sexta-feira, 29 de julho de 2016

EU E MICHEL. MICHEL E EU... (II)

EU E MICHEL. MICHEL E EU... (II)

Agora, falando sério. Tomei emprestado um verso da telúrica parceria Baby Consuelo (depois Baby Brasil) e Pepeu Gomes, intitulada “Barrados na Disneylândia”: “Eu e Pepeu. Pepeu e eu...”

Obviamente, Me(rd)chel T(r)emer é muito mais que aquelas palavras jocosas, próprias da liberdade de expressão. Afinal, nossa geração deu seus melhores dias na ânsia por tempos melhores para todo(a)s, com democracia dentro de um Estado de Direito (e não de direita).

Goste ele ou não, gostem seus aliados de ocasião ou não, ele nunca foi uma referência ou uma unanimidade. Nem no tempo em que o honrado e coerente André Franco Montoro (pai, brilhante deputado, senador da República e governador durante a luta pelas liberdades democráticas) o escolheu para titular da Procuradoria-Geral do Estado, a fim de demonstrar que não nutria qualquer preconceito pelos descendentes de árabes (então estigmatizados pelas figuras associadas à ditadura de Paulo Maluf, Ibrahim Abi Ackel e Alfredo Buzaid). Nascido de quina para a lua, em seis meses do mandato democrático do governador Montoro, virava titular da Segurança Pública de São Paulo, quando, num lampejo de sensatez, criou a primeira delegacia especializada de atendimento à mulher vítima de violência.

Ainda que até então Montoro não se empolgasse pela figura introspectiva de T(r)emer, aconselhado por Quartim de Moraes (seu conselheiro político mais próximo), lançou-o candidato a deputado, apadrinhando-o publicamente. Não se elegeu, mas foi o primeiro suplente. Beneficiou-se mais uma vez pela sorte: eleito Orestes Quercia, desafeto declarado dentro do PMDB, Montoro impôs condições ao seu sucessor no governo de São Paulo, designando alguns cardeais da Câmara para compor o secretariado quercista. Aí T(r)emer ascende à cobiçada vaga de deputado constituinte.

A despeito da sorte que sempre o perseguiu, seu mandato foi, como imaginável, obscuro, medíocre. Próprio da mente obtusa que o caracteriza. Prova disso é que o brilhante Dante de Oliveira, contemporâneo e correligionário (só naquela época) seu, destacou-se como o autor da emenda das eleições diretas para presidente da República (a Emenda Dante de Oliveira) e célebre paladino das Diretas-Já, e ele nada! Na legislatura seguinte, até Geraldo Alckmin consegue alguns minutos de fama com seu projeto de lei que institui o Código de Defesa do Consumidor, e ele nada!

E foi à sombra do quercismo, dentro do PMDB, depois da saída de Montoro do partido de Ulysses Guimarães, que, num gesto de oportunismo, deu um golpe a Quercia, então presidente longevo da histórica legenda oposicionista, mas que se perdera nos meandros do poder durante o reinado Sarney e no turbilhão Collor-Itamar, quando desaparece literalmente o grande timoneiro Ulysses no mar (ironia do destino, logo para quem entrou para a História citando versos de Fernando Pessoa, com “navegar é preciso, viver não é preciso”).

Pois, é. Antes de dar o bote em Dilma Rousseff, ele já dera em Orestes Quercia, que passou a odiá-lo com todo o vigor de sua bílis de descendente de mediterrâneos. Tanto é verdade, que Quercia morreu pactuando com seus inimigos históricos Serra, FHC e Alckmin, apoiando em seu crepúsculo a candidatura bizarra do hoje senador golpista, líder de T(r)emer no Senado, o comunista arrependido Aloysio Nunes Ferreira (atabalhoado seguidor de Carlos Marighela em sua guerrilha urbana nos idos de 1969).

Nem o PMDB de Ulysses (antes e depois da Constituinte; isto é, antes e depois da debandada tucana), nem o de Quercia via essa temeridade com bons olhos. Só Lula e alguns cardeais do PT é que se permitiram enganar com a personalidade ardilosa e nada ética do “discreto” então vice-presidente da presidente Dilma Rousseff em seus dois mandatos. Mas ex-pemedebistas e ex-pessedebistas históricos, hoje fora dessas duas legendas por coerência e razões éticas (entre os quais Fernando Morais e Luiz Carlos Bresser Pereira) nunca se enganaram.

Nada de novo no front. Apenas Calabar e seus asseclas, como sempre, a serviço dos ávidos corsários de além-mar...

terça-feira, 26 de julho de 2016

EU E MICHEL. MICHEL E EU...


EU E MICHEL. MICHEL E EU...

Eis que o Michel não é nada daquilo que o(a)s mal-amado(a)s invejoso(a)s dizem!

Coisa de gente não resolvida. Que pai tão terno (embora não possamos dizer tenro). E sempre à frente de sua jovem espousa – bela, recatada e do lar, por favor! E não me venham essas vanguardistas dizer que é machismo andar à frente de sua espousa: tradicionalista, ele faz isso não só em homenagem aos seus ancestrais, mas até por uma questão de... cavalheirismo (e de segurança).

Que gesto mais humano, mais grandiloquente, esse de convocar toda a imprensa na antevéspera da inauguração dos Jogos Olímpicos do Rio para vê-lo em companhia de sua linda espousa para pegar o Michelzinho, de 7 aninhos, da escola. Podemos dizer que – finalmente! – já somos uma nação do primeiro mundo...

Este é um país que vai pra frente! Só por esse gesto já valeu a suspensão do programa Ciência Sem Fronteiras. E a redução paulatina das verbas para a Educação não importa mais. Podem agora até acabar com o ensino público gratuito. Para que tanta demagogia? O que importa é que finalmente temos um dignitário (ainda que POR ENQUANTO interino) com finèsse e glamour...

Ele tem uma educação importada, refinada. Esse é o Brasil pelo qual o(a)s cançado(a)s – assim mesmo, com “c” cedilhado – foram às ruas e bateram panelas, se expondo aos riscos de contaminação dessa gentalha que vota no PT... Afinal, o Brasil feito por nós! (Sem trocadilhos subversivos, por favor!)


Para encerrar minha declaração de novo seguidor do grande estadista que o gol..., digo, impítima, nos deu, quero recordar um mote de meus tempos de arenista – sim, do tempo em que o Brasil vivia o “milagre econômico” e não precisávamos dessa coisa perigosa chamada de democracia (porque “o povo não está preparado para votar”): Brasil, (m)ame-o ou deixe-o!

domingo, 10 de julho de 2016

CONFERÊNCIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS DO PANTANAL (2004) -- RELATÓRIO PELO GRUPO DE TRABALHO REGIONAL

Verdadeiro achado, este é o relatório oficial da Conferência Regional de Direitos Humanos do Pantanal, realizada pelo Grupo de Trabalho Regional, em 10 de maio de 2004, no auditório da Escola Estadual Júlia Gonçalves Passarinho (JGP). Disponível em: <https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/conferenciadireitoshumanoscorumba/conversations/topics/3>
CONFERÊNCIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS DO PANTANAL
Grupo de Trabalho Regional do Pantanal Corumbá (MS)
RELATÓRIO DA CONFERÊNCIA
Consoante com as recomendações do Grupo de Trabalho Estadual da Conferência de Direitos Humanos de Mato Grosso do Sul, o Grupo de Trabalho Regional do Pantanal, integrado por representante do Poder Executivo de Corumbá, psicóloga Cristiane Ligier de Jesus Oliveira, da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS); Poder Judiciário, juiz de Direito Roberto Ferreira Filho, da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Corumbá; Poder Legislativo de Corumbá, vereador Carlos Alberto Machado; Poder Legislativo de Ladário, vereadora Delari Botega Ebeling; SINPAF (Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Instituições de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário, Seção Sindical de Corumbá), professora Mirane dos Santos Costa, e FORUMCORLAD (Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário), Ahmad Schabib Hany, coordenador-adjunto da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), coordenou desenvolvimento das atividades relativas à Conferência Regional de Direitos Humanos do Pantanal, realizada na segunda-feira, dia 10 de maio, das 9 às 18 horas, no auditório da Escola Estadual Júlia Gonçalves Passarinho (rua Dom Aquino, 405, centro, Corumbá), ocasião em que foram tratadas questões inerentes à efetivação do Sistema Nacional de Direitos Humanos, mediante a realização de palestra de abertura, painel, grupos de discussão e plenária final, com um total de 78 participantes inscritos.
Palestra de abertura
Após a composição da mesa de abertura da qual participaram o doutor Roberto Ferreira Filho, juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Corumbá; professora Ivani I. da Cruz, da Secretaria Municipal de Assistência Social de Ladário; senhora Regina Célia Rachel, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Instituições de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário, Seção Sindical de Corumbá, e professor João Carlos Parejas Urquidi, diretor da Escola Estadual Júlia Gonçalves Passarinho, foram iniciados os trabalhos, com a palestra do doutor Roberto Ferreira Filho, que, diante da complexidade do arcabouço jurídico que trata das prerrogativas do cidadão constantes da Declaração dos Direitos do Homem, deu ênfase ao caráter inovador da legislação brasileira destinada à população infanto-juvenil, conforme preconizam a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8069/90). Nesse contexto, expôs sobre os direitos da criança e do adolescente, adoção, família substituta, crianças e adolescentes em conflito com a lei e medidas sócio-educativas.
Painel
Com uma homenagem póstuma ao adolescente Maximilan Paz de Oliveira, vítima de violência juvenil, foram chamadas para apresentar painel sobre a fragilidade do sistema de garantia de direitos na região: a senhora Mary Paz de Oliveira, mãe de Maximilan, dedicada à disseminação da cultura da paz, que reivindicou novos paradigmas de segurança pública na região e tratamento condigno a todos os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) nas instituições conveniadas; a psicóloga Suzete dos Santos Bezerra, do Ministério Público Estadual, que questionou a lógica de funcionamento da rede local de serviços voltados para a inclusão social, geração de renda e sistema de garantia de direitos da população infanto-juvenil, motivada pela distribuição de verbas públicas e não pela real demanda; e a educadora social Zilda Maria Borges, do Movimento Nacional de Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN) e integrante da coordenação da IDEA (Associação Internacional para a Integração, Dignidade e Progresso Econômico), que defendeu o acesso pleno às políticas de saúde e de direitos humanos às pessoas com seqüelas segregadoras de patologias como hanseníase, aids, tuberculose e ostomias.
Durante o debate que se seguiu à palestra e ao painel, fizeram intervenções: Regina Célia Rachel, do SINPAF; Anísio Guilherme da Fonseca, membro da OCCA, do STFBUMSMT (Sindicato dos Trabalhadores Ferroviários de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso) e do Conselho Municipal de Saúde de Corumbá (CMS); Rosa Maria Câncio Xavier, membro do SIMCOR (Sindicato dos Servidores Municipais de Corumbá), do CMS e vice-presidente do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), e Johonie Midon de Mello, da Cidade Dom Bosco (CDB) e do Conselho Gestor de Saúde da Sociedade Beneficência Corumbaense (CGS/SBC).
Exposição sobre o SNDH
Em seguida ao almoço, a professora Mirane dos Santos Costa, do SINPAF (entidade-membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, MNDH), fez breve exposição sobre o Sistema Nacional de Direitos Humanos (SNDH), tendo destacado a interdisciplinaridade, efetividade, participação cidadã, resolutividade, pluralidade, eqüidade e universalidade desse sistema, fruto das conquistas da sociedade civil, e que, a exemplo do Sistema Único de Saúde e mais recentemente o Sistema Único da Assistência Social, vem dar resposta às demandas dos amplos setores da população, cujo acesso à cidadania deve ser assegurado com a consolidação do conjunto dessas políticas.
Feitos os esclarecimentos pertinentes ao Sistema Nacional de Direitos Humanos e ao seu processo de efetivação por intermédio das Conferências de Direitos Humanos em fase de realização nas três instâncias, a coordenação dos trabalhos deu encaminhamento ao processo de análise da situação mediante grupos de discussão dentro da plenária, tendo sido chamadas as senhoras Mirane Costa, Cristiane Ligier Oliveira e Rosa Xavier para auxiliar no registro para a relatoria. Na oportunidade, o advogado Luiz Carlos Dobbes, membro do Conselho Subseccional da Ordem dos Advogados do Brasil, apresentou-se à plenária, comunicando que a entidade não havia tomado conhecimento da realização da Conferência Regional de Direitos Humanos do Pantanal, ao que, em nome do Grupo de Trabalho Regional, Ahmad Schabib Hany esclareceu que foram enviados os convites a todas as entidades constantes da relação oficial do cerimonial da Prefeitura Municipal de Corumbá, além do que o membro da Comissão de Direitos Humanos da Seccional de Mato Grosso do Sul, advogado Lairson Palermo, havia comunicado a todos os membros das respectivas comissões locais de Direitos Humanos da OAB da importância de participar das conferências regionais, além do fato de que a mídia local havia divulgado com anterioridade a realização do evento, e como ato de desagravo pela falha de comunicação propôs a inclusão do representante da entidade no Grupo de Trabalho Regional do Pantanal, que foi aprovada por unanimidade. Na seqüência, fizeram intervenções os seguintes participantes: Mary Paz de Oliveira, Anísio da Fonseca, Priscila Adélia Benzi (do eixo de Protagonismo Juvenil, da Comissão Municipal de Combate à Exploração e ao Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes), Ahmad Schabib Hany, Regoberta Martinez (da Comunidade de São Vicente de Paulo, vice-presidente do Conselho Gestor de Saúde da Unidade Básica de Saúde da Popular Velha CGS/PV e membro do CGS/SBC), Yuri Ojopi Gaone (Escola Municipal Clio Proença), Lineisi Auxiliadora Amarílio dos Santos (Unidade de Apoio para a Inclusão de Corumbá), Norma Taciana Ramos (representante do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Corumbá SINTED, membro do CGS/SBC, Conselho Municipal de Educação CME, Organização Mundial para a Educação Primária OMEP e Unidade de Apoio para a Inclusão de Corumbá), Ivani da Cruz (Secretaria Municipal de Assistência Social de Ladário), Luiz Carlos Dobbes (OAB de Corumbá) Antônio Arantes Sobrinho (do SINPAF), Gueisi Aliendre Silva (SEMTAS), Ruth Marciano Esnarriaga (Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental CENPER , vice-presidente do CMS e membro do Conselho Municipal do Bolsa-Escola Federal) e Johonie Midon de Mello.
Propostas aprovadas
1) Políticas de inclusão étnica (no contexto da comunidade remanescente dos guató, cuja aldeia Uberaba, localizada na Ilha Ínsua, encontra-se em fase de implantação de serviços públicos): a) a não segregação, em razão da origem, no acesso aos serviços públicos (que a ascendência deixe de ser fator de entrave para o desenvolvimento coletivo ou até individual); b) implementação de ações de governo que fomentem o desenvolvimento sustentável da comunidade guató, bem como das demais populações originárias; c) demarcação das terras historicamente ligadas à população guató; d) educação bilingüe, de modo a assegurar o resgate da língua como fator de unidade etno-cultural; e) seja desenvolvido um programa de saúde que resgate os procedimentos avoengos agregados aos avanços tecno-científicos nesse contexto; f) a adoção de uma política afirmativa no sentido da inclusão racial seja acompanhada de políticas intersetoriais que efetivem a elevação das condições materiais de vida dos remanescentes guató, afrodescendentes e imigrantes de países vizinhos, como Bolívia e Paraguai.
2) Políticas públicas de proteção dos direitos laborais: a) com os impactos da globalização, seja garantida a manutenção de direitos laborais já conquistados, bom como efetivamente combatidos o trabalho infantil, o trabalho informal, o trabalho clandestino na faixa de fronteira e o fluxo migratório para fins de trabalho, com a competente conjunção de esforços das diferentes instituições que atuam nesse contexto; b) seja realizado pela SEMTAS um diagnóstico das relações de trabalho na região, em razão dos impactos das reformas e privatizações ocorridas; c) sejam implantadas e implementadas políticas afirmativas para o exercício de atividades profissionais e econômicas nas regiões de fronteira internacional, de modo a regularizar a situação dos trabalhadores clandestinos ou informais nos dois lados da fronteira (por exemplo, o Tratado de Roboré, com a Bolívia, assegurava a proteção dos cidadãos brasileiros em território boliviano, e vice-versa, mas depois da flexibilização promovida pelo governo Collor, perderam-se essas garantias).
3) Políticas públicas de afirmação dos direitos das populações de fronteiras internacionais para a efetiva integração das comunidades fronteiriças: a) seja assegurado o acesso (e sem morosidade) a direitos já constantes da legislação a imigrantes que residem há mais de cinco anos e que já constituíram família no Brasil, no sentido de terem sua vida e a de seus descendentes regularizada (naturalização, acesso ao mercado de trabalho formal, ao Sistema Único de Saúde sem taxas adicionais, ao exercício profissional, com o reconhecimento do diploma de formação universitária a brasileiros egressos em instituições estrangeiras); b) mediante a implementação de políticas públicas específicas para a população de fronteira, sejam criados mecanismos efetivos para o equacionamento de problemas fronteiriços, que tumultuam o cotidiano das pessoas nos dois lados das localidades em fronteiras internacionais (com base no resgate e efetivo cumprimento de direitos constantes em acordos bilaterais ou multilaterais, como o Tratado de Roboré, com a Bolívia, além do Mercosul), no intuito de serem minimizadas questões em atividades econômicas como o comércio fronteiriço, a pesca profissional, o fluxo de táxis e ônibus circulares, bem como na proteção ao trabalhador estrangeiro residente em faixa de fronteira e na preservação de bens como veículos roubados em território brasileiro e a rigorosa punição aos receptadores que atuam na outra margem da fronteira); c) no âmbito da chancelaria brasileira, serem empreendidos ações diplomáticas para a implantação de legislação comum nas áreas ambiental, laboral, econômica, justiça e segurança pública e de integração sócio-cultural.
4) Políticas públicas para efetivar direitos da população infanto-juvenil: a) enfrentamento à violência juvenil com a implementação de iniciativas como o fomento da cultura da paz, mediante o desenvolvimento de programas sociais para o fortalecimento do núcleo familiar, em que estejam articuladas as políticas de educação, saúde, assistência social, formação profissional, geração de renda, esporte, cultura e lazer); b) combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, com base na efetivação da rede de proteção jurídico-social para o fortalecimento do sistema de garantia de direitos da população infanto-juvenil (nesse sentido, sejam conjugados esforços para executar as metas prioritárias do Plano Operativo Local do PAIR Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual contra a População Infanto-juvenil em Território Brasileiro , a implantação de Centro Integrado para o Atendimento Integral da Criança e do Adolescente e de Delegacia de Atendimento da Criança e do Adolescente); c) seja assegurado, pelo gestor municipal, efetivo investimento com recursos próprios para a implantação de uma política local de direitos humanos destinada à população infanto-juvenil; d) avaliação, pelo controle social, dos programas, projetos, serviços e ações direcionados para o público infanto-juvenil, no intuito de assegurar efetividade, resolutividade, intersetorialidade e otimização dos recursos públicos nele investidos; e) implementação, no âmbito das políticas de saúde e educação, de ações voltadas para a população juvenil em áreas temáticas da sexualidade, prevenção de DST/aids e substâncias psicoativas; f) implementação de campanhas de apoio ao núcleo familiar e de sensibilização para a adoção de crianças com mais de oito anos em situação de abandono ou fragilização; g) inclusão dos direitos humanos como tema transversal da grade curricular do ensino fundamental, médio e universitário, a fim de se fomentar postura ética e solidária das novas gerações; h) seja assegurada a execução orçamentária das metas previstas para a efetivação das garantias de direitos da população infanto-juvenil; i) implantação de programa de inclusão digital no âmbito das políticas destinadas à população infanto-juvenil, como mecanismo de fortalecimento da formação humana, profissional e cidadã.
5) Políticas públicas articuladas para a segurança pública: a) desenvolvimento de mecanismos que ofereçam maior capacidade de intervenção da sociedade civil na formulação, acompanhamento e fiscalização da política de segurança pública, de modo a otimizar os recursos destinados ao setor, assegurando maior resolutividade, transparência, fomento da inteligência e maior distanciamento da cultura armamentista das corporações policiais; b) estímulo às iniciativas regionais para maior integração com as corporações policiais fronteiriças, a fim de assegurar maior eficácia na repressão ao tráfico de veículos roubados ou furtados em território nacional; c) fomento à cultura do respeito aos direitos humanos no âmbito das corporações policiais, com a valorização e reconhecimento público dos profissionais do setor engajados em ações afirmativas nesse sentido; d) seja implantado, em cada unidade carcerária, programa baseado em atividades ocupacionais, associativas e de formação humana e profissional; e) implantação de uma política permanente de capacitação de policiais, agentes penitenciários, operadores de direitos e multiplicadores no contexto dos direitos humanos, de modo a garantir novas atitudes dos setores direta ou indiretamente ligados à segurança pública; f) mobilização para a mudança da lei de repressão ao crime de narcotráfico, de modo que os bens apreendidos ou desapropriados de traficantes condenados sejam destinados ao financiamento de projetos ou ações para a prevenção e desintoxicação de usuários de substâncias psicoativas nas localidades onde foi cometido ou flagrado o crime.
6) Políticas públicas articuladas para efetivar os direitos da população idosa: a) ampliação para meio salário-mínimo per cápita da renda mínima familiar do teto exigido para a concessão de benefício de prestação continuada ao idoso não contribuinte da previdência social; b) estruturação e articulação da rede intersetorial de atendimento e proteção jurídica da população idosa, com o correspondente estímulo à participação cidadão, fomentando a criação de entidades representativas do segmento, atualmente orientadas pela cultura do filantropismo; c) efetivação do controle social das políticas intersetoriais em implementação, com a necessária valorização dos Conselhos do Idoso, de caráter deliberativo e paritário, cuja representação não governamental seja eleita em foro próprio, sob a supervisão do Ministério Público, em analogia aos demais conselhos destinados ao controle social das políticas públicas sociais; d) implementação dos centros de convivência para idosos, com atividades em período integral; e) maior visibilidade, pelo Ministério Público, da apuração das denúncias de casos de abandono de idosos.
7) Políticas públicas articuladas para assegurar a inclusão social e efetivar os direitos das pessoas com necessidades especiais: a) implantação e implementação, em nível local, de políticas (programas, projetos, serviços e ações) intersetoriais voltadas à população com necessidades especiais (pessoas com deficiências, portadores de necessidades educativas especiais e portadores de patologias, como ostomizados, renais crônicos, pessoas atingidas pela hanseníase, soropositivos e usuários de substâncias psicoativas), de modo a assegurar-lhes acessibilidade, qualidade de vida e exercício pleno da cidadania; b) implementação de programas de inclusão do jovem PNE no mercado de trabalho; c) seja cumprida, em caráter de urgência, a legislação que garante a acessibilidade às pessoas com deficiências visuais, auditivas e de locomoção, sobretudo nas vias e logradouros públicos e no transporte coletivo (ônibus adaptado), cujo descumprimento atenta contra o direito de ir e vir desse público; d) disponibilização, pelo gestor estadual e municipal de saúde, de serviço de concessão de órteses e próteses, no intuito de assegurar a dignidade das pessoas que, por falta de opção, acabam se tornando reféns da filantropia oficiosa que trata como favor um direito consignado em lei; e) fixação em cinco por cento do orçamento do município para o financiamento das políticas de assistência social (vinte por cento do qual seja destinado às políticas de inclusão de pessoas com deficiência); f) implantação de um programa de capacitação permanente para profissionais do serviço público voltados para o atendimento desse segmento populacional; g) aplicação e cumprimento imediato, pelo gestor municipal, das disposições constantes da Lei Orgânica da Saúde, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei Orgânica da Assistência Social relativas às pessoas com necessidades especiais, tanto no financiamento como na garantia de direitos já conquistados.
8) Participação cidadã e efetivação do controle social das políticas públicas: a) os gestores de políticas púbicas (nas três esferas de governo) assegurem, fortaleçam e estruturem os conselhos de controle social de políticas públicas para a efetiva fiscalização de sua execução orçamentária, otimização dos recursos nelas investidos e sobretudo a necessária resolutividade junto à população destinatária; b) construção participativa das políticas públicas, com base em informações consistentes produzidas por diagnósticos de instituições de pesquisa com o efetivo acompanhamento dos respectivos conselhos de controle social, para assegurar que os programas, projetos, serviços e ações sejam frutos das reais demandas da sociedade e que não venham sofrer solução de continuidade; c) seja assegurado fluxo de informações com base no banco de dados do gestor da saúde, bem como de instituições como a Pastoral da Criança, Comissão Pastoral da Terra, Centro de Referência de Estudos da Infância e Adolescência (CREIA) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), de modo a que o controle social possa monitorar e contribuir para efetivar as políticas públicas locais; d) implantação do Conselho Municipal de Direitos Humanos, de caráter deliberativo e paritário, cuja representação não governamental seja eleita em foro próprio, sob a supervisão do Ministério Público, a exemplo dos demais conselhos destinados ao controle social das políticas públicas sociais, e que tenha como atribuições a aprovação da política municipal de direitos humanos (com base nas deliberações da Conferência Municipal de Direitos Humanos e no estrito cumprimento do Sistema Nacional de Direitos Humanos), o acompanhamento do plano municipal de direitos humanos e a fiscalização do Fundo Municipal de Direitos Humanos, destinado ao financiamento dos programas, projetos, serviços e ações pertinentes; e) implantação, em nível local, de política de inclusão digital destinada a todos os segmentos populacionais, com o propósito de ampliar o acesso às novas tecnologias, à informação e à cidadania; f) os conselhos de controle social de políticas públicas empreendam uma ação articulada junto aos seus respectivos gestores para que os espaços escolares possam, aos finais de semana e feriados, abrigar atividades de cidadania, no contexto de todas as políticas públicas aludidas; g) a sociedade organizada e conselhos de controle social de políticas públicas desenvolvam ações articuladas para garantir o acesso à informação da coletividade por meio de toda a mídia, inclusive rádios comunitárias, e, em vista de ser o acesso à informação um dos direitos humanos inalienáveis, seja implantada uma rede alternativa de comunicação, voltada para as informações inerentes aos direitos humanos e cidadania; h) construção da agenda local de direitos humanos, com a participação dos setores organizados da sociedade, conselhos de controle social de políticas públicas e respectivos gestores no intuito de, em um ano, ter estruturado em nível local o Sistema de Direitos Humanos; i) mobilização de diferentes segmentos da sociedade para implantar, no âmbito do município, políticas públicas e assegurar cidadania e dignidade aos homossexuais, que continuam a ser vítimas da exclusão por causa de sua orientação sexual.
9) Políticas públicas para o desenvolvimento sustentável: a) o gestor municipal das políticas de meio ambiente e desenvolvimento sustentável assegure o funcionamento autônomo e pleno do Conselho Municipal de Meio Ambiente e, no estrito comprimento da legislação federal, ofereça as condições para que os diferentes segmentos sociais e econômicos participem da construção da Agenda 21 local, bem como da elaboração do Plano Diretor do Município, Lei do Uso do Solo e Lei de Normatização de Transporte e Trânsito, como preconiza o Estatuto da Cidade; b) além da participação efetiva da população nas decisões referentes ao desenvolvimento local, seja assegurado o acesso à informação sobre benefícios e malefícios ambientais, sanitários, sociais, econômicos e culturais decorrentes da execução de empreendimentos a serem implantados na região com características peculiares, seja mediante a realização de audiências públicas ou pela instituição de lócus de controle público, nos termos da legislação ambiental; c) o gestor das políticas ambientais, nas três esferas de governo, em parceria com as instituições de ensino e pesquisa e organizações não governamentais implementem uma política permanente de educação ambiental, de modo que amplas camadas da população tenham acesso às informações sobre os bens naturais não renováveis e a sua importância para assegurar qualidade de vida à humanidade; d) que o poder público implemente política de produção com assistência técnica, armazenamento, abastecimento, transporte, vias de acesso e comercialização aos produtores familiares de projetos de assentamento e comunidades tradicionais do Pantanal; e) seja implantada política pública para fomentar o associativismo do segmento da população que sobrevive da coleta de material reciclável dos lixões; f) divulgação das áreas de preservação permanente pelo poder público e sua respectiva fiscalização; g) a saúde ambiental seja priorizada pelo gestor municipal, ao lado do saneamento ambiental.
Corumbá (MS), 10 de maio de 2004.

Organização: Grupo de Trabalho Regional do Pantanal, constituído pelo Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD), Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Instituições de Pesquisa e Desenvolvimento Florestal (SINPAF), Prefeitura Municipal de Corumbá (Secretaria Geral da Prefeitura e Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social SEMTAS), Poder Judiciário, Câmaras Municipais de Corumbá e de Ladário.

Apoio: Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), Sindicato dos Trabalhadores Ferroviários de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso (STFBUMSMT), Pacto Pela Cidadania (Movimento Viva Corumbá) e Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida (Comitê de Corumbá e Ladário).

segunda-feira, 4 de julho de 2016

AOS 100 ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO (MAHOMA HOSSEN SCHABIB, 1914 - 1996)

REPUBLICAÇÃO EM HOMENAGEM AOS 20 ANOS DE FALECIMENTO

AOS 100 ANOS DO INCANSÁVEL PEREGRINO

MAHOMA HOSSEN SCHABIB (1º/10/1914 – 04/07/1996)


Se estivesse vivo, o Peregrino que a Vida generosamente nos presenteou como Pai estaria completado 100 anos nesta quarta-feira, dia 1º de outubro de 2014.

Nascido no dia em que eclodira a Primeira Guerra Mundial na bucólica e formosa Rasen-Hache (província de Batroun), no Líbano, o incansável Peregrino chamado Mahoma Hossen Schabib ficara órfão de Mãe, dona Maquie Madi, aos 5 anos de vida. O Pai, Hussein Schabib, não quisera que os sete filhos (quatro meninas e três meninos) tivessem madrasta. Como caçula, coube às irmãs, bem mais velhas, cuidar dele. Por influência do primo mais velho, matemático e poeta Scandar Shalak, alfabetizara-se precocemente, e logo fora para o internato na distante Damasco (capital da Síria), onde concluíra com destaque os níveis fundamental e médio.

Ele contava, emocionado, que tivera o privilégio de ver a comoção popular quando da chegada do corpo do imortal poeta libanês Gibran Khalil Gibran (autor de “O Profeta”, entre outras obras) a Damasco para as homenagens póstumas na Síria e Líbano, quando professores participaram como oradores das celebrações ecumênicas. Igualmente, narrava com indisfarçável indignação sobre a repressão, pelos gendarmes franceses, ao movimento juvenil sírio contrário à opressão colonialista em meados da década de 1920, em que milhares de intelectuais e universitários foram torturados e mortos sem piedade, logo por aqueles que se diziam agentes da civilização e do progresso ao substituir o igualmente obscurantista e opressor império turco-otomano, de triste memória.

Obstinado, não sossegara enquanto não transpusesse as fronteiras políticas da Arábia, dividida à época pelos impérios britânico e francês (Líbano e Síria, colônias francesas; Palestina e Egito, colônias britânicas). Para tanto, passou-se por beduíno e atravessou todo o território da Palestina (ainda livre da ocupação sionista), pela fronteira do sul do Líbano e chegar, por Gaza, ao Cairo, no Egito, para cursar Filosofia na milenar Universidade Al-Azhar – fechada em 1954, início do governo de Gamal Abdel Nasser, por causa de seus arqui-inimigos da Irmandade Islâmica, contrária ao Estado laico implantado pelo maior estadista árabe dos últimos cinco séculos. Mas ele (meu Pai) não pôde concluir o curso universitário por causa da eclosão da Segunda Guerra Mundial: o Egito era colônia da Grã-Bretanha e o ardil colonialista obrigava os jovens mais instruídos ao alistamento militar – uma acintosa forma de eliminar a juventude inquieta porque esclarecida, feito bucha de canhão.

Mesmo a contragosto, acabou interrompendo os estudos no final do curso (1939), aceitando o conselho de seu irmão mais velho, Ale Hossen Schabib (que, naturalizado boliviano, virou Alejandro Hossen, pois, como em todo país hispânico, o primeiro sobrenome é o que conta). Esse irmão havia emigrado para a América no fim da Primeira Guerra Mundial e, depois de incursionar pela Amazônia brasileira, decidira estabelecer-se na Bolívia, de onde custeava os estudos do irmão caçula, além de ajudar a família com o que fosse possível naquele período de miséria e tragédias no Hemisfério Norte. A sua esperança – e consolo – era que a guerra não levasse muito tempo e que ele não demorasse a retornar ao Cairo para concluir seus estudos e seguir seu projeto de vida no Oriente Médio.

OUTRA CULTURA, NOVOS DESAFIOS
Mas não foi bem assim. Para começar, foi uma verdadeira epopeia chegar até a América do Sul, atravessando dois oceanos num barco de cruzeiro da companhia italiana de navegação Costa, o “Ana C”. Aportou em Arica, no Chile, após a travessia do Canal do Panamá com as suas comportas deslumbrantes. Em seguida, voou literalmente sobre a Cordilheira dos Andes até chegar a La Paz, a mais de três mil metros de altura, e seguir em outro voo até a capital do departamento de Beni, Trinidad, na Amazônia boliviana, para finalmente conhecer o irmão mais velho com quem só se relacionara até então por cartas – afinal, ele partira quando meu Pai era de colo. Adaptar-se à vida de mascate num país de cultura totalmente diferente da sua foi outra proeza. Com a ajuda do irmão que era como Pai, procurou estabelecer-se num povoado menor, Magdalena, para capitalizar-se e logo ganhar autonomia financeira. Mas as adversidades (entre elas, o naufrágio de seu batelão carregado de mercadorias) o fizeram descapitalizar-se e quase lhe custaram a própria vida, em 1940, que ele passara a grafar como “0000” (quatro zeros), pois os prejuízos o fizeram voltar à estaca zero.

Perseverante, em cinco anos – praticamente o período da sangrenta guerra que acabou com a inocência da humanidade –, entre a disciplina nos estudos (não abandonara o hábito de estudar, nem quando atingiu a terceira idade, lendo sistematicamente no mínimo quatro horas diárias) e no trabalho, aprendeu a arte do comércio e dois novos idiomas (espanhol e inglês), e logo era detentor de um capital monetário respeitável. Por essa razão, o irmão que fazia as vezes de Pai o aconselhara a ir se preparando para casar-se. Coincidência ou não, nessas incursões como mascate havia conhecido um dentista muito popular, de nacionalidade libanesa, o assim chamado doutor José (Yussef) Al Hany, Pai de dez filhos (seis meninas e quatro meninos) com uma única companheira, a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany, afável, culta e hospitaleira.

O doutor Hany, druso (ou derzi, religião espiritualista oriental); a dona Guadalupe, católica, de Pai maronita (variação libanesa de catolicismo cujo sacerdote pode se casar). Meu Pai, muçulmano. Como os árabes, a exemplo dos brasileiros, vivem e celebram a diversidade, não demorou muito para que a mais velha das filhas, a bela Wadia Hany Ascimani, decorrido algum tempo, viesse a contrair núpcias com o jovem imigrante. Não é demais dizer que naquela época, entre os árabes, não era tão acirrada a intolerância religiosa de hoje, alimentada pelas potências ocidentais dentro da ignóbil lógica do “dividir para reinar”, iniciada com a imposição do Estado sionista no território da Palestina em 1948, como perniciosa reparação dos danos causados pelos europeus nazistas em território europeu, e que nada têm a ver com os árabes, estes também vítimas dos abusos colonialistas até a presente data.

Casaram-se em abril de 1948 (ironicamente três semanas antes da formalização, pelas potências mundiais, do Estado de Israel), uma relação conjugal que durou 48 anos e dois meses (meus Pais já planejavam comemorar suas bodas de ouro, quando uma parada cardíaca interrompeu, em 1996, seus projetos comuns de Vida). Mas essas quase cinco décadas, como em tudo na Vida, não foram um mar de rosas, pois tiveram altos e baixos. Os primeiros cinco anos de vida conjugal, sim, por conta da estabilidade econômica então reinante na Bolívia, foram tranquilos: minha Mãe aprendeu logo as habilidades comerciais, tendo se tornado referência nos negócios crescentes da família. Deixaram a Amazônia depois do nascimento da segunda filha, indo residir na chamada cidade-jardim boliviana, Cochabamba, localizada num formoso vale da Cordilheira dos Andes e com excelente qualidade de vida, cultura e cosmopolitismo.

VOLTA ÀS ATIVIDADES INTELECTUAIS
Nesse importante centro cultural boliviano, até por conta da estabilidade da economia familiar, meu Pai decidiu retomar os estudos na Bolívia, e não demorou muito para que exercesse com maestria o jornalismo, além de conduzir um programa radiofônico sobre a cultura árabe e as relações com a América Latina. (Era um período de efervescência política em todo o mundo: além da consolidação do socialismo como alternativa real para todos os povos vítimas do saque e da exploração de suas riquezas naturais e de sua gente, na Bolívia viviam-se as transformações decorrentes do triunfo da Revolução de 1952 boliviana, e na Arábia espalhavam-se os ideais de Nasser, um dos jovens líderes da Revolução de 1952 egípcia, que acabou com o jugo pró-inglês do rei Faruk no Egito e mudou os rumos do povo árabe disperso em 22 Estados divididos pelo Ocidente e das nações do Terceiro Mundo no século XX, ao fundar, com Broz Tito, Jawaharlal Nehru e Chu En-Lai, o Movimento dos Países Não Alinhados.) Talvez a excessiva visibilidade tivesse exposto muito meu Pai diante de adversários poderosos, até então desconhecidos, que se valeram da crise sociopolítica e econômica na Bolívia para desencadear contra ele uma série de ações judiciais e fragilizá-lo comercial e economicamente. Em meio a uma avalanche inflacionária de mais de nove mil por cento ao ano, no início da década de 1960, meus Pais decidiram vender todo o seu patrimônio, construído com muito esforço ao longo de três décadas, a fim de reunir o máximo possível para adquirir as passagens para dez pessoas (dois adultos e oito crianças) de trem e navio a fim de retornar ao Líbano, onde nasceu a caçula dos filhos e permanecemos por quase quatro anos. Nesse meio-tempo, meu Pai cobriu para a Rádio Cairo em espanhol, uma revista árabe-chilena chamada “Mundo Árabe” e uma edição em espanhol da revista brasileira “O Cruzeiro” a luta pela independência das nações árabes do norte da África (Argélia, Líbia e sobretudo o Egito, que passara a se denominar República Árabe Unida, um Estado confederado com a Síria e o Iraque, mas que não durou muito por conta das investidas ocidentais e de seus fantoches dos reinos, emirados e sultanatos árabes, temerosos de que a experiência socialista de Nasser no Egito irradiasse para os demais países do Oriente Médio).

Como o jornalismo não lhe proporcionara o suficiente para o sustento de uma família de onze pessoas (nove delas crianças e adolescentes), meu Pai lançara mão de suas últimas economias para tentar se estabelecer com um restaurante na segunda maior cidade libanesa, Trípoli (capital da província de Batroun), em sociedade com um primo que já fora seu sócio na fronteira da Bolívia com o Brasil (Guajará Mirim, Rondônia), Hussein Khalil Schabib. Entre as atividades comerciais e a agricultura (nas terras herdadas do Pai), tentou se recuperar financeiramente, mas decidiu por retornar para a América do Sul, pois o clima político no Líbano não lhe inspirava bons augúrios. Ele pressentira, pela insustentabilidade do cotidiano do cidadão comum libanês, a revolta das camadas populares contra as oligarquias libanesas, fato que eclodiu em 1974 com a trágica guerra civil que durou duas décadas, dizimou e empobreceu a população e destruiu a infraestrutura do país após a invasão de tropas israelenses e americanas, no início da década de 1980, provocando uma série de massacres nunca antes vistos no Líbano ou qualquer outra nação árabe, à exceção da Palestina e da Argélia em sua luta pela independência (depois, sim, vimos, em maior escala, a invasão do Iraque e da Líbia – e agora na Síria – pelos mesmos gendarmes e mercenários de Israel e Estados Unidos, em pleno século XXI).

A ESCOLHA DE CORUMBÁ
Nos quase 25 anos que vivera na Bolívia, inúmeras vezes viajara de avião ou trem pela região do Pantanal, tendo ficado em Corumbá por breves estadas, sobretudo depois que fixara residência em Cochabamba. Rumo a São Paulo, de onde comprava muitos itens para abastecer seu comércio atacadista, havia se encantado com o desenvolvimento desta região, que, depois da inauguração da ferrovia Corumbá – Santa Cruz de la Sierra, passou a compará-la à região de Milão pelo tronco ferroviário e a importância desse transporte para a integração do continente. Por isso, quando se decidiu por retornar para a América do Sul, sua escolha recaiu sobre Corumbá, de modo que os três filhos mais velhos (que estavam por chegar à universidade) ficassem na casa da Vovó Guadalupe e os demais não tão distantes do país que o acolhera na juventude e, a despeito das adversidades, lhe ensinara muito. Ele era muito grato ao povo boliviano por tudo que lhe ocorreu na Vida. Obviamente, como todo imigrante, amava todos os países que o acolheram. E sua relação com o Brasil foi como o coroar de seus sonhos e lutas, até pelo fato de haver feito a escolha em plena maturidade. Assim, quando se estabeleceu com um modesto comércio de armarinhos, à rua Joaquim Murtinho, plena Feira Boliviana (a poucas quadras da estação ferroviária da Red Oriental da Bolívia, à época separada por uma centena de metros da ferroviária da Noroeste), semanas antes do golpe militar de 1964, iniciava uma nova fase em sua renhida existência de Peregrino incansável.

Seis meses mais tarde, início da primavera de 1964, meu Pai deu início a seu projeto de trabalho (e de Vida) no coração do Pantanal e da América do Sul (era assim como ele via Corumbá, centro do bioma e do subcontinente): abrir uma sorveteria (com a solidária assessoria de um Amigo libanês, Fauze Rachid e sua esposa boliviana Pura Ceballos de Rachid, proprietários da popular Sorveteria Superbom, e que anos depois se mudaram para Puerto Suárez) e construir uma hospedaria (pousada) com menos de uma dezena de quartos, que em pouco mais de cinco anos se transformara em referência para comerciantes bolivianos e jovens turistas de todo o mundo por causa da higiene, segurança e atenção de seu proprietário poliglota e bem informado (como recomendavam os guias pioneiros que descobriram a rota dos Incas e os safáris fotográficos do Pantanal, sem qualquer incentivo das instâncias de governo federal, estadual e municipal de todos os países sul-americanos, que viam os mochileiros barbudos como suspeitos, quer fosse como “subversivos” ou como “maconheiros”), depois de ter conseguido comprar, com o pouco que lhe restava da venda de seus bens do Líbano, uma casa modesta de um simpático casal de idosos (o senhor Afonso, português, e dona Paulina, corumbaense, irmã de uma vizinha que logo ganhou status de vovó, a dona Ventura, muito cordial e sempre presente nos primeiros anos da chegada de toda a Família).

Foi com essa modesta pousada que, por quase trinta anos, assegurou o sustento digno de uma numerosa família de nove filhos, tendo como meta dar-lhes formação universitária. Quando um amigo bem próximo lhe propôs um empréstimo para ampliar as instalações da pousada, diante do movimento e do reconhecimento de seus serviços, ele revelou que não pretendia ser dono de rede de pousadas ou fazendas, mas pai realizado por ver todos os seus filhos a concluir os seus estudos, independentemente da profissão escolhida. Obviamente que a perda do filho mais velho (ocorrida em circunstâncias não elucidadas pela polícia em 1974, que me induziu a declarar, aos 15 anos, que fora por suicídio, fato questionado por seus colegas universitários e sobretudo por um investigador de uma seguradora que por coincidência se hospedara dois meses depois da tragédia), Mohamed (ou carinhosamente “Tchítchi”), o abatera profundamente: ainda que não abandonara as metas que traçara para sua Vida, com a maior dignidade e responsabilidade, não era difícil pegá-lo lacrimejando ao ler ou conversar com jovens que lembrassem o espírito arrojado do saudoso filho.

A propósito dessa tragédia, houve quem propusesse que denunciássemos o governo do mais sanguinário, corrupto e mercenário dos ditadores bolivianos, Hugo Banzer Suárez, pela morte de nosso irmão, cuja memória foi criminosamente vilipendiada pela chefia da polícia local nos tempos nefastos da ditadura. Lembro-me como hoje que, acompanhado de dois queridos Amigos (Juvenal Ávila de Oliveira, então radialista, e João de Souza Álvarez, fotógrafo à época da tragédia), visitamos quase todas as redações de jornais locais que haviam estampado a manchete sensacionalista do tipo “estudante (sic) universitário se fuzila sem deixar carta” (coisa típica de crônica policial chapa-branca, espreme-sai-sangue) a fim de esclarecer os fatos e pedir que republicassem a matéria dando-nos o direito de mostrar o outro lado dessa notícia. Alguns, obviamente, nem se deram a esse trabalho. Mas o velho Diário de Corumbá, então dirigido pelo jornalista Carlos Paulo Pereira Júnior, corrigiu a notícia com o devido destaque. O Pai dele, fundador do jornal em 1969, jornalista Carlos Paulo Pereira, tinha uma relação de amizade com o meu Pai, que desde as primeiras edições colaborava com matérias de política internacional. Por conta desse gesto, a partir de então meu Pai passou a assinar também matérias de fundo espiritual, não doutrinário, em que homenageava de alguma forma meu saudoso Irmão. Talvez o artigo dele que mais tenha repercutido na década de 1970 tenha sido “De onde viemos, para onde vamos e por quê?”, o qual foi publicado em dois idiomas em diversos jornais do Brasil e da Bolívia.

A MILÃO SUL-AMERICANA
Ainda na década de 1970, por ocasião do bicentenário da fundação de Corumbá, publicou outro emblemático artigo, desta vez voltado para as perspectivas de desenvolvimento da região do Pantanal, quando explicou por que o turismo, ao lado do comércio, eram a vocação natural de Corumbá – tendo então comparado a posição estratégica do coração do Pantanal a Milão, na Itália. Essa matéria foi levada por um turista para publicá-la num jornal espanhol e em outro italiano. Desde então, quando calhava de se hospedar algum jornalista em sua pousada, meu Pai fazia questão de entregar alguns artigos de sua autoria, autorizando-o a publicar como quisesse, ainda que sequer publicasse a autoria. Ele foi um defensor declarado de que as ideias não têm “dono”, e é um dever fazê-las circular, em benefício da humanidade.

Mas foi ao lado de outros dois imigrantes como ele – William “Bill” Sefusatti, o ítalo-britânico dono dos barcos Califórnia, e Hermann Pettersen, alemão casado com Dona Maria, cuiabana, dono do restaurante El Pacu, ambos localizados no Casario do Porto – que anonimamente deu sua contribuição para a consolidação do turismo contemplativo no Pantanal entre os fins da década de 1970 e início da década de 1990, quando alguns guias pioneiros brasileiros também passaram a integrar a atividade, tais como Clóvis Brandão Carneiro, Rodrigues, Guilherme Carstens, Armando Duprat, Roberto Kassar, Joaquim, Catu, Gilberto, José Bobadilha, José Paraguaio, Johnny Índio, entre outros. De forma bem profissional, ao lado da pioneira La Barca Tours, da família Nader, o também pioneiro J. Carneiro e seu Expresso do Pantanal consolidaram de forma sustentável o turismo voltado para as famílias que vinham conhecer o bioma pantaneiro pelo majestoso Rio Paraguai.

No início da década de 1990, frustrado com a sucessão de equívocos cometidos pelos gestores do turismo em nível estadual e municipal, que em troca de favores eleitoreiros, permitiam que os chamados guias piratas prostituíssem a atividade em Corumbá, iniciou uma série de artigos sobre a importância do turismo e fazendo explícitas advertências às instâncias administrativas. Recebia telefonemas de cumprimentos “pela coragem”, mas as sugestões reiteradas para a organização da atividade na região jamais viu serem implementadas. Tanto assim, em maio de 1994 encerrou as atividades de sua modesta pousada, depois de trinta anos de trabalho ininterrupto, em protesto contra a pirataria que então tomava conta do turismo.

Para não se deprimir, fez sucessivas viagens com a minha Mãe – ao México, onde mora um de meus irmãos e suas filhas; ao Líbano, onde deixou praticamente toda a Família, e à Bolívia, onde visitou a Família e amigos contemporâneos seus, ainda saudáveis – e, quando se preparava para organizar sua “segunda lua-de-mel”, para comemorar suas bodas de ouro, faleceu subitamente, ao meio-dia de uma quinta-feira, 4 de julho de 1996, aos 82 anos incompletos.


Minha Mãe, dona Wadia, viveu mais treze anos, tendo resistido estoicamente a um câncer virulento que a silenciou sem lhe tirar o gosto pela Vida, em menos de seis meses. Internada num hospital de Campo Grande, ela deu seu último suspiro no início da manhã de uma segunda-feira, dia 15 de junho de 2009, aos 83 anos de idade. Eles tiveram nove filhos (seis mulheres e três homens) e um legado de trabalho e muita dignidade, um exemplo para todos nós que nos orgulhamos de sermos filhos seus.