terça-feira, 31 de maio de 2016

AOS GRADUADO(A)S DE HISTÓRIA 2016 (CPAN/UFMS, 27.05.2016)



Boa-noite! Por meio do Professor Doutor Edgar Aparecido da Costa, Diretor do Campus Pantanal, saúdo os membros da mesa, graduandos/graduandas, familiares e amigos/amigas, presentes a este ato solene de Colação de Grau!
Quero parabenizar e desejar boa sorte aos graduandos e às graduandas de 2016, grandes vencedores/vencedoras, por mais esta conquista! Em especial aos novos e às novas colegas no ofício de professor/professora de História, a quem agradeço pela honra com que me distinguiram na antevéspera do cinquentenário de criação do Instituto Superior de Pedagogia, hoje CPAN!
Integrantes da turma que tem o nome do saudoso Professor Doutor Eduardo Saboya, protagonista de lutas memoráveis num tempo em que defender a liberdade e a democracia era correr risco de perder a liberdade quando não a própria vida – até por isso uma honra ainda maior participar deste ato, em que reitero à Professora Doutora Vilma Elisa Trindade, companheira de ofício e de vida do Professor Saboya, a fraternal saudação e o reconhecimento da relevante contribuição do Professor que fez da História sua honrada trincheira de luta.
A História, aliás, é um dos expoentes das Ciências Humanas, mas que tem sido relegada a papel secundário pelos que se pretendem paladinos dos destinos da humanidade desde o pós-guerra de 1945 e que na última década do século XX ousaram decretar o bizarro “fim da história” e o anacrônico “choque de civilizações”.
Este é o desafio aos novos e às novas colegas que optaram por esse fecundo labor, nestes pouco generosos tempos em que o maniqueísmo e a intolerância atentam contra o almejado progresso, no sentido dialético, da humanidade, impondo-nos impunemente o caos, a delinquência e a barbárie.
Mais que nunca, a História sempre foi, é e será sinônimo de inquietude e de esperança. Inquietude porque nos cabe a dura tarefa de desconstruir, desmistificar, resgatar e reestruturar a realidade, de modo que as novas gerações possam encontrar sentido de pertencimento e empoderamento para retomar o protagonismo usurpado. Esperança porque, embora devamos sempre questionar, não podemos perder a crença, a fé, na humanidade, pois o ceticismo, a incredulidade sistemática, é a porta de entrada para o cinismo pernicioso, responsável pela ameaça iminente às sociedades contemporâneas.
Portanto, não basta apenas pretendermos ser bons profissionais, é fundamental que antes de tudo sejamos bons cidadãos, sinceramente comprometidos com os destinos de nossa espécie e de todo o planeta. Até porque a vida não pode ser reduzida ao simplório antagonismo do “bem contra o mal”, ou do “mocinho contra o bandido”, mas sim compreendê-la na inesgotável capacidade de o ser humano renascer do caos, da decadência, da barbárie.
Não esqueçamos: tal qual a verdade, a História não tem donos, detentores absolutos. Sua razão de ser é o progresso social, cultural, político e econômico da humanidade e de seus mais elevados valores e princípios, construídos por diferentes povos, etnias, culturas, filosofias, religiões e crenças ao longo de milênios.
Bem-vindos, pois, estimados e estimadas colegas, ao ofício de professor/professora de História – e, se assim o desejarem, futuramente competentes historiadores e historiadoras!
Queridos Iran, Marcelo e Thiago! Queridas Jéssica, Joana e Rosinnete! Felicidades, vida longa, muita saúde, sabedoria e, sobretudo, humildade e trabalho, muito trabalho!

A PROPÓSITO DE MOVIMENTO ESTUDANTIL (AOS CALOUROS DO CPAN/UFMS 2016)



Disparada
(Geraldo Vandré – Jair Rodrigues)

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar:
Eu venho lá do sertão, e posso não lhe agradar.

Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar.
E a morte, o destino, tudo,
Estava fora de lugar,
Eu vivo pra consertar.

Na boiada já fui boi, mas um dia me montei.
Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse,
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu.

Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte,
Muito gado, muita gente, pela vida segurei.
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei.
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo.
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando,
As visões se clareando, até que um dia acordei.

Então não pude seguir, valente em lugar tenente,
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca,
Tange, ferra, engorda e mata,
Mas com gente é diferente.

Se você não concordar, não posso me desculpar:
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola,
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar.



Bem-vindo(a)s à melhor fase de sua Vida!
Desde pequeno(a)s, passamos a Vida toda dizendo “o que queremos ser quando crescermos”. Pois este é o momento disso tudo: nos prepararmos para sermos aquilo que povoou nossos sonhos, desde a infância ou a adolescência.
A chegada à universidade é uma importante conquista para todo(a)s nós. Independentemente do curso que pretendamos fazer: mais importante que o curso e que a instituição que escolhemos, o fundamental é a nossa formação humana, cidadã.
Repito: não adianta sermos o(a) melhor aluno(a) da turma, porque o importante é sermos o(a)s melhores cidadão(ã)s com todo(a)s, no conjunto. É como se fôssemos um elo de uma corrente, e a força dessa corrente depende do seu elo mais fraco, que precisa ser forte o suficiente para não sermos quebrados.
E para isso, chega de competirmos uns(umas) com o(a)s outro(a)s! Precisamos aprender é a competir com o nosso interior – isto é, aprendermos a lapidar o atraso que habita em nós, ou, se preferirem, na linguagem destes tempos de temeridade: a domar o “demo” que está dentro de nós, por mais “do bem” aparentemos ser para o(a)s outro(a)s.
A sabedoria popular espanhola ensina que “o que a natureza não dá Sorbonne (ou Harvard) não empresta”. (No original em espanhol é bem mais bonito: “Lo que natura no da Salamanca no presta.”)
Isto dito, isto posto, vamos à história do Movimento Estudantil.
Obviamente, não existe uma história oficial do Movimento Estudantil. Até porque as histórias oficiais costumam ser um tanto inverossímeis, inacreditáveis – para não dizer um tanto “mentirosinhas”...
O fato concreto é que, desde os tempos do Renascimento (o fim das trevas da Idade Média), os jovens estudiosos, dedicados ao conhecimento, à filosofia, ao saber, já se reuniam para “conspirar” (no melhor sentido possível) contra as falsas verdades, os mitos, os “tabus” que as elites poderosas impunham aos demais. Foi assim como nasceu e proliferou o Humanismo (ou melhor, o antropocentrismo, que se contrapunha ao teocentrismo, que com todo o respeito com o credo das pessoas, parece querer voltar com a mesma virulência dos tempos inquisitoriais, de triste memória).
Não é demais lembrarmos que graças ao Humanismo foi possível compreendermos que a Terra não era um plano infinito, mas redonda, e que não era o centro do Universo. Galileu Galilei, Nicolau Copérnico e Giordano Bruno tiveram que se ver com o tribunal da Santa Inquisição pela “heresia” (entre aspas) de ter elucidado isso para os seus contemporâneos – lembrando que, igual Joana D’Arc, Bruno morreu na fogueira da Inquisição.
Os estudiosos de então descortinaram a ciência moderna, que na Antiguidade já havia dado passos importantes a partir de Tales de Mileto e seguidores da escola milésia. Na modernidade, coube a Newton explicar para o mundo as geniais leis da gravidade, da ação e reação e das forças centrípetas e centrífugas; a Descartes, o método cartesiano que serve de base da ciência até nossos dias; a Lavoisier, a grande tese de que “na natureza nada se cria, nada se perde: tudo se transforma”, e a Mendel, sobre o princípio da genética.
Mas aqui cabe um parêntese: Antes de Cristo, os geniais Heráclito (o iluminado filósofo peregrino que revelou o princípio da dialética e que não chegou a constituir escola por sua intensa capacidade contestadora da ordem vigente) e Sócrates (fundador de uma das mais importantes escolas filosóficas da Antiguidade Clássica e que foi condenado à morte mediante cicuta sob acusação de aliciar jovens) podem ser considerados como os precursores da contestação, do questionamento, da desconstrução das falsas verdades que povoavam o imaginário das pessoas de seu tempo.
E aqui, novamente, um esclarecimento sobre a dialética de Heráclito, que no século XIX foi resgatada por Hegel (por isso “dialética hegeliana”) e que inspirou Marx e Engels em sua análise da História. Nas palavras de Lulu Santos, em “Como uma onda”, uma definição bem moderna:


Como uma onda
Lulu Santos

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará...

A vida vem em ondas, como um mar
Num indo e vindo
Infinito

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo



Não por acaso, a juventude e os estudos são o binômio que todo conservadorismo teme. E falando claro: não basta ser jovem, é preciso ser estudioso(a), conectado(a) à realidade, para estar à frente de seu tempo, na vanguarda.
E foi assim como nasceu o que bem mais tarde foi denominado de “Movimento Estudantil”: já na chamada Idade Moderna, durante o processo de afirmação da burguesia como classe então revolucionária, o chamado Iluminismo (ou Enciclopedismo) era exatamente isso – a soma do ímpeto juvenil com as luzes oriundas do saber.
Não só a Revolução Francesa foi protagonizada, mas todo o processo de independência das colônias da América, desde os Estados Unidos (em 1776) até as nações ibero-americanas de nosso entorno, algumas bem depois do Brasil, dentro do marco dos Libertadores da América (Simón Bolívar, Antonio José de Sucre, José Martí, Andrés de Santa Cruz etc), contra o qual, lamentavelmente, conspiram os golpistas que assaltaram o governo neste fatídico mês de maio, induzindo o(a)s desinformado(a)s a ter preconceito contra a integração latino-americana, a grande saída emancipadora desde os tempos coloniais do século XIX.
Aí, com todo o devido respeito, o Brasil é uma exceção, vocês sabem: foi resultado de um acordo entre as coroas inglesa e portuguesa, pelo qual coube ao povo brasileiro ficar com a vultosa dívida externa portuguesa, como forma de compensar a perda da colônia para os ingleses, ávidos de novos centros provedores de matéria-prima e de mercados consumidores para os produtos do capitalismo incipiente.
E por falar em capitalismo, em menos de 50 anos, este sistema econômico enfrentou a sua primeira grande crise, ainda durante a primeira Revolução Industrial: a vigência de um mercado autorregulável (isto é, sem legislação que o disciplinasse), associada a guerras por disputa de territórios, levou ao agravamento da situação econômica, com a falta de matéria-prima, excesso de alguns produtos e desemprego (era a primeira metade do século XIX). Isso levou a classe operária a se organizar para defender seus direitos.
Nesse contexto, nascem correntes filosóficas e políticas voltadas para os interesses legítimos dos trabalhadores. Foi quando Marx e Engels escrevem o “Manifesto de 1848” e desenvolvem estudos sobre as contradições do capitalismo, consolidadas na clássica obra “O Capital”. Isso serviu de ponta de lança para a organização dos trabalhadores em todo o mundo, e, com eles, os intelectuais de vanguarda, desejosos de uma sociedade mais justa, livre e solidária. Até a Igreja Católica, por meio da encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII, saiu em defesa do “mundo do trabalho”, muito embora houvesse outras motivações nos bastidores.
No Brasil, desde os tempos coloniais não foram poucos os intelectuais que, organizados em grupos políticos, afrontaram os interesses dos colonizadores e ousaram contrapor-se, ainda que à custa de sua liberdade e de sua própria Vida. Foi o caso de Zumbi, no Quilombo dos Palmares; de Tiradentes, na opulenta Vila Rica das Minas Gerais; Frei Caneca, em sua ousadia contra a herança colonial.
Antes, porém, houve a manifestação (que não era solitária, pois havia uma rede de solidariedade entre os irmãos jesuítas envolvidos nesses nobres ideais) de José de Anchieta, Manoel da Nóbrega, Antônio Vieira e André João Antonil. Embora seja mais comum lermos na escola sobre os Sermões de Antônio Vieira e os poemas de Anchieta, Nóbrega e Antonil escreveram muitas verdades aos seus irmãos jesuítas e se viram envolvidos em complicações por sua, entre aspas, “desobediência”.
A maior prova disso é a obra clássica “Cultura e opulência no Brasil”, de Antonil, a primeira obra verdadeiramente analítica sobre a cobiçada colônia, que passou dois séculos sob censura, depois de publicada, trancafiada nos palácios da metrópole, por ordem expressa da coroa, que alegava que sua publicação atentava contra a segurança dos interesses coloniais.
Além deles, tivemos Castro Alves e Gonçalves Dias, na luta pela abolição da escravatura, e Tomás Antônio Gonzaga, contra a colonização portuguesa. Nossa literatura e nossa história se confundem no relato dos movimentos emancipadores, seja contra a escravidão ou contra a truculenta rapinagem colonial, que ainda hoje vive à espreita, por meio de personagens de nossa política, nos maiores cargos da República, e, pior, em nossos dias, quando um presidente interino é denunciado por seus vínculos com a espionagem da maior potência militar contemporânea.
Pois, enquanto as ex-colônias espanholas dispunham de inúmeras universidades com mais de duzentos anos à época de sua independência, o Brasil só viria a implantar as academias no início do século XX, por ocasião do centenário da independência. Por conta disso, precisou recorrer a expedientes como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), de perfil conservador e oficioso (afinal, funcionava como uma edícula do palácio imperial de Dom Pedro II). O IHGB foi o responsável pela identidade imposta ao povo brasileiro, de que o Brasil era um “país branco, católico e monarquista”, no intuito de legitimar a herança colonial portuguesa, com sua dinastia.
Obviamente, a despeito do oficialismo entranhado, não foram poucos os intelectuais republicanos e abolicionistas capazes de liderar movimentos, como Frei Caneca, Ruy Barbosa e Capistrano de Abreu. E é bom que se diga que eles não têm uma relação direta com a Lei Áurea e a Proclamação da República, sobretudo esta última, que não passou de um golpe, sem qualquer apoio popular, como retaliação à sanção pela Princesa Isabel da lei da abolição da escravatura, sem assegurar, porém, aos libertos as mínimas condições de vida ou qualquer indenização para que vivessem com dignidade.
Mas, nesse contexto acanhado e conservador, movimento mesmo, só viria a se constituir a partir da segunda década do século XX, inclusive por conta de episódios históricos de grande relevância, como a Semana de Arte Moderna acontecida em São Paulo, o Tenentismo que norteou o jovem oficialato sedento de justiça e liberdade, a Coluna Prestes que peregrinou por todo o país, e inclusive a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), como será possível constatar na obra do célebre historiador Edgar Carone sobre o Movimento Sindical e a República no Brasil.
Mas o Movimento Estudantil, como vanguarda política nacional, só ganha expressão a partir da década de 1930. Antes do famigerado MMDC, durante a conflagração da Revolução Constitucionalista de 1932, de São Paulo. No Rio de Janeiro (então capital federal), Recife, Salvador e São Paulo, jovens intelectuais de formação universitária se organizavam em defesa de uma agenda política que tirasse o Brasil da política café-com-leite e de sua lógica servil como país agroexportador.
Não eram poucos os integrantes de movimentos em que o estudantado estava cerrando os punhos em favor da defesa, pela recém-fundada UNE (União Nacional dos Estudantes), por reformas profundas, acompanhando educadores com o pioneirismo de Anísio Teixeira (atualizadíssimo até hoje, com sua escola integral em tempo integral) e escritores da estatura de Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade (o primeiro em defesa da independência editorial brasileira para desenvolver a cultura nacional, e os demais em defesa da preservação do patrimônio histórico e da identidade cultural brasileira).
E, juntamente com eles (Anísio, Lobato, Graciliano, Bandeira, Andrade e Drummond), as reformas pretendidas então, ganharam as ruas por meio de entidades como a UNE com campanhas como O Petróleo é nosso, pela criação da Sociedade do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e em defesa da escola pública e laica, que deram origem à Petrobrás, ao IPHAN e à primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1962.
Sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, o Movimento Estudantil se ampliou por todo o território nacional, com a implantação de diversas universidades públicas pelo Brasil. Com isso, nas décadas de 1950 e 1960 a UNE desenvolve programas de grande impacto, com a participação de artistas (músicos e atores), como os Centros Populares de Cultura (CPCs), na perspectiva de promover a diversidade da cultura popular brasileira.
Programas como os da UNE foram replicados, mais tarde, em outros projetos como o Pixinguinha, o Asa Branca e o Seis e Meia, nos quais atores, compositores e intérpretes como Gianfrancesco Guarnieri, Marieta Severo, Edu Lobo, Nara Leão e Sérgio Ricardo, revelados nos CPCs da UNE, se engajam na defesa das identidades brasileiras, de modo diverso e plural. Mas a juventude universitária não ficou apenas nisso: campanhas nacionais em defesa da escola e universidade públicas e gratuitas, a meia-entrada em eventos culturais e o passe estudantil espalharam-se em todo o País, além da defesa das reformas de base durante os governos democráticos de Getúlio Vargas (1950-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e de João Goulart (1962-1964).
Desculpem, mas vou reiterar: graças ao Movimento Estudantil, várias leis de defesa de direitos da cidadania foram aprovadas naquela época: meia-entrada, meio-passe estudantil, isenção de taxa escolar em universidades e escolas públicas, restaurantes universitários, moradias estudantis, hospitais universitários, escolas de aplicação e bolsas de estudo de permanência e de iniciação científica. E, justiça seja feita, o fato de ter sido desengavetado o projeto-de-lei que permaneceu 13 anos nos meandros do Congresso Nacional e que somente em 1962 acabou virando lei federal: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 4.024/1962), que em teve Anísio Teixeira seu inspirador e defensor, mas que só teve vigência por apenas dois anos. Esse mesmo fim teve Teixeira: foi sequestrado em plena via pública, torturado e morto, e dias depois o seu corpo “achado” no fosso do elevador do prédio do amigo para onde ia antes da emboscada.
Com o golpe de 1º de abril de 1964, a UNE foi colocada na ilegalidade, seus dirigentes presos, torturados e até mortos e desaparecidos. O último presidente da UNE, daquela época, Honestino Guimarães, está desaparecido até nossos dias, pois seu corpo sequer foi achado depois que foi detido “para averiguações”. Assim como a UNE, os CAs (centros acadêmicos), DCEs (diretórios centrais de estudantes), as UMEs (uniões municipais de estudantes) e UEEs (uniões estaduais de estudantes) foram extintas por decreto, tendo sido editados dois decretos nefastos (o 228 e o 477, que criminalizavam as atividades estudantis e as suas representações, tendo como punição a expulsão do curso em que o acusado estivesse matriculado e a proibição de voltar a estudar por dez anos), além da revogação da LDB de 1962 dois anos depois, e que foi sendo substituída em 1968 pela Lei Federal nº 5.540/1968 (“Lei da Reforma Universitária”, sobre o ensino superior) e em 1971 pela Lei Federal nº 5.692/1971 (“Lei do Ensino Profissionalizante”, sobre o ensino fundamental e médio), em decorrência do famigerado Acordo MEC-USAID (dos Estados Unidos), as quais foram um verdadeiro retrocesso curricular: no caso da primeira, extinção das cátedras, do conceito clássico de universidade e um significativo esvaziamento curricular; na segunda, imposição da formação técnica em detrimento da formação humanística, eliminação de disciplinas como Filosofia no ensino médio e História e Geografia no ensino fundamental, e imposição das disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC), Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Estudos Sociais, Educação Artística, Educação Física e Programa de Saúde.
Durante os 21 anos de regime ditatorial, o Movimento Estudantil precisou se reinventar. Para não cair no jogo da ditadura, foram desenvolvidas atividades culturais, artísticas e até científicas, sempre com uma visão de cidadania, uma perspectiva política de soberania popular. Entre 1968 (ano em que o Congresso da UNE em Ibiúna foi atacado pela repressão) e 1977 (ano do reinício das atividades do Movimento Estudantil depois que os trabalhadores do ABC protagonizaram a maior greve da história, sob a direção de Luiz Inácio Lula da Silva, então torneiro-mecânico da Volkswagen e presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo), em Mato Grosso (antes da divisão, que se efetivou em 1979) uma tímida iniciativa estudantil começava a se organizar em Cuiabá, Campo Grande, Dourados e Corumbá, de modo espontâneo, mas muito organizado.
A de Cuiabá, capital do estado, terra do memorável líder estudantil pré-1964 Gilney Viana, era conduzida por um grupo ligado ao mais tarde célebre líder das Diretas-Já, Dante de Oliveira, do qual participava um corumbaense (mais tarde seu assessor, tanto na prefeitura como no governo do estado, Edésio Ribeiro da Silva).
A de Campo Grande, terra do emblemático líder estudantil de 1968 Aldo Arantes e dos discretos Manoel Sebastião Lima, Carmelino Rezende, Onofre Lima, Fausto Matto Grosso e Rubens Mandetta, tinha um leque um pouco maior, pois tanto na Cidade Universitária da UEMT (Universidade Estadual de Mato Grosso), depois UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), como na FUCMT (Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso), mais tarde UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), eram pelo menos nove cursos articulados, de modo discreto mas firme, para a reestruturação do Movimento Estudantil, dentro da camisa-de-força dos chamados “Diretórios Acadêmicos” (impostos pelo regime de exceção), liderados pela Filosofia (História, Psicologia, Geografia, Matemática e Biologia, representados pelo DAFEZ, Diretório Acadêmico Félix Zavattaro), Serviço Social (DAJS, Diretório Acadêmico José Scampini), Engenharia Civil (DAPP, Diretório Acadêmico Pedro Pedrossian) e Medicina (e Medicina Veterinária, representados pelo DAHERMA, Diretório Acadêmico Hércules Maymone) – muitos com posições políticas bem definidas, mas a maioria sem qualquer vínculo na época, destacam-se os atuais professores doutores de renome nacional e bastante respeitados Amarílio Ferreira Júnior, Paulo Roberto Cimó Queiroz, Marisa Bittar, Mariluce Bittar (in memoriam), José Carlos Ziliani, Mário César Ferreira, Tito Carlos Machado de Oliveira, Arnaldo Romero (in memoriam) e Paulo Marcos Esselin, além de profissionais bem sucedidos como Semy Ferraz, Ayrton Sampaio, Mauro Bittar, Gilberto Silva, Flávio Teixeira, Luiz Eduardo de Souza, Mário Sérgio Lorenzetto, Branca de Menezes, Jussimara Barbosa Bacha, Paulo César Pereira, José Carlos Sampaio, Cândido Alberto Fonseca, Lélia Rita Sobral da Costa, Zirleide Silva, Vera Lúcia dos Santos, Lairson Palermo e Caio Sobral da Costa (e, ainda que sem qualquer expressão ou liderança, ouso incluir este aprendiz de cidadão que lhes fala, que teima não desistir da luta).
Em Dourados, terra dos incansáveis Laerte Tetila e Egon Krackecke, os estudantes de Agronomia do então CEUD (hoje UFGD) protagonizaram a primeira greve da UFMS, então recém-criada, tendo à frente um grupo de alunos, entre os quais o lendário Gumercindo “Guma” Rodrigues, que depois de formado se mudou para o Acre e passou a atuar profissionalmente em apoio às iniciativas do saudoso Chico Mendes e os seringueiros de Xapuri, e o discreto Jorge Benevides, que abandonou o curso e foi ser funcionário de carreira, concursado, no Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores).
Em Corumbá, cidade-natal do combativo líder estudantil em Campinas Lejeune Mirhan, atualmente sociólogo e professor universitário em São Paulo, atuavam, no contexto do memorável DADAC (Diretório Acadêmico Dom Aquino Corrêa), a saudosa Heloísa Urt, o incansável José Dílson Carvalho, a exuberante Roma Román Áñez, a discreta Marlene “Peninha” Mourão e a contundente Janán Hany (depois professora na UFMS), que se encarregaram de reconstruir, na terra de Lobivar de Matos, Apolônio de Carvalho e Manoel de Barros, o Movimento Estudantil, recorrendo à organização de grupos de teatro amador, sessões de cineclube (enviados desde Campo Grande pelo pessoal do DAFEZ), e, sobretudo, integrando o então CEUC (hoje CPAN) ao circuito nacional do Projeto Pixinguinha e ao inesquecível ciclo de debates regionais “Perspectivas do Homem no Século XX”, que permitiram à comunidade universitária assistir a memoráveis palestras, shows e peças teatrais memoráveis. Se isso fosse pouco, a realização do VI SEPE (Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão) em Corumbá em junho de 1984 – uma versão regional das assembleias anuais da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) – coroou o ápice protagonizado pelo CEUC, quando as vanguardas docente e discente estreitaram os laços com o propósito de solidificar as bases de uma sociedade livre, fraterna e solidária.
Graças à solidariedade, coragem e prudência dos dirigentes estudantis de então, aos poucos a vanguarda estudantil foi se articulando em níveis regional e nacional, tendo participado dos emblemáticos Congressos da UNE de Salvador (1979) e Piracicaba (1980). Com a chamada “abertura lenta, gradual e segura”, aos poucos, o Movimento Estudantil foi ganhando cores políticas, como toda democracia recomenda, e cada qual foi tomando seu rumo, mas não sem afirmar o protagonismo juvenil do(a)s universitário(a)s sedentos de liberdade e de democracia. Aliás, foi essa geração que preparou a agenda política para o pós-1964, com a aprovação da luta por uma Anistia Ampla Geral e Irrestrita, uma Assembleia Nacional Constituinte, ensino público e gratuito (fim das taxas e sobretaxas), autonomia universitária, eleição direta para reitore(a)s e vice-reitore(a)s das universidades públicas e nova legislação para a educação, além das Diretas-Já, que levou às ruas milhões de pessoas durante 1983 e 1984, entre outras iniciativas não menos importantes.
Durante o governo Sarney, professore(a)s e aluno(a)s da UFMS promoveram, em todas as cidades em que havia algum campus, um importante processo de participação política chamado “UFMS na Constituinte”, entre 1986 e 1988, mobilizando, debatendo e sensibilizando a sociedade para os grandes temas a serem propostos aos deputados e senadores constituintes. Não por acaso, inúmeras bandeiras de luta dos universitários foram consignadas na Constituição Cidadã, celebrada por todos os movimentos populares, tendo a UNE participação total. Da mesma forma aconteceu com o movimento dos “caras pintadas” no impeachment de Collor (em que a CPI mista do Congresso Nacional comprovou desvio de dinheiro para as contas pessoais do então presidente da República e pessoas de sua relação pessoal), em 1992, além de importante mobilização na Rio 92 (ou Eco 92), quando a Agenda 21 foi aprovada por um número de chefes de Estado e de governo nunca antes visto num encontro promovido pela ONU em qualquer parte do mundo.
Entre 1985 (pós-regime de 1964) e 2005, no contexto da UFMS, despontaram o incansável estudante de Agronomia do CEUD, Hélvio Rech, como vice-presidente regional da UNE, e o(a)s estudantes de Engenharia Semy Ferraz, de Letras Ana Cláudia Salomão, de Matemática Renato Gomes Nogueira (in memoriam), de Pedagogia Anamaria Santana e de Jornalismo Gerson Jara, que foram presidentes do DCE da UFMS na segunda metade da década de 1980 e início da década de 1990.  Período histórico fecundo para o Movimento Estudantil, conquistas adicionais foram protagonizadas dentro da UFMS, entre as quais a Pró-Reitoria de Assuntos Acadêmicos, cujos titulares estabeleceram uma interlocução produtiva, em que o direito à assistência estudantil se efetivou, como a moradia e o restaurante universitário foram implantados em todos os campi.
E aqui vamos abrir um parêntese imprescindível para Corumbá. A realização, durante a gestão do reitor Celso Pierezan, do projeto exaustivamente debatido pelo Professor Fausto Mato Grosso (à época pró-reitor de Assuntos Acadêmicos) do Festival de Corumbá, nos moldes do Festival de Ouro Preto (MG) – um ancestral bem-sucedido do renomado Festival América do Sul do governo Zeca do PT, depois totalmente descaracterizado nos governos de André Puccinelli e de Reinaldo Azambuja –, se converteu numa usina de criatividade e cidadania, em que produtore(a)s culturais e pesquisadore(a)s da academia se deram fraternalmente as mãos e protagonizaram momentos memoráveis de resgate da diversidade cultural e de preservação e valorização do patrimônio artístico e cultural do estado.
Nesse contexto, o então CEUC desenvolveu importante papel de vanguarda no Movimento Estudantil, tempo em que a atuação do estudantado corumbaense se equivalia à vanguarda nacional, além das conquistas de uma qualidade maior do ensino e da pesquisa e a infraestrutura necessária para assistir o(a) estudante (sobretudo restaurante universitário e moradia estudantil) tinham memoráveis protagonistas, entre os quais Joel de Carvalho Moreira, Manoel do Carmo Vitório, Maurício Lopo Vieira, João Carlos Parejas Urquidi, José Carlos de Souza Martins, Deusmar Jatobá Espíndola (in memoriam), Glauter Cavalheiro, Mara Leslie do Amaral, Dary Jr., Gilson Sávio (in memoriam), Júlio Augusto Xavier Galharte, Marco Antônio Monje, Joaquim Ivan do Amaral, Simone do Valle Leone, Kátia Braga, Grace Kelly Bastos, Márcia Ivana do Amaral, Edson Barbosa, Jorge Eremites de Oliveira, Laércio Honorato, Cristiane Sant’Anna de Oliveira, Aguinaldo Rodrigues, Ednaldo Torres Taques, Anísio Guilherme da Fonseca, Zilda Maria Borges, Solange Gomes, Marta Maricato, José Carlos Cacá de Oliveira e Simone Yara Benites, cuja contribuição cidadã, inclusive depois de sua formação profissional, é notoriamente reconhecida dentro de fora de Mato Grosso do Sul.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, houve avanços históricos em todos os campos. Na educação, em decorrência da luta de várias gerações do Movimento Estudantil, por meio da UNE e da UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas), o direito à educação pública e gratuita, como dever do Estado, passou a constar do texto constitucional, entre outros não menos importantes. Lamentavelmente, durante os dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo que abandonou suas convicções e passou oito anos privatizando tudo no Brasil, o dispositivo constitucional relativo à educação foi modificado, com a inclusão das palavras “família e sociedade” – assim, com base em deliberação do Congresso Mundial da Educação para Todos, na Tailândia em 1992, uma emenda constitucional de iniciativa do governo FHC, a educação passou a ser dever do Estado, da família e da sociedade, abrindo uma brecha para um retrocesso a qualquer momento, seja como o fim da gratuidade ou até mesmo a abertura para a iniciativa privada, inclusive por meio de “ONGs” (entre aspas, de fachada), de orientação neoliberal, que acabou influenciando a LDB de 1996.
Entre 2003, quando o presidente Lula foi empossado, e 2016, quando a presidenta Dilma Rousseff foi afastada mediante golpe parlamentar, foram consignados importantes avanços no campo da educação, bem como em todas as políticas sociais, com a efetiva participação do Movimento Estudantil, legitimamente representado pela UNE e UBES: instituição do ENEM como forma de ingresso democrático às universidades públicas (e inclusive algumas privadas), programas como Ciências sem Fronteiras, as bolsas de iniciação científica, a política de cotas sociais e raciais no acesso à universidade, o aumento das verbas para a educação (desde a infantil até a pós-graduação), a criação de dezenas de universidades federais em todas as regiões do Brasil, política de interiorização de cursos de Medicina, Engenharias e, sobretudo, a criação dos institutos federais como forma de ampliar a oferta de cursos técnicos e tecnológicos – o que, no caso de Corumbá, representou a emblemática oportunidade para que dois irmãos oriundos de famílias proletárias pudessem fazer pós-graduação no exterior e trabalhar em empresas de renome internacional no campo da computação (um no Vale do Silício, Estados Unidos, e o outro na Austrália).
E diga-se ainda que nunca, em toda a história do Brasil, a juventude – e especificamente o estudantado – teve tantas prerrogativas e oportunidades: só o(a)s desinformado(a)s podem ignorar as políticas para a juventude, que envolveram programas como o Brasil Jovem Cidadão e a rede de oportunidades destinadas aos jovens das camadas populares em todos os estados do País, tanto da área urbana como rural. Isso além da inquestionável ampla liberdade para promover seus protestos, sobretudo os ocorridos a partir de junho de 2013 (em minha sincera opinião, equivocados, porque desconexos e manipulados por grupelhos “invisíveis”, por meio da internet, que mais tarde assumiram nomes de supostas ONGs de um “dono” só, como o “Vem Pra Rua”, “Movimento Brasil Livre”, “Tchau Querida” e tantos outros similares espalhados por todos os cantos dentro e fora do território nacional).
Isto, aliás, decorrência da chamada globalização e da estratégia geopolítica da “dominação de amplo espectro”, segundo denuncia o historiador brasileiro Moniz Bandeira há anos. A saudável e necessária inquietação juvenil sendo, por má-fé e desinformação, manipulada por grupelhos de nazistas e fascistas que difundem o ódio, o preconceito e a intolerância com o único afã de promover distúrbios como os que antecederam a Copa do Mundo em 2014. Esse foi o estopim para que interesses do chamado império do caos ganhassem adepto(a)s no país, com a reedição daquilo que ficou conhecido como “Primavera Árabe”, e mediante recursos deploráveis, com a participação de setores antiéticos da imprensa e do legislativo, além de uma minoria no judiciário e nos órgãos de segurança, conseguiram, de forma orquestrada, a desestabilização política e econômica da maior potência continental, sob vários pretextos: ora era a corrupção, ora era a “ameaça comunista” (que desde o fim da União Soviética não mais existe), ora era a baixa qualidade dos serviços públicos de saúde, de transportes, de educação, de segurança pública etc. Tudo, na verdade, pretexto para reverter os altos índices de aceitação da presidenta da República, então com mais de 80% de popularidade às vésperas das eleições presidenciais de 2014, até a obtenção daquilo que pretendiam.
Mas, apesar do individualismo e da apatia pela perda de identidade por efeito da hegemonia do pensamento massificante e despersonalizado da globalização, o Movimento Estudantil no atual contexto histórico vem dando provas eloquentes de sua vitalidade. Isso está sendo constatado ao longo de 2015 e 2016, sobretudo nas capitais e nas regiões metropolitanas. Aliás, São Paulo e Curitiba têm sido um palco revelador da violenta repressão policial, há pouco inimaginável, contra os estudantes que se mobilizaram para barrar o projeto de desmonte das escolas estaduais e dos centros tecnológicos estaduais, sob as ordens dos mesmos políticos que, tendo perdido as eleições presidenciais de 2014, tomaram de assalto o governo federal para impor seu projeto indefensável, porque antipopular e antinacional, fragorosamente derrotado desde 2002.
Para concluir, lembro uma consigna muito em voga no Movimento Estudantil de minha geração, atribuída a um grande brasileiro vitimado por suas convicções socialistas, Gregório Bezerra, de que “a prática, e somente a prática, é o critério da verdade”. Até porque não se vive de intenções...
Encerro, assim, com alguns versos do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, de seu extraordinário poema “Mãos Dadas”:


Estou preso à vida e olho meus companheiros
Andam taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade

O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas...