometido
pelos militares executores do atentado ao Rio Centro, onde acontecia um show
com expoentes da MPB, como Chico Buarque, alusivo ao Primeiro de Maio de 1981,
também no Rio. Mas o interventor da Folha,
Boris Casoy, se valeu das diferenças entre Dines e o pessoal de O Pasquim para demover o filho do
patrão, Otávio Frias Filho, que já virara timoneiro do Grupo Folha, e conseguir
a sua demissão.
Enquanto Abramo procurava outros
meios para continuar com a dignidade de sempre o seu ofício, tendo mantido uma
coluna (Sextante) na revista Istoé dos tempos de Mino Carta e editado
um jornal mensal sobre literatura, o emblemático LeiaLivros (da Editora Símbolo), Dines foi acolhido curiosamente
pelos ex-patrões de Mino, Victor e Robert Civita, como diretor editorial da
Abril brasileira e, em seguida, fundador e diretor da edição portuguesa da
revista Exame, quando o grupo da Marginal
Tietê plantara uma arvorezinha na terra do eterno José Saramago, com o
sugestivo nome de Editora Morumbi (da qual era seu secretário editorial), mais
tarde negociada para o Grupo Visão, de Portugal, que edita até hoje esta e
outras revistas da decadente e golpista editora brasileira. E como era de se
esperar, a permanência de Dines não foi longa, tendo retornado ao Brasil, em
1995, depois de concluir pesquisas em instituições lusitanas a propósito da
Inquisição e a perseguição aos judeus, que lhe rendeu algumas obras.
Seu derradeiro empreendimento foi
o Observatório da Imprensa, dentro do
conceito do saudoso Jornal dos Jornais,
criado em 1994, ainda em Portugal, como programa de televisão na Cultura de São
Paulo e na Educativa do Rio, e, mais tarde, no governo Lula, assumido pela Rede
Brasil (até ser tirado do ar pelos golpistas, em 2016). Esse projeto acabou se
transformando em instituto (isto é, organização social, sem fins lucrativos), em
que combinou a crítica à atuação cada vez mais mercantil da imprensa ao papel
formativo do tempo em que era professor universitário de Jornalismo. É o que
pode ser chamado de topo de um ofício levado com extremo rigor e dignidade,
ainda que por algumas vezes tivesse resvalado no apoio ao lado equivocado da
História, até por conta de sua origem familiar, bastante conservadora. E a
despeito de sua postura declaradamente hostil à esquerda, foi o Presidente Lula
que lhe conferiu, em março de 2010, a Grã-Cruz da Ordem do Mérito das
Comunicações, por suas relevantes contribuições para o Jornalismo, as
liberdades democráticas e o Estado Democrático de Direito no Brasil.
Ao lado de Jornalistas altivos e
de digna referência, Alberto Dines entra para a História, para a História do
Jornalismo e para a História do Brasil como digno Mestre, grande operário do
Jornalismo e um ousado e exigente rebelde que fez da redação um centro difusor
de luz e inquietude, a irradiar de modo ilimitado o espírito crítico do qual
jamais se afastou em toda a sua estoica existência.
Ahmad
Schabib Hany