quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O ensino de História, as atuais propostas curriculares e o ofício de professor

Mestre Celeida Maria Costa de SOUZA E SILVA(*)
Universidade Católica Dom Bosco
celeidams@uol.com.br

Ahmad SCHABIB HANY(**)
Universidade Católica Dom Bosco
schabib@gmail.com

Resumo
O ensino de História, desde o início de sua oferta na escola brasileira, tem estado submetido às condições econômicas, sociais, políticas e culturais vigentes. O contexto histórico é, portanto, indissociável das condições materiais e ideológicas para a correta compreensão das propostas curriculares adotadas por determinada sociedade dentro de determinado tempo e espaço. Não por acaso, durante o período de vigência do regime militar, o ensino de História sofreu uma redução (um esvaziamento de seu conteúdo, com a pulverização de disciplinas correlatas de viés ideológico como Educação Moral e Cívica – EMC –, Organização Social e Política Brasileira – OSPB – e Estudos Sociais), própria das motivações político-ideológicas que nortearam os sucessivos governos de inspiração conservadora, no auge, aliás, da Guerra Fria. Assim, tão logo foi restabelecida a normalidade institucional, mesmo sob vigência do arcabouço jurídico oriundo do regime de arbítrio – tais como a Lei Federal nº 5.540/1969 (conhecida como a Lei da Reforma Universitária) e a Lei Federal nº 5.692/1971 (responsável pela adoção do ensino profissionalizante, na perspectiva do legado da educação oferecida pelos Estados Unidos no pós-guerra de 1945) –, o primeiro governo civil se preocupou em instituir normas curriculares, ainda que transitórias, capazes de oferecer garantias mínimas de um ensino menos eivado da Doutrina da Segurança Nacional, sobre a qual se fundamentara o regime instituído em 1964. Contraditoriamente, tão logo foi promulgada a Constituição Federal de 1988 (a Constituição Cidadã), quando o Brasil conquista a plenitude da vida democrática, o mundo passou por uma avalanche política decorrente da queda do Muro de Berlim e da vitória do conservadorismo Reagan-Tatcher, consolidado com o chamado Consenso de Washington (1989), fato que promoveu a chamada onda neoliberal que assola as sociedades contemporâneas, com raros processos de autonomia, geralmente interrompidos com a mesma truculência do período colonial, de triste memória.

Palavras-chave: História, parâmetros curriculares, didática, educação.
1. Introdução
O presente artigo faz uma incursão histórica sobre o ensino de História na escola fundamental e média brasileira, com ênfase à sua fase contemporânea. Trata-se de uma reflexão sincera do ofício de docente na disciplina de História no contexto histórico em que a sociedade brasileira se encontra, particularmente depois das conquistas democráticas pós-1988, quando o amadurecimento político dos atores sociais no Brasil produz um dos instrumentos mais avançados da vida institucional do país, como contraponto ao processo de globalização experimentado com o fim da União Soviética e a acentuação da hegemonia dos Estados Unidos e de seus aliados no mundo contemporâneo.
Com base em bibliografia de referência no ensino de História, promove-se uma releitura do material didático e do conjunto de normas emanadas pelo gestor nacional de educação e do sistema nacional de ensino. Nesse marco, é fundamental explicitar o processo histórico protagonizado pela sociedade brasileira, os avanços e recuos ocorridos ao longo da segunda metade do século XX, período em que se experimenta a grande transformação decorrente da industrialização promovida durante a ditadura de Getúlio Vargas, seja no contexto econômico, social, político e cultural e seus impactos no campo da educação.
Condicionada ao seu contexto histórico, a oferta da disciplina de História na escola brasileira, na primeira metade do século XX, estava muito direcionada para a afirmação da nacionalidade, dos valores republicanos e do culto à brasilidade. Então, a tônica era a utilização maximizada do papel dos personagens históricos, como paradigma, para a formação do educando.
Nos anos de 1960, auge das grandes reformas do governo Goulart, a nova perspectiva da História ganha maior visibilidade, em consonância com o contexto político da época. Então ocorre verdadeira revolução na historiografia, com o apoio das instituições criadas pelo Ministério da Educação e Cultura, e há um salto ao serem propostos novos conceitos no livro didático: a história como processo, e não mais como culto aos vultos pátrios ou como instrumento de valorização da nacionalidade. Era o ápice da Guerra Fria, em que as duas superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial disputavam a hegemonia político-ideológica do Hemisfério Sul, do qual o Brasil é uma potência regional importante.
O golpe militar de 1964 causa ao ensino de História um retrocesso indisfarçável: a cassação dos coordenadores da política educacional do governo Goulart; a restrição imposta a todas as atividades educativo-culturais durante o período mais crítico do regime; a instituição das reformas do ensino universitário, médio e fundamental, resultantes do Acordo MEC-Usaid; o esvaziamento do conteúdo de História e Geografia, e o surgimento de disciplinas como Estudos Sociais, Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Educação Moral e Cívica (EMC), Educação Artística e Programa de Saúde, além da disciplina Estudo de Problemas Brasileiros (EPB) em nível universitário.
Com o fim do regime militar, em 1985, o primeiro governo civil promoveu profunda reforma educacional, que ganhou corpo com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a aprovação da Lei Federal nº. 9.294/1996, cujos debates ganharam maior dimensão por conta da hegemonia atingida pelo neoliberalismo pós-Consenso de Washington e do fim da bipolaridade da época da Guerra Fria. Sob a égide de um planeta dominado pela doutrina do mercado, as conquistas sociais pós-1985 no Brasil começam a arrefecer e a sofrer a iminente ameaça de serem extintas, sobretudo no campo da Educação e das demais áreas sociais.

2. A História como instrumento ideológico na formação do cidadão
A trajetória da disciplina de História na escola brasileira está vinculada ao seu contexto histórico, às condições materiais da sociedade nacional, em suas bases econômicas, políticas, sociais e culturais. Nesse sentido, o seu papel está inserido ao aparelho de Estado, na produção e reprodução dos valores e conceitos hegemônicos, como instrumento ideológico na formação do cidadão. Independentemente do regime político ou da linha ideológica hegemônica, essa tem sido a função desempenhada pela disciplina, seja para conhecer e reverenciar personagens históricos mais identificados com a inteligentsia (a elite intelectual dominante) ou mesmo para cultuar os propósitos políticos de plantão.
Na primeira metade do século XX, o ensino da disciplina estava muito focado para a afirmação da nacionalidade, dos valores republicanos, do culto à brasilidade, para o que era indispensável a maximização do papel desempenhado por certos personagens históricos do Brasil, até como exemplificação, como paradigma, para a formação do educando – função, aliás, ainda recorrente em muitos historiadores promovidos pelo mercado editorial, na ânsia de dar vazão à produção livreira nacional.
A despeito da ditadura de Getúlio Vargas, de perfil fascistóide (por conta da influência dos integralistas de Plínio Salgado), em fins da década de 1930 e meados dos anos 1940, foram muitos os intelectuais que contribuíram para a formulação de novos conceitos inclusive na área de História, como Monteiro Lobato e sua luta pelo desenvolvimento de um mercado editorial nacional (além de sua memorável campanha pelo petróleo brasileiro), Graciliano Ramos e sua luta pela preservação da memória e do patrimônio cultural nacionais (graças a ele, a criação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Barbosa Lima Sobrinho e sua luta pela liberdade de pensamento e de imprensa, Oscar Niemeyer e sua luta pela criação de uma escola nacional de arquitetura (além da vasta obra de vanguarda que influenciou grandes arquitetos em todo o mundo) e Anísio Teixeira e sua luta pela escola pública de qualidade no Brasil.
No pós-guerra de 1945, com a deposição de Vargas, é convocada uma Assembléia Constituinte, que promulga a Constituição Federal de 1946, com perfil liberal-progressista e de inédita amplitude democrática institucional – é na verdade a primeira carta magna do país que se ateve à educação (antes, somente a de 1934, recusada por Vargas). Por conta das inovações introduzidas no texto legal, o parlamento somente em 1961, treze anos depois de ter sido enviado o projeto de lei pelo Executivo, aprovou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Federal nº. 4.024/1961, com extraordinárias conquistas, e depois de intensas disputas entre estatistas e privatistas.
Considerada marco legal da política educacional brasileira, a referida lei apresenta estas características: maior autonomia aos órgãos estaduais, diminuindo a centralização do poder no MEC; regulamenta a existência dos Conselhos Estaduais de Educação e do Conselho Federal de Educação (depois denominado Conselho Nacional de Educação); garante o empenho de 12% do orçamento da União e 20% dos municípios com a educação; dinheiro público não exclusivo às instituições de ensino públicas; obrigatoriedade de matrícula nos quatro anos do ensino primário; formação do professor para o ensino primário no ensino normal de grau ginasial ou colegial; formação do professor para o ensino médio nos cursos de nível superior; ano letivo de 180 dias; ensino religioso facultativo, além de permitir o ensino experimental.
É no início da década de 1960, auge das grandes reformas do governo do presidente João Goulart, que a nova perspectiva da História ganha maior visibilidade, em consonância com o contexto político da época – então, Nélson Werneck Sodré, Luiz Werneck Vianna, Edgard Carone, Emília Viotti da Costa, entre outros não menos importantes, promovem verdadeira revolução na historiografia e com o apoio das novas instituições criadas no âmbito do Ministério da Educação e Cultura (MEC) dão um salto ao propor novos conceitos consignados no livro didático: a história como processo, e não mais como culto aos vultos pátrios ou como reles instrumento de valorização da nacionalidade.
Isso ocorria no ápice da chamada Guerra Fria, entre as duas superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial – Estados Unidos e União Soviética –, que disputavam a hegemonia político-ideológica do Hemisfério Sul, do qual o Brasil sempre foi uma potência regional importante. Como nunca, a disputa ideológica esteve em franca ascensão, ainda mais na escola, na academia e na produção editorial, com expoentes de grande formação – com destaque, em todos os matizes, para intelectuais como Gustavo Corção (ultraconservador), Gilberto Freire e Hélio Jaguaribe (conservadores), Pedro Calmon, Austragésilo de Athayde e Sobral Pinto (liberais), Alceu de Amoroso Lima e Sérgio Buarque de Holanda (progressistas), Darcy Ribeiro e Celso Furtado (da esquerda nacional) e Paulo Freire, Milton Santos, Josué de Castro, Caio Prado Júnior e Wladimir Pomar (da esquerda engajada).
Foi um período de muita fecundidade intelectual e de grandes projetos efetivados para mudar o perfil da sociedade brasileira: depois do esforço redobrado do então ditador Getúlio Vargas de industrializar o Brasil, finalmente no início da segunda metade do século XX o país deixava de ser uma sociedade rural com base na monocultura de exportação (o café) e passava a competir com países latino-americanos como a Argentina, o Chile e o México o mercado industrial de base – siderúrgicas, metalúrgicas, automotivas e eletroeletrônicas com respeitável nível tecnológico. Daí a diversidade de correntes de pensamento, correspondendo com o então incipiente cosmopolitismo brasileiro, como com heterogêneo caldo de miscigenação étnica, cultural, ideológica, política, filosófica e religiosa: a cultura brasileira começava a merecer o respeito das demais comunidades científicas da América Latina, do Ocidente e do Oriente.
Contudo, foi um período, do mesmo modo, efêmero. Com a implantação do regime de exceção decorrente do golpe militar de 1964, o ensino de História sofreu um retrocesso considerável: a cassação dos direitos políticos de intelectuais que coordenavam a nova política educacional do governo federal e a restrição imposta a todas as atividades educativo-culturais durante o período mais crítico do regime – entre 1968 e 1973, quando foram instituídas as reformas do ensino universitário, médio e fundamental (com a adoção da Lei Federal nº. 5.540/1969 e da Lei Federal nº. 5.692/1971, resultantes do Acordo MEC-Usaid, isto é, entre o gestor nacional da educação e a Agência Estadunidense de Ajuda ao Desenvolvimento Internacional) e esvaziado o conteúdo de História e Geografia, fazendo surgir disciplinas como Estudos Sociais, Organização Social e Política Brasileira (OSPB), Educação Moral e Cívica (EMC), Educação Artística e Programa de Saúde, além da disciplina Estudo de Problemas Brasileiros (EPB) em nível universitário.
As principais características da Lei Federal nº. 5.692/1971 são: núcleo comum para o currículo de primeiro e segundo graus e uma parte diversificada por causa das peculiaridades locais; inclusão da Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde como matérias obrigatórias do currículo, além do ensino religioso facultativo; ano letivo de 180 dias; ensino de primeiro grau obrigatório dos 7 aos 14 anos; educação à distância como possível modalidade do ensino supletivo; formação preferencial do professor para o ensino de primeiro grau, da 1ª à 4ª séries, em habilitação específica no segundo grau; formação preferencial do professor para o ensino de primeiro e segundo grau em curso de nível superior ao nível de graduação; formação preferencial dos especialistas da educação em curso superior de graduação ou pós-graduação; dinheiro público não exclusivo às instituições de ensino públicas; os municípios devem gastar 20% de seu orçamento com educação, não prevê dotação orçamentária para a União ou os estados; progressiva substituição do ensino de segundo grau gratuito por sistema de bolsas com restituição, e permite o ensino experimental.
Foram 21 anos de censura e resistência à produção historiográfica nacional e ao ensino da História em todos os níveis. Num primeiro momento (entre 1968 e 1973), autores de livros didáticos da disciplina como José Hermógenes de Andrade Filho, Víctor Mussumeci, Heródoto Barbeiro e Armando Souto Maior deram o tom, bem ao gosto da Doutrina da Segurança Nacional, a linha-mestra da ideologia de plantão. No contraponto, Maria Victória Benevides, Carlos Guilherme Motta, Jacob Gorender e Júlio José Chiavenatto, entre outros.
Esgotado o ciclo militar, resultante de um conjunto de fatores nacionais e internacionais – inclusive a grande mobilização social intensificada em meados da década de 1970 e que atingiu a culminância em meados dos anos de 1980 e na qual estudantes e professores desempenharam papel relevante, o recém-eleito primeiro presidente civil, Tancredo Neves, assegurara, em janeiro de 1985, uma profunda reforma educacional como um dos primeiros atos de seu governo (inspirada no processo participativo das Reformas de Base pré-1964, abortado com a imposição do regime de arbítrio). José Sarney, sucessor imediato, viu-se na obrigação de resgatar o compromisso assumido, e, antes mesmo de a Assembléia Constituinte promulgar a nova Constituição Federal, enviou ao Congresso Nacional um conjunto de novas legislações pontuais que aos poucos foram responsáveis pela mitigação dos malefícios do regime anterior.
Mas foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, cujos artigos constantes do título da Ordem Social preconizam o ensino público e gratuito de qualidade, com respectivo fundo para financiamento nas três esferas de governo e a participação pública na sua gestão, que a educação no Brasil viveu uma guinada qualitativa. Ao ser aprovada pelo Congresso Nacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei Federal nº. 9.394/1996, depois de longo processo de discussão dos diferentes setores da sociedade e de sucessivos avanços e recuos sobre o parlamento nacional, é que foram de fato e de direito consolidadas conquistas históricas.
Assim, na relatoria do então senador Darcy Ribeiro (ex-ministro de Goulart responsável pela articulação política das Reformas de Base no efervescente período pré-1964), a influência do ex-vice-presidente conservador Marco Maciel e a pressão do ex-ministro da Educação de perfil neoliberal, a LDB ficou com as seguintes características: gestão democrática do ensino público e progressiva autonomia pedagógica e administrativa das unidades escolares; ensino fundamental obrigatório e gratuito; carga horária mínima de oitocentas horas distribuídas em duzentos dias na educação básica; núcleo comum para o currículo do ensino fundamental e médio e uma parte diversificada em razão das peculiaridades locais; formação de docentes para atuar na educação básica em curso de nível superior, sendo aceito para a educação infantil e as quatro primeiras séries do fundamental formação em curso Normal do ensino médio; formação dos especialistas da educação em curso superior de pedagogia ou pós-graduação; a obrigatoriedade do mínimo de 18% do orçamento anual destinados à educação pela União, e de 25% dos orçamentos dos estados e municípios na manutenção e desenvolvimento do ensino público; financiamento com recursos públicos de escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, e criação do Plano Nacional de Educação.
As medidas do Consenso de Washington, de 1989, balizadoras do neoliberalismo de Ronald Reagan e Margareth Tatcher (Estados Unidos e Grã-Bretanha) em escala global, associadas ao fim da bipolaridade dos primeiros 50 anos do pós-guerra de 1945 (com o fim da União Soviética), fizeram com que o processo de redemocratização do Brasil ficasse reduzido. Isso ficou evidente na promulgação da LDB, cujo projeto discutido e votado por amplos setores da sociedade acabou desfigurado, sobretudo, durante a implementação das políticas públicas inerentes a esse texto legal.
O mercado ganhou maior ênfase em todas as atividades da sociedade contemporânea, sobretudo na Educação. E a repercussão desse fenômeno no ensino de História é imediata. Embora existisse um leque de correntes de pensamento da Educação e da História, até por decorrência do elevado nível de liberdade vivido no Brasil pós-1985, o grau de direcionamento exigido pelos setores hegemônicos da sociedade não permite ao educador comprometido com uma concepção inclusiva e transformadora do ensino de História.

3. A disciplina de História nas atuais propostas curriculares
As sucessivas reformulações curriculares ocorridas na década de 1990 precisam ser entendidas como um processo ocorrido não apenas no Brasil, mas em diversos países do Mercosul, Portugal e Espanha – que têm uma estrutura similar na organização dos documentos oficiais e na terminologia pedagógica – no contexto da globalização e das transformações sociais decorrentes. E historicamente os currículos escolares brasileiros sempre acompanharam modelos de outros países – no caso da disciplina de História, o francês.
Embora na década de 1980 as reformulações curriculares tenham sido motivadas pela tônica da redemocratização, voltadas para as camadas populares, há indícios de que então já se ensaiavam experiências neoliberais, direcionadas aos interesses hegemônicos – até por conta da linha adotada desde então pelo MEC, de modo a atender os novos pressupostos educacionais.
Nesse sentido, os currículos do ensino fundamental e médio tiveram que ser moldados aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de inspiração externa, embasada nos cânones do ícone da Psicologia da Aprendizagem Jean Piaget, mas redimensionados à perspectiva construtivista do educador espanhol César Coll. Esse processo foi seguido por Portugal, Espanha e países latino-americanos, sobretudo os do Mercosul.
Com base na relação ensino-aprendizagem – e não mais apenas no ensino –, há uma diversidade de concepções de conteúdos escolares e curriculares, seu modo de produzi-los e os diferentes sujeitos envolvidos nesse propósito.
"Atualmente, a idéia de currículo é concebida em todas as suas dimensões, distinguindo-se o currículo formal (ou pré-ativo ou normativo), criado pelo poder estatal, o currículo real (ou interpretativo), correspondente ao que efetivamente é realizado na sala de aula por professores e alunos, e o currículo oculto, constituído por ações que impõem normas e comportamentos vividos nas escolas, mas sem registros oficiais, tais como discriminações étnicas e sexuais, valorização do individualismo, ausência ou valorização do trabalho coletivo, etc. Estudos recentes incluem ainda o currículo avaliado, que se materializa pelas ações dos professores e das instituições ao “medirem” o domínio dos conteúdos explícitos pelos alunos e incorpora valores não apenas institucionais, mas também educacionais, como as habilidades técnicas e práticas da cultura letrada." (BITTENCOURT, 2005, p. 104)
Quanto às diferentes concepções sobre os conteúdos escolares, o consenso entre os educadores, na década de 1980, se dava pela relevância social desses conteúdos, embora a divergência fosse sobre quais conteúdos devessem ser alterados no processo de reformulação curricular. De um lado estava a corrente pautada pela sustentação qualitativa, por meio da qual seriam realizadas as transformações das relações sociais vigentes, ao oportunizar um conteúdo só para as camadas sociais e para as elites, o que entendiam como instrumento para o exercício da plena cidadania. Do outro, os seguidores da educação popular, para os quais a escola não é para transmitir apenas conteúdos valorizados pelas elites, mas oferecer conteúdos significativos – incorporando parte do tradicional com temas para uma nova compreensão do contexto sócio-econômico e cultural das camadas populares.
O debate em relação ao conteúdo persiste, em benefício de uma constante evolução do processo de construção, com a adoção de critérios de seleção de conteúdos mais complexa em que se dá ênfase à relação ensino-aprendizagem. Daí que nos currículos mais recentes os conteúdos escolares dizem respeito à integração da variedade de conhecimentos adquiridos na escola.
Por isso deixou de se entender como conteúdo só o explícito, correspondente a cada uma das disciplinas, mas também a aquisição de valores, habilidades e competências que integram as práticas escolares. No ensino de História, passou a se entender como apreensão de conteúdo a capacidade do aluno de dominar informações de determinado período histórico, mas também de fazer comparações com outras épocas, com a utilização de tabelas, gráficos e mapas ou mesmo a interpretação de textos.
Também se consideram conteúdos escolares as formas de apresentação de determinado saber escolar – seja por escrito ou pela oralidade, realização de debate, trabalho em grupo, dramatização etc. Até porque a escola deixou de ser apenas “lugar” onde ocorre a transmissão de conhecimento sistematizado, mas acontece interação de comportamentos, valores e ideários políticos. Para tanto, é necessária a integração nos programas e planos escolares, que devem ser da mesma forma planejados e avaliados.
No tocante às propostas de renovação dos métodos de ensino e as novas tecnologias no contexto dos atuais currículos, elas são organizadas em dois pressupostos básicos. O primeiro está baseado na articulação entre método e conteúdo. O segundo, de que os atuais métodos de ensino devem estar articulados às novas tecnologias para que a escola possa ser referência para as novas gerações, pertencentes às chamadas “cultura das mídias”. Qualquer proposta de mudança dos métodos de ensino tem que levar em conta o fato de que as transformações tecnológicas interferem em todas as formas de comunicação e introduziram novos paradigmas de produção do conhecimento – primeiro a televisão, agora a rede mundial de computadores, mais conhecida por internet.
Ao invés de atribuir às novas ferramentas, de forma maniqueísta, um caráter negativo, é fundamental desenvolver mecanismos criativos e interativos de empoderamento do educando, na perspectiva dos mais elevados valores produzidos pela humanidade nos últimos milênios. O individualismo e o consumismo proporcionados pela mídia tecnológica podem ser modificados por meio de recursos metodológicos em que a identidade do aluno, seu papel de agente social e sobretudo sua realidade sejam inseridas no contexto dos conteúdos. Para isso, promover o senso crítico do aluno, por meio do desenvolvimento de um critério de leitura interpretativa em que referenciais históricos e culturais sejam consolidados no processo educativo.
No âmbito das propostas curriculares de História, a partir do fim da década de 1980, foram elaboradas diversas delas para o ensino fundamental e médio, que se encontram nos estados e municípios além dos PCN, os quais são a síntese da incorporação dessa construção. As características comuns entre elas são: a) nova configuração técnica dos textos curriculares, passando a conter fundamentações sobre o conhecimento histórico e seus demais tópicos; b) compromisso com a implementação dos currículos, no afã de se legitimar entre os professores; c) maior autonomia ao professor no trabalho pedagógico, apontada pela ausência de ementa obrigatória para cada série ou ciclo; d) exposição pormenorizada dos princípios teóricos e metodológicos do conhecimento histórico; e) base pedagógica focada no construtivismo, evidenciado de várias formas, sobretudo no pressuposto de que o aluno é sujeito ativo no processo de aprendizagem; f) assentimento de que o aluno tem conhecimento prévio sobre os objetos de estudos históricos, fornecidos pela história pessoal e pelos meios de comunicação, que deve ser integrado ao processo de aprendizagem; e, g) introdução dos estudos históricos nas séries iniciais do ensino fundamental. (BITTENCOURT, 2005, p. 111-112)
Com base em algumas propostas curriculares de estados e municípios e nos PCNs, o ensino de História está presente em todos os níveis de ensino e, com a Geografia, forma as bases essenciais do conhecimento das ciências humanas, das séries iniciais até o fim do ensino básico. Diferentemente das décadas anteriores, a disciplina de Estudos Sociais desapareceu. Além disso, há, obviamente, especificidades a serem observadas nos diversos níveis de ensino.
A História voltada para os alunos da primeira à quarta série do ensino fundamental se propõe a ultrapassar os limites de disciplina baseada em feitos dos grandes personagens reverenciados em atos cívicos de modo atemporal. Embora datas comemorativas ainda façam parte dos conteúdos, foram introduzidos temas até então pouco observados nas escolas, como o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) e Dia do Índio (19 de abril). Na perspectiva de se introduzirem noções e conceitos históricos desde essa fase da escola, os PCN da disciplina têm a cultura e a organização social e do trabalho como conceitos básicos, bem como noções do tempo e do espaço, para se iniciarem os alunos desde a alfabetização. Além disso, o tempo cronológico é exposto mediante a apreensão da noção do antes e depois, dos conceitos de geração e duração – é uma forma de que tempo histórico não seja entendido apenas como tempo cronológico. Outro aspecto importante é que se passou a dar ênfase à história local ou do lugar, para o que se utiliza como fundamentação a história oral e sua metodologia, de modo a inserir as ações de pessoas comuns na constituição histórica, e não mais a de políticos e membros da elite.
Por seu turno, a História para alunos da quinta à oitava série mantém, a exemplo das propostas anteriores, a caracterização disciplinar, ministrada por um professor especialista, a fim de que os pressupostos históricos a serem ensinados sejam embasados nos marcos teóricos e metodológicos propostos. Como nas séries iniciais, os conceitos são a base do conhecimento histórico e, para tal, tenta-se uma coerência entre os objetivos da disciplina e a base pedagógica e historiográfica. Contrariamente às propostas passadas, as atuais têm como base a produção historiográfica em seu atual estágio – predominantemente a tendência da história social ou sociocultural. Nessa perspectiva, conceitos-chave como cultura, trabalho, organização social, relações de poder e representações constituem a estratégia de domínio do conteúdo pelo aluno. É consensual, também, a impossibilidade do estudo de toda a história da humanidade, embora haja uma preocupação com uma concepção de totalidade em sua abordagem – a recorrência a temas e conceitos-chave visa à consolidação da idéia de concepção de processo e de totalidade.
Já a História para o ensino médio, no contexto dos PCN da disciplina, devem ter harmonia com o preconizado pela LDB, como educação formativa e não propedêutica, sem a preocupação com a especialização profissional, tendo como propósito a formação para o exercício da cidadania. Assim, os PCN mantêm a organização dos conteúdos por temas, sem apresentar sugestões, como nos demais níveis. Centra-se no aprofundamento da base conceitual das séries anteriores e capacitação para o domínio de métodos da pesquisa histórica escolar, enfatizando o trabalho pedagógico com leituras de bibliografia mais específica sobre os temas de estudo e a possibilidade de dominar o processo de produção do conhecimento histórico por fontes diversas. Permanece a tendência da história sociocultural, com o intuito de introduzir diferentes sujeitos no fazer histórico. Para obviar a visão histórica inspirada no marxismo, na análise das infra-estruturas econômicas e da luta de classes, incluem-se experiências cotidianas permeadas de valores culturais e representações simbólicas a interferir nos confrontos sociais e ações políticas. São incorporadas contribuições neomarxistas, ligadas a correntes de Thompson e de Ginzburg, bem como da “nova história” francesa. Quanto ao conteúdo, em razão da maior parcela dos alunos estar voltada para a continuidade dos estudos e pela competitividade cada vez mais no acesso ao ensino universitário, a preparação para o vestibular tem sido hegemônica – na qual a adoção de livro didático focado para os exames seletivos, sem outro critério efetivo. No entanto, é preocupante a proposta controvertida dos PCN sobre o papel das disciplinas na formação dos saberes escolares, apresentados por “áreas de conhecimento” – pois, ao lado de outras disciplinas, como Geografia, Sociologia, Filosofia, Antropologia e Política, a História é parte integrante das chamadas “ciências humanas e tecnologias”, que leva a uma diluição das ciências humanas e compromete o caráter de interdisciplinaridade proposto inicialmente.

4. Os desafios de uma História transformadora e inclusiva na sociedade globalizada
Reverter o status quo, caracterizado pela preponderância de valores ambíguos e voláteis como o próprio mercado, mediante adoção de novos parâmetros didático-pedagógicos para propiciar ao educando papel de agente social, protagonista da história presente, é um desafio digno de Freire (1992, p. 92), que ponderou: “A compreensão da história como possibilidade e não determinismo se sente incompatível com ele e, por isso, o nega”.
Portanto, trata-se de, enquanto educador e agente social inserido num contexto de interesses diversos e até paradoxais, proporcionar ao educando a oportunidade de se enxergar nesse contexto, ter apropriada a sua identidade, o seu protagonismo. Ainda mais quando a sociedade globalizada tende a eliminar – ou melhor, a ignorar acintosamente – as diferenças, impondo uma truculenta “uniformidade” de autenticidade duvidosa, senão fictícia. Para esse paradigmático pensador,
Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associadas a sério empenho de reflexão, para que seja práxis. (FREIRE, 1987, p. 52).
Freire (1996, p. 136) também ensina, com sábias palavras de educador visionário, que:
Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles de cima para baixo. Sobretudo me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me a escutá-lo ou escutá-la. O deferente não é o outro a merecer respeito, é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.
Esta questão ganha relevância diante do avassalador processo de globalização que se vive neste início do século XXI, quando são desenvolvidos mecanismos, sobretudo no âmbito da educação formal, em que a formação do aluno é destinada para a acirrada competitividade determinada pelo mercado e a tecnologia é fator de exclusão social planetária. Isto, aliás, foi antevisto de modo completo pelo educador brasileiro que revolucionou a educação do século XX: “O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente, se optamos, na verdade, por um mundo de gente.” (FREIRE, 1996, p. 144-145).
No momento que se criam instrumentos de protagonismo para o cidadão, no âmbito do Brasil, voltados para a América Latina, é oportuna a reflexão de Freire (1996, p. 94-95) sobre a obsessiva busca pela excelência no mercado, enquanto a discriminação, a exclusão e a exploração continuam a fustigar os mais fracos:
Que excelência é essa que pouco ou quase nada luta contra as discriminações do sexo, de classe, de raça, como se negar o diferente, humilhá-lo ou ofendê-lo, menosprezá-lo, explorá-lo fosse um direito sobre dos indivíduos ou das classes, ou das raças ou de um sexo em oposição de poder sobre o outro. Que excelência é essa que registra nas estatísticas, mornamente, os milhões de crianças e, se mais resistentes, conseguem permanecer, logo do mundo se despedem.

5. Considerações finais
A instigante reflexão sobre o ensino da História, as propostas curriculares atuais e o ofício de professor, fundamentada em bibliografia de referência, permitiu um primeiro passo na perspectiva de uma docência desafiadora e, sobretudo, transformadora, ainda mais em um momento da humanidade em que a globalização impõe uma uniformidade prepotente. Até porque é indissociável o ensino da História e seu contexto histórico (econômico, social, político e cultural), além dos impactos inerentes ao inesgotável debate travado nessa temática.
Indubitavelmente, a democracia vivida nos últimos 23 anos contribuiu efetivamente para a perceptível evolução conceitual do tema e a diversidade de propostas inovadoras, ainda que sob a égide nada generosa da imposição mercadológica de correntes de pensamento com tendências totalitárias, empobrecedoras do valor maior das ciências humanas – a inesgotável reflexão do todo.
Assim, entende-se oportuna a provocação inserida neste despretensioso trabalho acadêmico, inspirada na produção reflexiva de um dos maiores educadores do século XX, Paulo Freire. Compreendendo-se que a história do homem não é determinista, e que, portanto, é possível transformá-la com bases sólidas, éticas e legítimas, nas quais as novas gerações se identifiquem e deixem sua apatia infindável para trás, é possível ousar a práxis de uma História viva, ativa, desmistificadora e vívida.
Finalmente, a compreensão da evolução do processo didático-pedagógico constitui-se em condição indispensável para dar legitimidade ao conteúdo, no atual contexto curricular, e fazer da História um dos pilares da consciência cidadã requerida neste conturbado tempo de sociedade globalizada, quando velhas práticas corróem valores vitais para a sobrevivência da humanidade. Mais que apenas bons profissionais para o mercado, o mundo prescinde de bons cidadãos para a humanidade.

6. Referências
ADRIÃO, Theresa & OLIVEIRA, Romualdo P. de (Orgs.). Gestão, financiamento e direito à educação: análise da LDB e da Constituição Federal. São Paulo: Xamã, 2001.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005.
FONTOURA, Amaral. Diretrizes e bases da educação nacional: introdução, crítica, comentários, interpretação. Rio de Janeiro: Aurora, 1968.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
______. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
______. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
VILALOBOS, João Eduardo Rodrigues. Diretrizes e bases da educação: ensino e liberdade. São Paulo: EDUSP, 1969.
---------------------------------
(*) Mestre Celeida Maria Costa de Souza e Silva, professora titular de Fundamentos Didático-Pedagógicos do Curso de História da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, MS.
(**) Ahmad Schabib Hany, acadêmico do curso de História da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, MS.