A crise financeira global do capitalismo em 2008 desencadeou uma nova
corrida pelos recursos naturais e energéticos no mundo, que se manifesta
na geopolítica, economia e ecologia política. Essa corrida pode ser
percebida por algumas tendências aparentemente desconexas:
1) elevação dos preços dos recursos naturais e primários no mercado
internacional, dos investimentos externos diretos (IED) e lucratividade
das empresas desse setor;
2) eclosão de conflitos dentro dos Estados e entre Estados (guerras
convencionais e civis relacionadas a recursos naturais, com a
fragmentação e descentralização de alguns Estados e a centralização de
poder em outros; conflitos diplomáticos, governamentais e entre elites;
conflitos entre movimentos sociais, camponeses e povos indígenas);
3) luta pelo controle dos processos de produção de energia e fluxos
energéticos, especialmente a tentativa de colocar os mesmos sob controle
dos mercados e das grandes corporações dos países centrais.
Iremos mostrar aqui como fatores de economia política, geopolítica e
meio ambiente se combinam para produzir uma luta (entre grandes
potências, corporações, Estados nacionais, povos e classes sociais) que
aparece aos nossos olhos de forma relativamente enigmática.
Crise e corrida pelos recursos naturais
A luta pela energia e pelos recursos naturais se intensificou depois da
crise do capitalismo iniciada em 2008. Essa luta pode ser observada por
meio de diferentes estratégias e é condicionada por uma série de
fatores: 1) tendência de elevação dos preços internacionais das commodities,
especialmente da energia; 2) disputa pela redefinição do controle das
reservas de recursos naturais; 3) embate pelo controle das empresas de
energia. Essa luta se desdobrou em diferentes estratégias políticas e
empresariais, desde a intervenção militar direta, passando pelo apoio a
forças militares locais em guerra civil, até campanhas políticas de
desestabilização de governos.
Os dados mostram que a crise de 2008 não criou a tendência de expansão
da indústria extrativa e energética, especialmente petróleo e gás, mas
deu a ela um novo impulso. Para demonstrar nosso argumento vamos
considerar a atuação de um ator-chave, os Estados Unidos. Uma boa forma
de entender esse processo é observando os Investimentos Externos Diretos
(IED) dos Estados Unidos no mundo.
Em 1999, os setores de manufatura e químicos lideravam os IED dos
Estados Unidos. Entre 2001 e 2005, o setor de indústria extrativa (mining)
cresceu no mesmo ritmo que o de química, mas, a partir de 2006, o setor
extrativo tomou maior impulso e tornou-se o segundo setor mais
importante dos IED, tendência que se manteve mesmo depois da crise de
2008 (ver Figura 1). Ou seja, o investimento na indústria extrativa
passou a ser o segundo mais importante da economia dos Estados Unidos.
Por outro lado, tal indústria cresceu paralelamente ao crescimento do
setor de manufaturados, o que nos obriga a lembrar que energia e
recursos naturais são produtos intermediários e seu crescimento está
condicionado pela expansão industrial e produção de bens finais.
Figura 1- IED dos Estados Unidos por setor de atividade econômica
Quando consideramos os Investimentos Externos Diretos na indústria
extrativa, vemos que desde o final dos anos 1990 existe uma tendência de
crescimento (saindo de US$ 70 bilhões naquele ano para algo em torno de
US$ 140 bilhões em 2007). Na sequência, os investimentos totais na
indústria extrativa saem de US$ 140 bilhões, em 2007, para US$ 220
bilhões, em 2014; os investimentos em petróleo (petroleum)
também crescem, saindo de US$ 140 bilhões e alcançando cerca de US$ 210
bilhões, em 2014; enquanto os investimentos em extração de óleo e gás (oil and gas extraction) saem de US$ 90 bilhões, em 2007, para US$ 120 bilhões, em 2014 (ver Figura 2).
Figura 2– IED nos subsetores da indústria extrativa
A figura 3 mostra uma mudança de distribuição da localização desses IED
por região. Em 2002, a Europa era o principal destino dos IED dos
Estados Unidos. Até 2008 essa tendência se manteve, mas, depois da
crise, a América do Sul deu um salto, chegando, em 2010, a ficar muito
próxima da Ásia e do Pacífico e acima da Europa. Em 2011, a África
superou a América do Sul que, por sua vez, concentrou ainda importantes
investimentos em 2014.
Figura 3- IED dos Estados Unidos por subsetor da indústria extrativa
O que podemos afirmar conclusivamente é que a crise de 2008 não
interrompe certas tendências verificadas no início da chamada
globalização nos anos 1990. Nesse sentido, observa-se: 1º) um forte
crescimento, que se dá de forma paralela, dos investimentos em
manufatura e em indústria extrativa; 2º) a partir da crise de 2008
ocorre um aprofundamento dos IED no setor de extração, petróleo e
energia, que provocam umboom na economia internacional; 3º) a
substituição da Europa pela Ásia em termos de principal destino dos IED
dos Estados Unidos, ao longo dos anos 2000, e a retomada pela América do
Sul, assim como pela África, de uma importante posição em relação aos
investimentos externos. Em termos de economia política, a crise de 2008
não apenas não reverteu como consolidou tais tendências e diversificou a
alocação geográfica dos Investimentos Externos Diretos.1
A quarta guerra mundial? O neoimperialismo e suas duas táticas
O eurocentrismo é mais que um sistema de ideias ou uma cosmovisão que
afirma a centralidade das sociedades de origem europeia na história e
evolução humana. É um modo de conhecer, viver e narrar essa suposta
superioridade na história, na ciência, em suma, em todos os domínios.
Pode ser a exaltação das sociedades europeias, da sua estética,
fisionomia ou a invisibilização dos demais povos, ou essas várias coisas
ao mesmo tempo.
Isso se reflete na forma como se define o conceito de “guerra mundial” e
a história política da humanidade: “guerra mundial é guerra na qual
estão engajadas as principais nações”. O mundo todo pode estar em
guerra, mas se as superpotências ou “nações mais importantes” não
estiverem, não se considera que haja uma guerra mundial. É por isso que a
guerra fria não é contabilizada como uma guerra mundial.2
O arcabouço epistêmico do eurocentrismo não é capaz de fazer uma
leitura satisfatória da geopolítica e da economia política mundial no
final do século XX e início do século XXI. Uma leitura antieurocêntrica
surgiu curiosamente de dentro de um dos conflitos armados na América
Latina, sendo realizada pelo Subcomandante Marcos no texto “A quarta
guerra mundial”. Nesse texto, expondo a cosmovisão zapatista, ou seja,
de povos indígenas-camponeses que vivenciavam uma guerra de libertação,
ele propôs uma redefinição da história: o mundo não viveria sob a ameaça
da terceira guerra mundial, pois, na realidade, já vivenciava a “quarta
guerra mundial”.
Nessa periodização, fundada numa epistemologia periférica, a terceira
guerra mundial foi a guerra fria que perdurou entre 1945-1989: nela as
superpotências se enfrentaram indiretamente, por meio de outros países.A
quarta guerra mundial começou com a queda do Muro de Berlim e fim da
URSS entre 1989-1991 e trouxe, segundo o Subcomandante Marcos,
diferenças substanciais. Em primeiro lugar, as guerras mundiais
anteriores foram centradas na guerra convencional entre Estados
nacionais. Na quarta guerra mundial, com a supremacia e unipolaridade
relativa dos Estados Unidos no sistema interestatal, as guerras
convencionais deram lugar às guerras irregulares. Em segundo lugar, a
política das guerras, em razão do desaparecimento dos antigos inimigos,
se modificou: da guerra ideológica entre sistemas (nazismo x democracia e
depois capitalismo x socialismo), passamos a formas difusas como a
“guerra ao terror” e a “guerra às drogas”, em que o inimigo passou a ser
representado por “redes descentralizadas”. Assim, a quarta guerra
mundial teria continuidades e mudanças em relação às anteriores. Os
fatores constantes seriam: 1º) conquista e mudança na organização
territorial ou do mapa-múndi. Isso aconteceu ao final da Guerra Fria e
também com a globalização; 2º) elas só terminam com destruição total do
inimigo (como ocorreu com o nazismo, o socialismo); 3º) elas implicam na
“Administração da Conquista”.
Por outro lado, o Subcomandante Marcos chama a atenção para o fato de
que a globalização, que acompanha a quarta guerra mundial, implicou num
paradoxal processo de homogeneização e fragmentação. Mais uma vez os
mesmos casos ilustram: a difusão das instituições da democracia
ocidental foi acompanhada da divisão de países como Iraque, Afeganistão e
Líbia, representando esse duplo movimento de fragmentação e mudança do
mapa-múndi e organização territorial. O “inimigo difuso” permitiu que
este pudesse ser escolhido situacionalmente, identificado com um Estado
ou governo a ser destruído.3
No nosso entendimento, os processos que hoje estão em curso no
sistema-mundo podem ser compreendidos por estas lentes: hoje, o
imperialismo se organiza por meio da luta pelo controle de recursos
naturais, especialmente energéticos, que se dá num complexo quadro
social que podemos chamar sem exagero de quarta guerra mundial.
A geopolítica dos recursos naturais e energéticos, entretanto,
modifica-se bastante. Concomitantemente à expansão dos IED, existe um
aprofundamento da competição internacional entre empresas e o uso de
diversas estratégias dos países centrais, especialmente da intervenção
militar direta, indireta e ação política indireta por meio de oposições a
governos dentro de determinados países. Nesse sentido, se considerarmos
América Latina e África, vemos que foram palco não somente da
exportação de capitais, mas também da intensificação de conflitos e
rebeliões populares, de conflitos governamentais e guerras civis.
Se fizermos uma cronologia dos conflitos, podemos identificar dois
tipos: os conflitos militares dentro dos Estados africanos em regiões
que receberam muito investimento e que tiveram como resultado guerras
civis e renegociação dos contratos que envolvem acesso aos recursos
energéticos; os conflitos empresariais e governamentais (entre oposição e
situação nos órgãos de governo), que dividiram as posições sobre
política econômica, com destaque para o tema do petróleo e energia.
Vejamos a cronologia abaixo:
2011: Derrocada do governo Kadafi. Guerra civil e divisão da
Líbia. Hoje milícias controlam diversas cidades importantes, mas a
produção de petróleo foi retomada. Rebeliões populares na Síria contra o
governo resultaram em repressão e depois na criação de forças armadas
de oposição ao governo. Estados Unidos e União Europeia se colocam
favoráveis à derrubada de Bashar al-Assad, enquanto Rússia e Irã apoiam o
mesmo.
2012: Na República Democrática do Congo, o início da exploração
de Petróleo pela companhia inglesa SOCO coincide com a criação do M23 e o
início de mais uma guerra civil envolvendo desta vez a exploração de
petróleo no Parque Nacional do Virunga;
2014: Na Venezuela, cresce o movimento de oposição ao governo
Maduro, mesmo ano em que Exxon Mobil ganha processo bilionário contra a
PDVSA, recebendo indenização pelas estatizações realizadas no governo
Hugo Chávez.
2014/15: No Brasil, inicia-se uma crise na Petrobras por conta
do processo contra a empresa nos Estados Unidos que resulta em perda
bilionária. Logo depois, a Operação Lava Jato investiga casos de
corrupção envolvendo a Petrobras, que será um dos principais estopins da
“campanha pelo impeachment”, organizada pelo PSDB-PMDB, com apoio dos
Estados Unidos. A Petrobras nesse contexto é pressionada a realizar um
plano de negócios que prevê privatização de patrimônio e
desinvestimento.
As principais intervenções militares depois da crise de 2008 ocorreram
na Líbia e Síria, países estratégicos na geopolítica do petróleo e da
energia. Estes foram países que vivenciaram ao mesmo tempo revoltas
populares durante a Primavera Árabe. Nigéria e Congo enfrentam guerras
civis com intervenção indireta de potências estrangeiras. Na Líbia, a
derrubada do antigo governo desenvolvimentista e a morte de Kadafi, em
2011, desencadearam uma guerra civil que perdura até hoje; depois de
2008 a Ocidental Petroleum tentou expandir suas operações na
Líbia, juntamente com a empresa italiana de petróleo e gás, ENI. Ou
seja, podemos ver que a partir de 2008 houve um aumento exponencial de
batalhas, protestos e violência contra populações civis no continente
africano.
As grandes companhias de petróleo estão envolvidas em ações cada vez
mais nebulosas na África, incluindo o estreitamento de relações com
organizações paramilitares e a intensificação dos conflitos armados e da
violência contra a população civil. A Shell, na Nigéria, e a SOCO, no
Congo, foram acusadas publicamente de estarem envolvidas no
financiamento de guerras civis, todas elas motivadas pela luta pelo
controle e exploração dos recursos naturais, com destaque, nesses dois
países, para o petróleo.
Figura 4 – Conflitos relacionados aos recursos naturais na África 1997-2014. Fonte: Acled Dataset
Brasil e Venezuela, os produtores e detentores das maiores reservas de
petróleo da América Latina, vêm enfrentando movimentos internos de
desestabilização visando o impeachment ou a mudança de política
econômica (tendo como alvos, no Brasil, o PT e, na Venezuela, o PSUV).
Em 2014, o governo da Venezuela lançou formalmente uma acusação contraum
grupo de opositores venezuelanos – incluindo a deputada destituída
María Corina Machado – e o embaixador dos Estados Unidos na Colômbia,
Kevin Whitaker, de planejarem um golpe de Estado e uma tentativa de
assassinato do presidente Nicolás Maduro. Por sua vez, os Estados Unidos
classificaram de “absolutamente falsas” e “sem base” as acusações de
autoridades venezuelanas contra o embaixador americano.4
No caso do Brasil, uma crise na Petrobras, espinha dorsal da exploração
energética no país, foi desencadeada em parte nos Estados Unidos. Hoje,
as denúncias de corrupção na Petrobras estão praticamente concentradas
no caso da “Operação Lava Jato”, mas na realidade essa operação ganhou
impulso e teve como desdobramentos principais os fóruns judiciais dos
Estados Unidos: em 2014, a Astra Oil, parceira da Petrobras na aquisição
da refinaria Pasadena, no Texas/Estados Unidos, entrou com uma ação na
justiça alegando que a empresa brasileira deveria adquirir a sua parte
(50% das ações) da refinaria em razão de cláusulas contratuais. A
aquisição da refinaria de Pasadena acabou custando US$ 1,18 bilhão à
petroleira nacional, mais de 27 vezes o valor que a Astra Oil teve de
desembolsar inicialmente. Essa questão se refletiu diretamente no Brasil
e nas pressões para reestruturação da empresa que resultaram no Plano
de Negócios da Petrobras anunciado em 2015. No final de 2014, fundos de
pensão entraram com ações contra a Petrobras em Providence e Nova York,
nos Estados Unidos. Ou seja, a judicialização da gestão das ações da
Petrobras nos Estados Unidos tem sido um dos principais mecanismos de
apropriação de recursos da mesma. O resultado da crise da Petrobras no
Brasil levou a uma reestruturação da empresa que vem se refletindo no
aprofundamento da privatização e internacionalização da mesma, que
passará a ser diretamente controlada pelas grandes multinacionais do
setor, de acordo com seu plano de negócios 2015-2019.
Nesse sentido, a geopolítica pode ser melhor compreendida a partir das
duas políticas do que chamamos de neoimperialismo: 1ª) tomada do
controle estatal dos recursos naturais, especialmente energia e
petróleo, nos países periféricos, pelos Estados centrais e/ou suas
corporações; 2ª) expropriação por meio da centralização como uma forma
que precede ou sucede a política anterior, retirando o controle
comunitário e local sobre os recursos, eliminando direitos territoriais
ou restringindo os mesmos (no que podemos chamar, seguindo a tradição
crítica latino-americana de ciências sociais, de colonialismo interno),
visando à expansão de um modelo de desenvolvimento centrado no
extrativismo (por sua vez, este expansionismo, em países como o Brasil,
pode ser denominado de subimperialista, uma vez que expandiu capitais de
corporações estatais e privadas para outros países e continentes, como
ocorreu com a Petrobras e as grandes construtoras). No caso de
determinados países da África e do Oriente Médio, esse controle se fez
pela destruição dos próprios Estados nacionais e/ou sua fragmentação; já
nos países da América Latina, a tomada de poder vem se dando pelo
enfraquecimento do controle estatal-governamental sobre os recursos
energéticos, que ironicamente promoveram a centralização do poder e o
enfraquecimento do controle dos povos e comunidades camponesas e
indígenas sobre tais recursos, centralização essa que foi condição
necessária para a expansão do poder do capital monopolista das
corporações e do próprio imperialismo. Assim, no caso da América Latina,
essa acomodação estrutural ao regime de acumulação e aos interesses dos
Estados Unidos parece permitir um deslocamento da intervenção das
formas militares para o jogo político promovido pelas oposições internas
e pela própria judicialização dos conflitos envolvendo empresas
multinacionais de energia em tribunais dos Estados Unidos e Europa.
O ponto principal a ser observado dessa geopolítica é a disputa pelo
controle dos recursos naturais e energéticos, especialmente de reservas e
empresas estatais de energia. O mapa abaixo nos permite dimensionar o
que está em jogo na luta pelo controle das empresas de energia como a
Petrobras e a PDVSA. O mapa mostra o número das maiores empresas de
energia do mundo. Vemos que são poucos os países que atuam no mercado de
petróleo e energia. O mundo anglo-saxão (Estados Unidos, Inglaterra e
Canadá) detém 18 das 23 maiores empresas, com destaque para os Estados
Unidos. Submeter a Petrobras e a PDVSA às políticas imperialistas
mencionadas significa criar um quase-monopólio nas Américas e ampliar o
controle da exploração de reservas importantíssimas em termos mundiais,
já que as maiores reservas comprovadas estão na Venezuela.
Figura 5– Mapa das maiores empresas de petróleo por país, segundo dados da Forbes 2015
Para concluir, podemos dizer que a crise de 2008 consolidou e mesmo
acirrou uma tendência de luta pelo controle dos recursos naturais,
especialmente energéticos. Essa tendência da economia se expressou em
termos geopolíticos numa luta e competição internacional entre empresas
de energia e petróleo, que se articula a movimentos de oposição aos
governos estatizantes do setor energético na América Latina e à
realização de intervenções militares diretas e indiretas no Oriente
Médio e África, com o recrudescimento das guerras civis e da
fragmentação dos Estados. A fragmentação de países e a concorrência
entre empresas monopolistas compõem, portanto, esse quadro da quarta
guerra mundial.
Nesse sentido, é fundamental romper com a leitura eurocêntrica da
geopolítica internacional. O eurocentrismo conduz a uma leitura que
reduz os conflitos acima a “intrigas palacianas” ou guerras entre elites
(como no caso do Brasil, em que se tentou reduzir os conflitos apenas a
uma luta PT versus PSDB), ou a disputas entre Estados e
intervenções “externas” maquiavélicas. Como procuramos demonstrar, os
processos de descentralização ou fragmentação dos Estados periféricos em
determinadas regiões, como África e Oriente Médio, são acompanhados por
outros de centralização do poder estatal e colonialismo interno em
países da América Latina, e ambos são entrecortados por conflitos
étnicos, de classe e campo-cidade. Logo, o conflito interestatal e o
conflito entre diferentes elites não são uma chave suficiente para
entender a geopolítica internacional.
O imperialismo hoje se manifesta por meio da exportação de capitais
monopolistas que tendem a produzir conflitos armados e/ou oposição
política dentro de Estados da periferia. Esses conflitos assumem
diferentes formas em função da relação previamente estabelecida no
sistema interestatal; países como o Brasil, se inseriram no ciclo de
expansão capitalista tentando combinar o subimperialismo com o
colonialismo interno. No caso da África e Oriente Médio a situação é
distinta. Alguns Estados nacionais foram induzidos à fragmentação por
meio de guerras civis com intervenção estrangeira e colocados numa
posição de neocolônias, seja formalmente, como no caso do Iraque em que
ocorreu uma conquista territorial, ou de profunda dependência e
subordinação, como no caso de Líbia e Congo. Na América Latina, os
chamados governos progressistas se apoiaram no colonialismo interno e/ou
subimperialismo, sendo preciso entender como muitas vezes projetos
desenvolvimentistas nacionais auxiliam na centralização e expropriação
necessárias à expansão do imperialismo que hoje os desestabiliza. Na
África e Oriente Médio, o neocolonialismo foi a principal forma de
estruturação das relações e geopolítica.
A dialética da energia: fome, crise ambiental e resistências
O que é a energia? Que recurso é esse, objeto da luta global? Podemos
dizer que a energia é uma categoria complexa, essencialmente dialética.
Na teoria física moderna, especialmente na termodinâmica, “energia é a
capacidade de realizar trabalho”. Desse ponto de vista energia é
trabalho. Quando falamos de recursos energéticos estamos falando sempre
de energia para alimentar a maquinaria capaz de realizar trabalho
produtivo: vapor, eletricidade, petróleo, são fontes de energia que
substituem ou intensificam o trabalho humano. Mas a energia também é uma
categoria da ecologia: os próprios seres vivos e os seres humanos
dependem de fontes de energia que podem ser transformadas em energia
humana. A alimentação é um tipo de transformação de energia. Todas essas
formas de energia são, em última instância, equivalentes do trabalho.
Essa dialética emerge na ofensiva e luta pela energia no seu conjunto.
Por exemplo, por meio dos dados da FAO, podemos observar que
paralelamente ao processo de expansão do preço das commodities, ocorreu,
no mesmo período, um enorme aumento do preço dos alimentos. Desse ponto
de vista, alimentos geram energia para seres humanos, enquanto petróleo
e eletricidade geram energia para máquinas.
Figura 6- Inflação global do preço dos alimentos. Fonte: FAO-ONU
A luta por recursos naturais e energéticos é um dos principais motores
da quarta guerra mundial em curso. É cada vez mais claro que a
combinação de fatores de economia política e geopolítica (exportação de
capitais e luta pelo controle dos recursos naturais, conflitos entre
Estados, povos e grupos sociais, elevação dos preços dos alimentos),
somados aos ambientais (mudanças climáticas, degradação ambiental,
destruição dos ecossistemas locais), estão provocando, sem supormos
nenhuma relação linear de causa e efeito, uma situação que induziu ao
aumento dos preços dos alimentos.
A energia tornou-se mais cara para os humanos e várias causas
contribuem para isso: aumento da exportação de capitais aplicados na
atividade extrativista e de petróleo e gás; aumento nos preços dos
alimentos; elevação nos custos de produção agrária e agroindustrial;
processos de expropriação e conflito territorial; desestabilização
política e intervenção militar direta e indireta; desestruturação de
sistemas ecológicos e produtivos locais que erodem a economia de
subsistência, ampliando a desnutrição, a expulsão de populações e a
fome.
O paradoxo então é que o aumento da produção de energia para o capital e
a produção levou a um desequilíbrio na produção de energia para os
seres humanos. Assim, na luta pela energia existe uma importante questão
ecológica e política, que é a ampliação da fome ou do custo da
alimentação que, do ponto de vista energético, é a distribuição desigual
da energia entre capital e trabalho, entre máquinas e seres humanos,
entre campo e cidade, e entre povos, comunidades, classes sociais e
nações centrais e periféricas.
A luta pelos recursos energéticos pode ser considerada então de dois
grandes pontos de vista: 1) da produção capitalista e mercantil, em que
recursos energéticos são absorvidos pelo capital; 2) de economias de
subsistência nas quais alimentos são recursos energéticos para
reprodução material e social humana. O impacto, já debatido, sobre a
expansão da indústria extrativa sobre os preços dos alimentos, sobre a
exaustão dos recursos naturais e destruição de sistemas de organização
social e sua base ecológica são apenas a expressão da dialética da
energia (que pode ser combustível para a maquinaria ou alimento para
sociedades humanas), da luta social e ecológica entre capital e
trabalho.
Essa luta esteve e está na base dos conflitos pós-crise de 2008: o termo food revolt
(revoltas alimentares) expressa exatamente uma tendência global. A luta
dos povos camponeses e indígenas pelo mundo para se manter nos seus
territórios pode ser lida não somente como uma luta pela identidade
cultural, mas como uma luta pela capacidade de produção e acesso a
alimentos e, consequentemente, pela redistribuição “da” e acesso “à”
energia. Vários países do mundo enfrentaram a intensificação dos
conflitos e resistências, e cresce o número de conflitos envolvendo
petroleiras, mineradoras, empresas agroindustriais que absorvem muitos
recursos naturais e energéticos, a começar pela apropriação da terra.
É por isso que vários analistas tentaram relacionar as revoltas da
Primavera Árabe com a inflação global de alimentos. Tunísia, Camarões,
Líbia, Zimbábue e Egito são todos países altamente dependentes do
mercado internacional para a compra de alimentos. Além disso, a partir
dos anos 1990, outros conflitos relacionados aos recursos naturais
(terra, água, minério, petróleo) cobriram o território africano e também
o Oriente Médio. Como podemos ver pelo mapa abaixo, existem registros
de revoltas e protestos em quase todo o continente africano.
Figura 7- Conflitos armados e revoltas relacionados a recursos naturais - África 1997-2014. Fonte: Acled Dataset
Na América Latina, esse período de expansão dos IED e de ofensiva pelos
recursos naturais engendrou diversos conflitos. Antes da crise, podemos
citar a tentativa de golpe contra Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002
(em razão dos conflitos, especialmente envolvendo o petróleo) e as
“guerras da água e do gás”, na Bolívia, no início dos anos 2000. Mas,
todo o ciclo de governos chamados de “progressistas” (PT, no Brasil,
Tupamaros, no Uruguai, Partido Justicialista, na Argentina, PSUV, na
Venezuela, e vários outros) desencadeou um processo de centralização do
poder e repressão contra povos indígenas e camponeses, visando
exatamente favorecer a exploração extrativa e a produção de energia. Ou
seja, a expansão dos investimentos e a luta por recursos naturais têm
provocado uma intensificação da violência e de conflitos também na
América Latina. Segundo dados da ONG Global Witness, o Brasil lidera o
ranking de violência no campo, com 477 “ativistas ambientais ou
agrários” assassinados desde 2002.Nesse período, apenas em 2011, o
Brasil não liderou a lista de assassinatos no campo, estando à frente de
países como Colômbia, Filipinas e Honduras, com 25, 15 e 12 mortes,
respectivamente, no ano de 2014.5 O Brasil, um dos principais
destinos dos IED e realizador de um modelo econômico industrial
comandado pela indústria de transporte e pela cadeia mercantil da
logística (que inclui indústria extrativa, energia, construção civil),
foi o país que mais registrou mortes durante esse “ascenso” do
extrativismo e da industrialização, como podemos ver pelo mapa abaixo. A
figura mostra a distribuição de vítimas em conflitos socioambientais no
mundo segundo a ONG Global Witness, em que fica claro o lugar ocupado
pela América Latina.
Figura 8– Fonte: Global Witness, Mortes de ativistas agrários e ambientais no mundo
Na Colômbia, Equador e diversos outros países, têm se intensificado os
conflitos com povos indígenas e camponeses, especialmente em razão do
processo de reorganização territorial nos Estados nacionais. Se no caso
da África a quarta guerra mundial se apresenta como a
fragmentação/descentralização dos Estados, na América Latina essa se
mostra como a centralização do poder sobre os territórios nas mãos de
instituições estatais. Assim, o neoimperialismo não age na América
Latina apenas de forma direta, mas indireta, por meio dos governos
desenvolvimentistas e nacionalistas que concentraram o poder de
reorganização territorial, implicando na expropriação de camponeses e
indígenas; em processos de aprofundamento da superexploração do
trabalho, que são uma forma de apropriação da energia humana; e na
transferência de riquezas para a mão do capital (que podem ser vistos no
seu conjunto como exploração de diferentes fontes de energia).
Logo as resistências e revoltas colocam uma importante contribuição à
reflexão crítica sobre o “capitalismo extrativista”. Em primeiro lugar,
tais resistências mostram que as políticas dos Estados e os modelos
nacionalistas de gestão da energia são tão antipopulares quanto os
modelos corporativo-privatizantes de produção e gestão dos fluxos
energéticos. Da ótica energética, esses conflitos podem ser considerados
como a luta entre a apropriação da energia centralizada-capitalista e a
apropriação descentralizada/não capitalista. Povos indígenas e
camponeses vivem da pequena agricultura, caça-coleta e pequena extração.
Os produtos agrícolas dessa pequena produção (cereais, leguminosas
etc.) ou da coleta (fruta, raízes) são depósitos naturais de energia: a
matéria viva das plantas converte a energia solar por meio da
fotossíntese, os alimentos consumidos pelas sociedades são fontes
energéticas e, por sua vez, a fonte do trabalho dessas sociedades.
Assim, a agricultura é, como atividade social, cultural e econômica, um
modo de transformação da energia. Quando as terras são incorporadas pela
indústria extrativa e energética, elas perdem essa funcionalidade
energética descentralizada e concentram o controle dos fluxos
energéticos no capitalismo monopolista.
A luta pelos recursos naturais e energéticos é hoje parte do centro da
dinâmica do sistema-mundo capitalista. Existe uma guerra em escala
global na qual esta luta se realiza por diferentes estratégias. Sem
compreendê-la, não compreendemos os conflitos e transformações nos
sistemas políticos. Por isso, devemos dimensionar a importância da
questão energética num sentido amplo para as resistências e lutas dos
povos e classes, que se apresenta como uma luta entre dois modelos
energéticos de sociedade: as sociedades de capital
monopolista-centralizador dos fluxos energéticos (seja pelos Estados
centrais, seja pelos periféricos); e as de descentralização socializada
dos recursos energéticos de acordo com modos culturais e políticos. Esse
conflito está em curso e será chave para a compreensão da economia
política do século XXI.
Andrey Cordeiro Ferreira
Professor do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade – CPDA/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Coordenador do Núcleo de Estudos do Poder – NEP
(https://nepcpda.wordpress.com).
1 A atual queda no preço do petróleo e de commodities pode ser
interpretada de diversas maneiras. Alguns trabalham com a tese do
“pico”, ou seja, a valorização do preço do petróleo alcançaria um
patamar máximo e depois tenderia a cair, e alguns projetam isso para a
próxima década, de forma que tal reversão representaria a crise da
própria “civilização”. No nosso entendimento, o atual processo é parte
de um ciclo de estagnação, mas também tem sido útil para a recuperação
econômica em países que são intensivos em energia.
2 Essa análise poderia ser considerada como fantasiosa. Entretanto,
mesmo com toda as controvérsias possíveis sobre medição de mortes, é
certo que as guerras civis revolucionárias e guerras coloniais deixaram
mais de 7 milhões de mortos na Coreia e no Vietnã nos anos 1950. Durante
a chamada globalização, a guerra civil em Ruanda (1994-95) e a 1ª e 2ª
Guerra do Congo (1996-97 e 1998-2003) deixaram pelo menos 6 milhões de
mortos. O envolvimento de países como Estados Unidos, Inglaterra, França
e Bélgica nas guerras africanas é notório. Ou seja, existe uma
invisibilização do caráter mundial dos conflitos locais e da ferocidade
da guerra.
3 O Iraque foi identificado como portador de armas de destruição em
massa, o Afeganistão acusado de ser a sede da Al-Qaeda (terrorismo
internacional) e o Irã de desenvolver armas nucleares.
4 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/05/eua-negam-acusacao-de-tentativa-de-assassinato-contra-maduro.html.
5 Pelo 4º ano seguido, Brasil lidera ranking de violência no campo.
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150419_relatorio_mortes_ativistas_rm.
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