sábado, 26 de dezembro de 2015

O POETA SE FOI, SUA UTOPIA FECUNDOU

O poeta se foi, sua utopia fecundou

Para Geraldo Roca

Em pleno dia de Natal deste longo e duríssimo 2015, no início da tarde, pela voz consternada de meu querido Amigo Luiz Taques, chega-me a fatídica notícia da partida derradeira de um dos criadores do Chalana de Prata, em meados da década de 1990. Mal tentava me refazer de outra triste notícia, sobre a prematura partida de um querido sobrinho do pesquisador e Professor Masao Uetanabaro, próximo de sua bucólica Fernandópolis, interior de São Paulo.

Geraldo Roca, um dos autores do célebre “Trem do Pantanal”, o maior compositor sul-mato-grossense de sua geração, se fora, em silêncio e solitariamente. E nisso tenho a concordância avalizada do criterioso Jornalista Luiz Taques, que o considera “nosso Chico Buarque” (e ao lado do outro Geraldo, Espíndola, o “nosso Caetano”). Num tempo em que mediocridades ganham status de celebridades de uma sociedade de consumo, nossos verdadeiros talentos se vão, anonimamente.

Tive o privilégio de conhecê-lo por meio de outro Amigo comum, o incansável e querido Armando Lacerda, então dirigente da Urucum Mineração (estatal), o mesmo que me presenteou conhecer pessoalmente o saudoso ex-ministro da Saúde Wilson Fadul, de João Goulart, um mato-grossense de mãos limpas, sem qualquer risco de, inclusive nos tenebrosos tempos do regime de 1964, ter sido preso por peculato ou qualquer ato que pudesse desabonar sua conduta como homem público.

Geraldo Roca, então, estava empenhado na realização do emblemático projeto Chalana de Prata, cujo ponto de partida era seu torrão-natal, a cosmopolita Corumbá da década de 1950. Ainda que os necrólogos de plantão insistam que ele era carioca de nascimento, ele bebeu da fonte fecunda do coração do Pantanal. O seu pai, de origem hispânica, era dono de uma concorrida panificadora situada em pleno centro do baluarte cultural representado pela terra de Lobivar de Matos e de Pedro de Medeiros (e então frequentada pelo imortal Poeta, o eterno e terno Manoel de Barros).

O mesmo compositor que profetizou com o Trem do Pantanal tinha outra convicção inarredável: a unificação do Pantanal, desde Cáceres (MT) até Porto Murtinho (MS). Isso ele deixara claro em sua estada, nos idos da década de 1990, a despeito da opinião quase unânime de que se tratava de utopia (hoje, diria, utopia cidadã). Ainda que poucos conheçam o sonho acalentado – quase inconfessável, por conta de seu convívio na capital sul-mato-grossense –, cada dia que passa essa utopia cidadã se torna mais presente, mais plausível, mais realizável.

Se o provincianismo que usurpou o sonho libertário de um Mato Grosso do Sul de vanguarda, tendo reduzido a mero saudosismo ufanista os versos condoreiros do Trem do Pantanal (de vocação latino-americanista, integracionista e até internacionalista), o verdadeiro ideário, pelo menos para Geraldo Roca, do projeto Chalana de Prata era a reunificação cultural do Pantanal, vitimado pelo oportunismo do regime de 1964 e de seus apaniguados sedentos de mais cabides de emprego e maior longevidade para o arbítrio, já cambaleante em 1977.

Mais que necessária homenagem, pois, este modesto desabafo de um fã desolado pretende clamar pelo resgate das motivações históricas de nosso agora saudoso menestrel pantaneiro. Que o talento libertário e vanguardista celebre a renascença do Pantanal, no rastro de nosso compositor maior, precocemente silenciado. O poeta se foi, mas a sua utopia fecundou. Para a redenção do Pantanal.

(Ahmad Schabib Hany)